domingo, 16 de janeiro de 2022

QUANDO EXISTE CODEPENDÊNCIA

 


      Acreditava que para ajudar as pessoas precisava dizer-lhes o que fazer. Dar conselhos. Intervir nas conversas fazendo “grandes colocações”. “Interpretações” do que uma pessoa estaria passando. Como acreditava que deveria proceder para resolver sua questão. Hoje percebo que isso não é algo legal assim. Não é tão necessário. Ou sempre eficaz para quem ouve. Isso às vezes retira o direito de uma pessoa de pensar por si. De fazer por si. Cheguei a acreditar que para ajudar uma pessoa precisava fazer tudo – até aquilo que só a pessoa poderia fazer por si mesma. Hoje consigo perceber que muitas vezes fui longe demais. Fiz mais do que deveria ter feito. Mais atrapalhei o desenvolvimento da outra parte. E alimentei dinâmicas de dependência. Até que ponto então ser suficientemente bom ao ajudar uma pessoa? Cuidar demais, pode mais atrapalhar?

     Como falei acima, eu sempre fui da turma do intervir. Mais do que isso. Se deixasse até fazia pelo outro. Não vou mentir aqui, porque já é bem percebível nos meus textos que tenho um histórico de salvador da pátria – como sempre brinquei. Mas o nome disso é codependência. O que seria isso? O codependente é uma pessoa que acredita que o seu valor está nele ser útil aos outros! Ele associa as pessoas precisam de mim = as pessoas me amam. Consequentemente quanto mais ele for essencial = mais acreditará que é amado. Tudo inconscientemente, tá? Só que isso em si já não é algo legal, mas tem um agravante ainda. O codependente pode inconscientemente alimentar a dependência do outro. Assim a outra parte não consegue desenvolver autonomia. Independência dele. Nem preciso dizer o quanto isso é problemático a médio e longo prazo, né? Vai dar ruim em algum momento nessa relação. Todo aquele que muito dá, uma hora cobra. Com juros até.

     Mas como se forma um codependente? Quando criança, ele buscava o olhar de sua mãe, mas ela estava sempre olhando para outra direção; à outra coisa. Essa outra coisa pode ser um trabalho; um problema de saúde; algo que tira o sossego dessa mãe. Quando a mãe finalmente olha à criança, é um olhar de me ajude. Que tipo de ajuda? Me ajude não me atarefando mais! Talvez isso não tenha acontecido de fato, mas o codependente leu o seu ambiente familiar assim. Um ambiente familiar cheio de preocupações, onde a sua mãe estava sempre muito ocupada. E o que ele podia [deveria] fazer é não lhe causar mais problemas. Aqui ele vai entender, de forma gravemente distorcida, duas coisas: 1 – me ajudar é um problema (por isso que o codependente tem muita dificuldade de aceitar ou de pedir ajuda às pessoas, porque na sua cabeça ele não deve ter ajuda, é errado isso; 2 – preciso sempre ser a solução (assim ele se torna aquele que resolve tudo).

     Se na infância do codependente o problema maior do ambiente familiar era uma enfermidade física, por exemplo, ele se torna um médico. Um enfermeiro. Um fisioterapeuta. Se era uma questão mais emocional, de ordem psicológica, ele vai se tornar um psicólogo. Um psicanalista. Ele pode se tornar advogado. Só a título de curiosidade, sempre observei advogados com dúvidas entre a escolha dessa profissão e a psicologia. A questão é que o codependente se tornará um cuidador compulsivo. Ele tinha que ser a solução ao seu meio, lembra? Assim ele cresce com essa configuração de personalidade. A codependência aparecerá em todos os ambientes e relações em que ele estiver (seja família, casamento, trabalho, amizades, sociedade). Preste atenção a essas palavras colocadas: ambiente e relação (especialmente a primeira).

     Dentro da psicanálise, quando pensamos nos teóricos das relações objetais, um nome que se sobressai é o da psicanalista Melanie Klein. Gosto na sua obra como ela dá bastante atenção aos impulsos mais destrutivos do ser humano! Sentimentos como o ódio, por exemplo. E como na clínica ela trabalha a transferência negativa. Algo que com Freud não parece ser bem aceito. um outro psicanalista que também atendia crianças – mas não somente, chamado Donald Woods Winnicott. Apesar de Winnicott não ser kleiniano, ele reconheceu bastante o trabalho da Melanie Klein. Mas se distancia em vários pontos próprios também. Gosto da obra de Winnicott, porque ele vai se atentar, antes de relações objetais, ao ambiente! Daí a sua célebre recomendação de uma mãe suficientemente boa. Um ambiente suficientemente bom à criança nos primeiros anos de vida.

     Algumas pessoas já me disseram que a minha questão [se é que existe a questão assim] é com o meu pai. Talvez eu tenha responsabilidade nisso, porque de fato escrevo aqui mais sobre a minha relação com ele. Mas isso não significa que seja ele o responsável por todas as minhas questões. as que quero trabalhar! Posso, inconscientemente, estar fazendo todos olharem a uma direção oposta da que eu quero olhar. Aqui vai um detalhe sutil que um analista (inclusive a minha) pega na análise: onde o paciente quer que o analista olhe. A minha analista aos poucos me fez notar que eu conduzo a minha análise ao meu pai. Não que eu não possa falar do meu pai em análise. A questão é por que não quero falar da minha mãe. Isso podemos observar no dia a dia em nossas conversas mais triviais. Sempre que uma pessoa tentar conduzir o seu olhar a uma única direção, a uma única interpretação; o que haveria do outro lado que não pode ser visto?!

     A questão da codependência então, a meu ver, por experiência pessoal tem muito mais a ver com a mãe. No meu caso com a minha mãe mesmo, uma mulher. Mas hoje em dia podemos ultrapassar esse entendimento e pensar melhor isso como função materna. Hoje em dia existem casais homoafetivos que têm filhos, e certamente um(a) eventualmente fará a função materna e o(a) outro(a) a função paterna. Hoje em dia é comum homem dono de casa. A esposa trabalha fora, chega à noite, o marido fica o dia todo com a criança. Esse homem terá o papel de ser função materna na vida da criança. E essa mãe o papel de ser função paterna. Lembrando que a função materna é aquela que alimenta, cuida, dá sustento a essa criança. Independente de quem seja. E a função paterna é a representante do mundo externo, que interditará a relação mãe-bebê, "servindo" de alvo do ódio da criança.

     Problema de codependência então, na minha opinião, é questão com função MATERNA. O indivíduo não se sentiu cuidado, nem seguro, em estágios muito iniciais da vida, quando uma dependência era imprescindível. Tem a ver com a dependência que esse indivíduo teve da “mãe” e por alguma razão se sentiu desamparado. Isso não significa que a mãe tenha sido negligente, isso apenas significa que a criança leu o ambiente dessa forma. Por essa razão, todo codependente morre de medo de se entregar; de estar nas mãos de alguém. Ele não quer depender novamente, porque sabe como foi estar nesse lugar e não se sentir acolhido. Na cabeça do codependente é como se tivesse registrado assim: Não tem pra mim”. Tudo depende só de mim”. Esse trauma, a psiquê da criança precisa achar uma saída – e algumas vezes é um sintoma. Sim, às vezes uma doença pode ser a melhor saída encontrada para se evitar algo pior. A saída do codependente para esse conflito psíquico foi recalcar um sentimento negativo que ficou da mãe (lembra que eu falei da Klein?) e para a sobrevivência desenvolver um falso self forte. Autossuficiente. Invulnerável. Codependente.

     Eu acho muito difícil um codependente enxergar tudo isso, sem o auxílio de um profissional numa análise ou numa terapia. Falo por experiência própria. Não é um processo tão fácil e pode ser demorado. Para quem é psicanalista e atenderá um codependente, na minha opinião, ajuda bastante uma abordagem winnicottiana, com algumas doses de Klein. Winnicott porque a questão nuclear aqui é AMBIENTE. Não só a transferência será importante, como a contratransferência será fundamental! O psicanalista pode se abster de sacadas e eventuais interpretações. Num primeiro momento deve se concentrar apenas em estabelecer CONFIANÇA. O paciente codependente precisa assumir sua fragilidade, sua vulnerabilidade e enxergar uma função materna no analista. O analista será a figura de referência; de segurança; cuidadora. O analista sendo suficientemente bom proverá o suporte ao paciente para continuar seu processo de integração natural. É um erro o psicanalista forçar a barra fazendo intervenções, interpretações, o que se assemelharia a uma psicanálise selvagem, porque a única coisa que ganhará nesse caso é o recuo do verdadeiro self do paciente e dessa forma o paciente apresentará ao analista o seu falso selfE se o analista não perceber isso continuará tratando o falso self, agravando ainda mais a questão dessa pessoa!

     Psicanálise kleiniana penso ser útil também, porque esse paciente codependente precisará entrar em contato com os seus sentimentos mais destrutivos em relação à mãe! E é muito difícil a um codependente assumir isso. Admitir que ele sente ódio de sua própria mãe! Ele recalcou tanto esse ódio que sente da mãe e procurou tanto justificar a sua falta, que ter contato com isso é como se estivesse traindo um pacto de lealdade com essa mãe. E ainda tendo de lidar com sentimentos de destruição do objeto amado! Agora pense, quem através da transferência será convocado a “representar” essa mãe?! O analista. Se a transferência acontecer [e se espera que aconteça], todo esse ódio reprimido da mãe será dirigido ao analista. E este, através da contransferência [Winnicott], deverá manejar a análise de uma forma suficientemente boa: suportando esse ódio sem retaliação, demonstrando que o ódio é bem vindo, espaço para ele ali na relação; e sem indiferença também, para que o paciente veja o seu impacto e entenda a responsabilidade de seus atos. Assim, se o analista não gostar de algo, ficará claro o seu descontentamento. Mas ficará claro também ao paciente que todas as suas expressões autênticas são bem vindas! O codependente assimilará que pode amar e odiar a mesma pessoa, sem perder seu afeto, introjetando e integrando os seus sentimentos opostos, alcançando o que Klein chamou de posição depressiva.

     Aos poucos, com o passar do tratamento analítico, o paciente codependente percebe que ele pode baixar a guarda. Abrir mão do falso self e demostrar livremente sua autenticidade. Assumindo as suas fraquezas. Podendo confiar nas pessoas e receber delas ajuda também. E aos poucos deixar esse lugar daquele que sempre cuida.

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