domingo, 5 de dezembro de 2021

QUANDO O PASSADO VOLTA

      Essa semana foi bem nostálgica. Me lembrei de alguns episódios da minha vida depois de uma sessão de análise. Eu não parava para pensar sobre isto. Mas curiosamente a lembrança veio após encerrar aquela noite. Confesso que estou com isso até agora, elaborando tudo aqui dentro de mim.

      Quando eu tinha por volta de dez anos, meu pai me convidou para ir a uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. Nós iríamos visitar um amigo dele. Amigo de muito tempo. Eu ainda não o conhecia. Naquele dia fiquei sabendo da existência desse senhor – que tinha a mesma faixa etária do meu pai – e descobri que os meus pais cuidavam dele. Parece que esse senhor havia assinado acredito que uma espécie de procuração a minha mãe para cuidar de suas coisas, receber a sua aposentadoria, responder por ele.

     Meus pais quem cuidavam de tudo. Faziam supermercado. Minha mãe limpava a sua casa. Meu pai fazia consertos e reparos. Compravam roupas. Literalmente cuidavam desse senhor. Esse homem tinha sérios problemas com álcool. Apesar de ser muito jovem, como o meu pai, fisicamente ele aparentava ter uns vinte anos a mais. Ele não conseguia cuidar de si mesmo e a família o havia abandonado – acredito que devido ao alcoolismo. A única pessoa que ele tinha era um amigo da juventude. O meu pai. Que prometeu a ele que jamais se distanciaria dele e que a essa amizade ele seria leal até a morte. E assim foi. Meus pais cuidaram deste homem até o final de sua vida. Quando aí sim a família apareceu para reclamar os bens que os meus pais não fizeram questão alguma de ficar com nada.

      Era um domingo. Nesse dia de visita, eu sem entender muito bem como seria uma clínica de reabilitação, fui de manhã até esse local de carro com o meu pai, enquanto o ouvia contar as suas histórias ao lado do seu amigo quando jovens. Chegamos lá. Era um lugar agradável, havia muitas palmeiras. O dia estava muito bonito. Ensolarado. Eu me lembro de uma varanda espaçosa, onde tive que aguardar, e o meu pai foi conduzido por uma funcionária até o interior do local. Não pude acompanhá-lo. Apesar de ali fora ser claro e tudo muito bonito, havia um corredor e tive a impressão de que a medida que ele levava ao fundo da clínica ia escurecendo o caminho. Como se o interior fosse mais escuro. Mais cinza. Talvez mais solitário. Eu, da varanda, fiquei olhando o entorno, com um pensamento que não me saia da mente: Como a lealdade era importante ao meu pai. Meu pai jamais abandonava um amigo.

      Passados alguns minutos que não saberia precisar quantos, avistei meu pai saindo daquele túnel negro. Nunca vi meu pai tão impactado. Seus olhos estavam negros. Seu semblante sem qualquer brilho. Opaco. Sério. Como se em choque. Calado puxou um cigarro e fitou o horizonte. Nós dois ficamos ali em silêncio, lado a lado. Eu simplesmente não conseguia lhe perguntar o que havia visto lá dentro, embora quisesse muito fazê-lo. Posso estar enganado, mas o que vi naquele dia em meu pai foi medo. Muito medo. Não aguentava mais de curiosidade, então quebrei o silêncio:

      - O que foi? Tá tudo bem?

      Ele apenas acenou negativamente com a cabeça. E acendeu outro cigarro. Em seguida me disse:

      - Meu amigo está péssimo. Nunca imaginei o ver nesse estado... Espero nunca chegar nesse ponto!

      - Simples. Pare de beber. Se você já está vendo o futuro, tome a decisão agora. Rebati isso de bate pronto. Minha relação com o meu pai sempre foi assim: Intensa!

      Então, naquele momento o meu pai disse uma coisa que nem que eu vivesse mil vidas eu seria capaz de esquecer. Ele – sem olhar para mim – me falou o seguinte:

      - Talvez, Jonas, eu consiga mesmo parar. Quem sabe se você me ameaçasse...

      Eu não entendi muito bem, e também não quis perguntar. Mas ele continuou:

      - Talvez se você me ameaçar de não falar mais comigo se eu não parar de beber, eu consiga parar...

      Naquele dia senti o tamanho do amor do meu pai por mim. Pelos filhos. Compreendi perfeitamente o que ali estava em jogo. E naquele dia tomei a minha decisão – que vai me acompanhar por toda vida.

      - Pai, essa decisão é sua. Falei isso e encerrei a conversa sem dizer mais nada.

      Meu pai fechou os olhos, como se já pudesse prever o seu futuro...

      Mês passado fez exatos quinze anos que ele faleceu. Ele era o meu melhor amigo. E foi também o meu inimigo mais ferrenho. Sinto saudades. Você deve estar se perguntando se me arrependo do que disse naquele dia e a resposta é não. Como disse acima, compreendi perfeitamente o que ali estava em jogo, mas tomei a minha decisão. Devia partir dele. É um paradoxo, eu sei. Porque se por um lado tenho uma forte inclinação a salvador da pátria dentro de mim, diametralmente aposto tenho um racional forte. Detesto decidir pelos outros. E não concordo com isso também. As pessoas devem ser livres para decidirem a própria vida, mesmo que isso lhes custe a vida! Ainda mais quando envolve amor. Eu amava o meu pai. O amo até hoje. Como eu poderia impor uma condição daquela para estar ao seu lado? Não me parecia justo.

      Mesmo quando parei de falar com ele anos mais tarde, nos últimos anos de sua vida, foi uma decisão minha. Mas não impus qualquer condição. Simplesmente cortei laços com ele, mesmo contrariado, porque ou eu fazia isso, ou a gente se mataria. Ele estava num nível no alcoolismo que era impossível a nossa convivência pacífica. Nós já nos agredíamos fisicamente. Mas continuo não achando justo forçar uma pessoa a fazer algo, sob uma alegação de que isso é para o seu próprio bem. Não é! Isso é para o bem de quem ameaça. Para o bem de quem impõe a condição. Ou você ama, ou não ama. Ou você aceita, ou não aceita. Liberdade é sempre item de primeira grandeza. E por isso eu te pergunto o seguinte:

O que você ama, você deixa livre? Ou você impõe condições? Como é isso para você?

      Meu pai foi um homem profundamente apegado aos filhos. Ele era devorador. Segundo Lacan, a mãe é como um crocodilo, em cuja bocarra a criança se encontra. E eu brinco que lá em casa o crocodilo era ele. Meu pai não só tinha conhecimento de nossas vidas – a do meu irmão e a minha – como ele participava ativamente de tudo. Estava sempre nos abraçando. Beijando. Mordendo. Nos sufocando! Me lembro que os meus amigos iam lá em casa e achavam ele o máximo, porque ele era brincalhão. Companheiro. Ele fazia amizade com todos os meus amigos. E alguns gostavam mais dele que de mim. Diziam até que sentiam inveja da nossa relação, porque com o pai deles era diferente. Mal sabiam como era difícil para nós viver com um pai atencioso e participativo, mas também bastante controlador e intrusivo.

      Ele fazia amizade com os meus amigos para saber com quem eu andava e o que fazia. Ele convidava professora minha para tomar café lá em casa para saber como eu estava na escola. Ele pegava os meus cadernos, livros, revistas, para saber o que estava lendo. Eu sabia que isso era por preocupação. Ele queria o nosso bem. Mas era excessivo. E eu já sabia, desde muito cedo, que se não batesse de frente com ele, e construísse a minha personalidade e o meu próprio caminho, seria um clone malfeito dele. Por mais amor que os pais tenham pelos filhos não é bem por aí. E não foi fácil não, impor o meu espaço.

      Só que um fruto nunca cai muito longe do pé! Hoje quem é o controlador, o centralizador, aquele que quer saber de tudo e cuidar de todos? Sou eu. O salvador da pátria. E já imagino que você esteja se indagando, “Mas não é você que prega liberdade acima de tudo?!”. Opa! Sim, sou eu. Conscientemente né. Objetivamente é isso. Se eu puder agir racionalmente, logicamente [vide texto anterior], vou dar as rédeas da vida nas mãos de quem for. E tirá-las das minhas. E é exatamente por isso que eu faço análise. Para ser capaz de conhecer e elaborar desejos inconscientes, afim de ter uma vida mais funcional. Só que psicanálise não é bala de prata! Panaceia que cura todos os males. Não é porque eu trouxe para o consciente um conteúdo que está tudo resolvido e é só alegria. Demanda muita elaboração. Como escreveu Freud em 1914, “Recordar, Repetir e Elaborar”.

     Estou dividindo isso com vocês por dois motivos. Primeiro motivo, para compartilhar isso o que ocorreu na minha última análise. Percebo novamente um desejo forte de cuidar das pessoas que eu gosto, mesmo elas não querendo. Mesmo não pedindo. E como, através de uma livre associação de ideias, me recordei desse episódio aos dez anos de idade. Durante essa semana recordei várias vezes essa cena com o meu pai. Hoje penso. Será que não existe em mim um sentimento de culpa [inconsciente] por conta desse episódio lá atrás? Será que não estou – hoje – buscando salvar as pessoas, como forma de compensação daquele a quem um dia eu não quis salvar? Agora vocês entendem por que a psicanálise é tão interessante?! Como duas atitudes diametralmente apostas, contrárias, podem coexistir dentro de uma mesma pessoa?

      O segundo motivo de dividir essa minha história é para justificar que todos temos dilemas. Complexos. Fixações. E volto a repetir, psicanálise não é bala de prata. Psicanalista também tem questões. Psicanalistas adoecem. Sofrem. Divorciam-se. E isso não os diminui como profissionais. A vida de Freud, o pai da psicanálise, está aí para nos mostrar exatamente isso. Ele mesmo relatou os seus dramas em sua obra. Outro dia me questionaram se não me incomodo de falar de temas tão íntimos da minha vida, inclusive relatando dificuldades pessoais, sendo que estou me propondo a ajudar os outros. A resposta é não! Eu nunca me incomodei com isso. Tenho esse blog há quatorze anos e nunca me incomodei. Até porque não pretendo, como nunca pretendi, ser modelo de nada para ninguém. Nem mesmo a psicanálise se pretende a isso. Um paciente que busca um analista como modelo de como viver bem está redondamente equivocado. Não existe receita, nem padrão, nem protocolo dentro da psicanálise. Você só pode ser referencia de si para si mesmo! Você é o seu modelo. Você só pode se comparar consigo, e a partir de si encontrar o seu próprio caminho. E é melhor que o faça com um profissional que ao menos teve coragem o suficiente de se analisar!

Amo a liberdade, por isso as coisas que amo deixo-as livres. Se voltarem é porque as conquistei, se não voltarem é porque nunca as tive”.

(Bob Marley)

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