Uma coisa que a mim é certa é que nenhum de nós sabe exatamente o que quer na vida. Pois é, dorme com esse barulho. Podemos ter uma noção, maior ou menor, de qual seria o nosso desejo, mas saber o que queremos, exatamente, é impossível. Isso não existe. E talvez esteja mais do que na hora de pararmos de compactuar com alguns delírios coletivos, porque não sei a vocês, mas a mim já está mais do que claro que isso só tem nos trazido problemas sérios, individuais e coletivamente.
Antes de iniciar, gostaria de dizer que esse texto talvez tenha uma leitura aparentemente “mais lacaniana”, já que na obra freudiana é mais percebível uma articulação do desejo ao excesso. Diferentemente de Lacan que parece articular o desejo à falta. Particularmente eu não entendo nada de Lacan. Contudo, se assim for, talvez me identifique mesmo mais com ele com relação ao desejo. Há uma espécie de fla-flu entre os psicanalistas e suas correntes escolhidas. Vejo uns criticarem os entendimentos diferentes de outros. Faz parte... Mas não precisaria ser assim. Prefiro pensar que o profissional só deva se ater à melhora do paciente. E não tentar provar superioridade de ponto de vista. O tronco é Freud. Ele é o pai da psicanálise. Quem abre a mata. Surgem posteriormente outros psicanalistas que contribuem a essa psicanálise inicial. Melanie Klein. Donald Woods Winnicott. Wilfred Bion. Sándor Ferenczi. O próprio Jacques Lacan. Entre muitos outros até os dias atuais.
Mas ao profissional psicanalista, enquanto terapeuta ali na prática clínica, todas as correntes podem se unir a sua técnica, ao manejo da análise, somando ao seu conhecimento, tendo em mente que certamente com cada paciente será diferente. Carl Gustav Jung não foi um psicanalista, mas esteve junto a Freud por tantos anos até romper por algumas divergências e então criar a psicologia analítica. Ele deixa uma frase que me toca nesse sentido. “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.” Aos psicanalistas então: O seu compromisso é com a melhora do paciente ou com a vaidade de seu saber? Importa de fato comer com garfo ou colher, se o mais importante é matar a fome? Acredito que todas as correntes psicanalíticas são instigantes. Relevantes. Úteis. E agregam ao saber.
As crianças muito cedo na vida captam que a razão de sua existência é perseguir os seus sonhos. E por toda parte elas continuarão sendo alimentadas por essa ideia até o último dia de vida. Elas deverão escolher quem gostar. O que gostar. Como gostar. Onde encontrar. Escolherão a graduação que farão. A profissão a seguir. Com quem se casar. Assim continuarão por toda a vida desejando, escolhendo, perseguindo os seus sonhos. Anseios. Fazendo planos. Nada contra a estrutura desejante, já que é incutida inevitavelmente durante a infância e disso a criança não poderá escapar.
Só que essa nem é a grande questão, porque isso é o que se espera acontecer. A criança desejará. Seguirá o seu desejo. Mas deve também ingressar à sociedade e firmar o pacto social. E os pais, enquanto cuidadores, participam do desenvolvimento psicossexual dos filhos sem se darem conta. Então, naturalmente essa trama de relações e pulsões construirá o desejo da criança. A fatalidade disso, a meu ver, é que em nenhum momento do processo de desenvolvimento é revelado à criança, até para a sua própria segurança, que sua empreitada será uma tarefa infindável. No fundo os seus sonhos nunca serão mais do que reflexos distorcidos do seu desejo infantil, primitivo, o qual ela o perseguirá insatisfatoriamente pelo resto da vida. E que esse foi o preço pago para adentrar à sociedade humana. Seu destino está selado! O seu desejo jamais será alcançado completamente. Ocultamos da criança a insaciabilidade do desejo. Sem sequer termos consciência disso.
É como naqueles contos de vampiros. Quando um vampiro suga o sangue de outra pessoa e tem o objetivo de transformá-la em um ser como ele, um morto vivo. A vítima está ali como uma presa fácil, ela não tem muito o que fazer nesse sentido. Está entregue a situação. Então o vampiro finalmente a transforma num deles. A questão é que, em quase todos os contos, observamos que a vítima não tinha consciência do preço a ser pago, mesmo quando quis de fato se tornar um vampiro. E com o tempo ela sente o peso da imortalidade. E não raro um sofrimento psíquico advindo disso.
Essa minha analogia é bem diferente, mas a mim me parece que é mais ou menos isso o que fazemos com as nossas crianças. Quando temos – ou deveríamos ter – a consciência de que para elas ingressarem na sociedade, na melhor das hipóteses, segundo Freud, fatalmente se tornarão neuróticas. Marcadas pela insaciabilidade do desejo. E precisarão de uma educação crítica. Reflexiva. Criativa. Que possibilite a elas minimamente lidar com os seus desejos sem nega-los. Sem reprimi-los. Sem se recriminar e se punir. Com menos inibição e angústia. E desenvolvendo mecanismos de sublimação!
Some agora a essa insaciabilidade do desejo humano, nossa perseguição irrealista a modelos inalcançáveis de vida! E isso começa lá com Platão inventando o ideal. A transcendência. A ideia não é o modelo? Atualmente assistimos nas redes sociais pessoas expondo vidas maravilhosamente falsas. Versões editadas de uma vida humana perfeita. Estes dois problemas somados se potencializam. Por um lado, somos constituídos de uma falta estrutural que nos faz buscar um desejo primitivo insaciavelmente. De outro lado, construímos desde Platão no imaginário coletivo um ideal de vida inatingível.
Eu sei que muitos podem não entender nada de psicanálise. Mas tentarei explicar de forma sucinta para acompanharem em que ponto espero chegar. Na atual sinuca de bico em que nos encontramos.
No desenvolvimento psicossexual de uma criança proposto por Freud, se espera que num dado momento ela se dê conta de que não poderá ter o seu desejo (a mãe). O desejo da criança é apenas ter a mãe inteiramente para si. Mas ela precisará se dirigir à sociedade. Então terá de renunciar a esse amor. Com a intervenção da figura paterna, interditando essa relação fusionada, a criança renunciará a esse amor (a dissolução do complexo de Édipo). E introjeta o superego (as leis, as regras, a moral ou simplesmente: o limite). A criança entenderá que ela não pode ter tudo o que quer na vida. Não para adentrar à sociedade humana. Assim ela deverá dizer não a si mesma, recalcando o seu desejo primário que era ficar com a mãe. E mais tarde se dirigir à sociedade em busca de “substitutos” desse desejo primário, o qual um dia inconscientemente ela precisou abrir mão.
Segundo Freud, o sucesso dessa trama infantil dará origem ao indivíduo neurótico. Então quem é essa pessoa? O neurótico é aquele que reconheceu e introjetou a Lei. Entendeu a existência de limite para conviver bem em sociedade. Ele recalcou o desejo de ficar com a mãe e selou o pacto social. Mas eventualmente ele poderá ter sofrimento em decorrência disso, podendo cursar de variadas formas. Mas está fadado a buscar “substitutos” ao seu desejo infantil. O desejo da criança pela mãe é de natureza libidinal. Pulsional. Pulsão não cessa! Nem é genital. Uma das grandes injustiças sobre a psicanálise, quando falam que “Freud só pensava em sexo”. Nada mais falso.
Pense numa criança recém nascida no colo de sua mãe sendo amamentada. Nesse momento sua mãe é o mundo para ela. Ela nem tem consciência do que seria mãe nesse momento. Na cabeça da criança, ela e a mãe são uma coisa só. Fundidas. A criança vê a mãe como extensão de si mesma. Nessa relação fusionada ela tem alimento, calor, proteção, afeto, ela tem o mundo a seu dispor. E o seu único desejo é permanecer assim. Só que ela precisará abrir mão disso e renunciar a esse desejo. A figura paterna irá interditar essa relação mãe-bebê, apresentando à criança o mundo exterior.
No mundo aqui fora. Além da relação mãe-bebê. Ou seja, na sociedade. A criança buscará, quando adulta, estimulada também por esses ideais platônicos, alcançar sonhos que no fundo não passam de substitutos à satisfação do seu desejo matricial. Mas ninguém explicou isso à criança! Nem ao adulto. Ela não sabe que nunca será capaz de encontrar aquela satisfação total inicial. Como é o caso do sujeito que tem, por exemplo, compulsão alimentar. Estou aqui nesse grupo. Você acha que quando como compulsivamente é por que sinto fome? A resposta é não. Isso está além do saciar a fome! A pergunta analítica aqui é a seguinte: Qual é o desejo que me leva a desejar à comida?
Você percebe que esse meu desejo remete a outro desejo? Essa é grande sacada que deve ser entendida. O sujeito faz análise para entender isso. O desejo é uma ramificação! Ele não é linear. Ele não está para uma linha reta, em que saio de A e ao chegar a B estou saciado. O desejo na verdade remete a outro desejo, que remete a outro desejo, que remete a outro desejo... Numa cadeia desejante! Lembra da estrutura desejante que eu falei lá em cima? Se percorrermos toda essa minha cascata de desejos, acredito que você, leitor, já deve ter percebido o que estou esperando encontrar. O desejo primário! Exatamente. A compulsão alimentar é uma regressão, no caso a estágios orais. Estou buscando algo que me traga novamente aquele prazer total sentido quando eu estava nessa fase.
Desta
forma, quando estou
angustiado e procuro compulsivamente a comida é porque estou sendo
incapaz de simbolizar a minha
falta. Há angústia.
E na verdade o que preciso
fazer é me a ver
com o desejo que me leva a desejar a comida. Ao
invés de startar
o
processo
compulsivo, na tentativa de
zerar completamente
a tensão psíquica.
O que se assemelha bastante a
uma pulsão de morte. Nesse
momento, devo
apoiar essa possível pulsão
de morte num
processo de destinação das
pulsões.
A sublimação!
Um mecanismo de defesa
maduro, no qual busco transformar esses impulsos em fins mais
saudáveis.
Ou aceitáveis. Por que acha que criei esse blog?!
Agora me responda. Quantas não são as pessoas que acreditam, de forma convicta, que tudo o que precisam é estar num casamento feliz, morando numa casa própria, com um carro específico na garagem? Que precisam fazer um determinado curso, numa determinada faculdade e depois entrar no mercado de trabalho e ter um cargo de liderança? Que precisam ter um determinado corpo, com medidas certas, para usar roupas de uma determinada marca e poder postar fotos nas redes sociais e receber muitos likes? E ao conseguirem tudo isso, acha que elas se sentirão felizes e satisfeitas?
A
resposta é não. Sinto
muito, mas essa é a verdade. Pode conversar com qualquer
psicólogo, ou
psicanalista, ou psiquiatra
etc., quais
são as
queixas mais comuns de
pessoas que nas redes sociais têm vidas perfeitas. Vazio.
Tédio. Angústia.
Tristeza. Solidão... Ou seja, tudo o que você e eu já sentimos em algum momento da vida.
A diferença é que, quem
não tem nada, ainda consegue pôr
a conta nisso. Muito pior, na minha
opinião, as
pessoas que na vida têm tudo. Quando você não tem nada, você ainda consegue
“justificar”, para si mesmo, que é por isso a sua falta de preenchimento. E quando você tem tudo?! Quando você já atingiu
aquele
corpo que você queria, casou-se com a pessoa esperada, tem casas,
carros, tem fama,
viaja o mundo inteiro, usufrui de tudo o que o dinheiro proporciona
e ainda assim não se sente
preenchido? O que fazer?! [ Buscar ajuda! ]
Estamos todos entrando nessa sinuca de bico. Isso é o que já vive os países de primeiro mundo, como a Suíça por exemplo, onde existem altos índices de suicídio. E esses números só crescem a cada ano, no mundo todo. Não estou pedindo para ninguém parar de desejar porque já viram que isso é impossível. Tampouco abrir mão daquilo que já tem. Ou fazer voto de pobreza. Proponho uma reflexão desses ideias platônicos que temos perseguido na nossa sociedade, acreditando que eles garantirão a nossa felicidade. Não vão!
E quem é pai e mãe tem o dever de ensinar aos filhos desde cedo que devem, sim, perseguir os seus desejos. Terem sonhos. Mas realizá-los não pode garantir felicidade eterna. Eles ainda terão de se a ver consigo mesmos. Eventualmente trabalhar as suas angústias. Compreendendo a finitude da existência humana. E que a vida não será eternamente um lago cristalino calmo, pois haverá também águas turvas, agitadas e eles precisarão aprender a lidar com isso também. A educação oferecida às crianças precisa possibilitá-las aprender a subjetivar seus desejos. A reconhecer, refletir e simbolizar o sofrimento, descobrindo formas criativas de sublimação, como a arte. A dança. O teatro. A pintura. A escrita. Aumentando o desejo de viver!
Se as nossas crianças são obrigadas, desde o nascimento, a ingressarem no pacto social, nessa sociedade como a nossa com uma inversão de valores absurda, com ideais platônicos inatingíveis, nós deveríamos prepará-las melhor ao que as espera, não acha? E nesse caso recomendo fortemente análise – aos pais!
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