segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

DESTRUIR OU FORTALECER O EGO?


     A resposta é: depende.

      Embora muito criticado pelo senso comum, o ego para a psicanálise é uma instância psíquica importante ao ser humano. Todos já ouviram frases sobre determinada pessoa ter um “ego grande” ou um “ego inflado”, vindas com recomendações para “diminuir” o nosso ego. No senso comum se enxerga o ego dessa forma, como sendo algo prejudicial à personalidade e que devêssemos combatê-lo para nos tornarmos pessoas mais altruístas e abnegadas. Eu também imaginava que ego era algo negativo antes de entender como a psicologia, especialmente a psicanálise falam de ego.

      As razões por trás desse entendimento se deve porque assim é propagado, principalmente em alguns meios esotéricos ou religiosos. No senso comum associam uma pessoa com “ego inflado” com comportamentos de arrogância. De prepotência. De egoísmo. Aprendi que o intuito, quando se recomenda a dissolução do próprio ego, não significa que o indivíduo deva esquecer de si e se anular por completo. Não é isso. É uma orientação ao indivíduo para que busque enxergar a vida numa perspectiva macro, além de si mesmo e de seus próprios interesses. Para compreender que existe um todo do qual ele é parte. Saia do ensimesmamento e tente pensar e sentir com os outros, tendo o coletivo em perspectiva. Indo mais além, é a busca por ligação com aquilo que transcenderia a matéria, que estaria além da compreensão humana, entrando no campo da espiritualidade. No que você crê?

      Respeito esse conceito de dissolução do ego. Eu também acredito que o verdadeiro objetivo da alma humana é caminhar partindo do um (do eu) para uma fusão com o todo. A vida inteira passaremos por inúmeras experiências e aprendizados, alguns desafiadores e dolorosos, para que possamos evoluir nesse sentido. E isso não significa também esquecer de nós mesmos ou anular os nossos interesses pessoais, porque somos indivíduos. Carl Gustav Jung trouxe por exemplo a ideia de individuação (que não se confunde aqui com individualismo). A individuação seria a busca de toda alma humana por se desenvolver de forma integral rumo a sua realização pessoal.

      Dissolução do ego e Individuação então são dois conceitos de origens distintas, até parecem antagônicos, mas não se excluem na verdade. Essa ideia de dissolução do próprio ego, trazida principalmente em ensinamentos de tradição oriental me ajudou bastante. A observar as minhas atitudes e o excesso do eu em detrimento do outro. Meu primeiro impulso por exemplo é criticar. E às vezes segregar. Me separando das pessoas. Sou naturalmente mais distante e racional. Mas aprendi que posso ser também um Jonas mais próximo. Mais humano. Mais íntimo das pessoas. Evitar de ficar no plano mental e me permitir sentir com as pessoas. Me unir. Já me abri bastante nesse sentido. Melhorei e espero melhorar ainda mais. E você, pensa no coletivo? Que ideia você tem sobre isso?

      Por outro lado acho importante também essa ideia de individuação proposta por Carl Jung. Ela nos ensina a olhar aquilo que temos em nós mesmos. Reconhecendo todos os aspectos da nossa personalidade. Aspectos luminosos, sombrios, potencialidades. E integra-los visando à totalidade. Nos aproximando de ser quem somos. Autenticidade. Realização pessoal. Completude. Essa ideia de individuação me fez reconhecer e me aceitar mais como sou. É o que sou! - sem justificação ou vitimismo. Sei que tenho uma tendência ao perfeccionismo. Sou crítico, obsessivo, rígido. Mas isso não me limitou. A questão é o que fazer com isso. Negar não é o melhor caminho. Reconhecer, integrar e elaborar é mais inteligente. Sou determinado também. Proativo, responsável, autoconfiante, organizado. Aprendi a valorizar o que eu tenho também. Ninguém é uma coisa só! Você já se aceitou como é?

      Acredito sinceramente que o Criador nos deu ao nascer uma caixinha já com algumas ferramentas e durante a vida encontraremos tantas outras. Cada um fará a sua obra. Mas nela não terá só o que queremos. Vem o kit completo! Só que ao invés de reclamar daquilo que ganhamos, podemos nos reinventar. O que fazer com a nossa vida a partir do que é dado? Já pensou nisso? A vida está aí. Não temos o controle de tudo. Não existirá vida certa ou vida errada. a vontade de viver. E potência para se recriar sempre que for preciso. Você já se reinventou?

      Quando fui estudar psicanálise descobri uma nova forma de pensar o ego também. Tão interessante e importante quanto! Segundo Freud o ego é o centro da consciência. Ele está em contato com a realidade e interpreta o mundo externo. O ego é a personalidade. E é a instância psíquica que tem a importante responsabilidade da mediação dos impulsos do id e dos valores internalizados pelo superego. Dentro de toda pessoa existem desejos, vontades, impulsos; assim como princípios e valores morais que censuram à obtenção desses impulsos. O ego que vai negociar: Eu quero X Eu devo?

      Quem resolve esse impasse sempre é o ego, por isso é uma instância psíquica importantíssima. O id nos diz quero agora. Imediatamente o nosso superego apita não pode! O nosso ego precisa analisar essas duas instâncias opostas e achar a melhor opção. Maximizar o prazer exigido pelo id. Ao mesmo tempo minimizando o desprazer advindo do superego. O ego age então como uma balança em nós. Uma balança que segue o princípio da realidade. Por isso o ego deve estar bem “calibrado”.

      Toda decisão que tomaremos sempre passará pelo crivo do ego. Ele precisa ser uma instância psíquica forte e saudável em nossa personalidade. Caso predomine os nossos desejos e vontades, ou seja, vou fazer o que quiser, como quiser, quando quiser, estamos seguindo o princípio do prazer. Quem age seguindo apenas o prazer sem responsabilidades? As crianças. Convenhamos que não é agradável, nem aceitável, pensando em coletivo, um adulto fazer o que quer. Não somos ermitãos vivendo reclusos em cavernas. Nós vivemos em sociedade e existem leis. O superego representa justamente a instância psíquica que freia os nossos incontáveis impulsos irracionais e desmedidos. Pessoas com um superego fraco ou pouco introjetado são mais transgressoras. Até delinquentes. Quanto maior for a fragilidade desse superego mais difícil ajudar a pessoa, porque ela terá pouco ou nenhum respeito por limite. E como somos animais sociais é imprescindível a internalização do temor e do respeito à Lei. Sem isso é praticamente inviável o curso livre do sujeito em sociedade.

      Por outro lado também, se numa pessoa houver um superego muito forte, ela será muito rígida, muito punitiva. Ela se censurará o tempo todo. Castrando demais os próprios desejos. Não posso, não devo...”. É o extremo oposto. Pessoas muito sérias, controladoras, punitivas têm essa instância pesando forte na personalidade. Elas se anulam e se privam demais, porque um superego internalizado muito severo. Eu estou aqui nesse grupo por exemplo. Aprendi que tenho uma tendência a priorizar o dever; a buscar antecipar e suprir a demanda do outro (sem ele sequer pedir); e a postergar o meu prazer. Embora esse mecanismo de privação também acabe gerando um prazer secundário! Aprendi que pessoas muito “certinhas” que muito se privam e privam os outros têm, inconscientemente, um prazer secundário nisso, por mais sadomasoquista que pareça. É uma fixação.

     Grava isso: o organismo SEMPRE encontrará um meio, mesmo que incomum, inaceitável ou patológico de obter SATISFAÇÃO; até inconscientemente. Não está contente com isso?! Análise.

      Para a psicanálise então o ego é muito importante e tem a tarefa de mediar o conflito entre o id e o superego. Como o ego segue o princípio da realidade é importante a pessoa ter uma interpretação razoável. Mas quando alguém está em sofrimento psíquico é bem possível que o ego dessa pessoa esteja em algum nível prejudicado na percepção e na interpretação do mundo externo. Assim como em sua capacidade de mediar conflitos entre desejos e exigências. Ao procurar um psicanalista, por exemplo, uma das primeiras tarefas da análise é fortalecer o ego da pessoa. Com o auxílio do analista ela irá gradativamente recalibrando a capacidade de perceber e de interpretar adequadamente a realidade e de conseguir gerenciar os próprios conflitos. O foco do tratamento psicanalítico continua sendo a instância inconsciente do paciente, mas o psicanalista precisa fazer aliança terapêutica com a parte colaborativa do ego da pessoa. E esse ego precisa estar minimamente fortalecido para interpretar a realidade.

E aí, com base em tudo isso, como você tem trabalhado o seu ego?

domingo, 23 de janeiro de 2022

DARK WEB


     Busco atrelar o conteúdo do blog ao que já vivi ou ao que estou vivendo. Me parece uma forma transparente de transmitir o que penso. Ao sentar para escrever um novo texto, analiso antes as minhas emoções e os meus sentimentos, na tentativa que garantir que eles sejam contaminados e que contaminem também a ideia trazida. Sinto que assim a escrita fica mais autoral. É uma forma também de enxergar fora de mim aquilo que circula dentro. Coloco uma playlist com músicas na mesma vibe que estou e deixo rolar. O que vai sair hoje...

     Já deu para perceber que às vezes não tenho ideia do que escreverei, né? Não diria ideia nenhuma, mas não tem roteiro. Só uma vaga intuição e a vontade forte de mergulhar. Acredito que todos nós somos mergulhadores natos. Nascemos com essa capacidade. Mergulhar em nós mesmos. Alguns serão mergulhadores de águas rasas. Outros de águas mais profundas. A capacidade será a mesma. O que difere é o quanto cada um desejará – ou conseguirá – aprofundar. O preço que estará disposto a pagar por isso. Ou a necessidade, quando a própria vida impelirá algo que será necessário lidar.

     Quero ser um mergulhador de águas profundas! Apesar do medo de acessar o inconsciente como qualquer pessoa tem, ele se mescla com curiosidade também. Com uma excitação que me faz avançar. Há prazer nisso. Apesar de difícil em alguns momentos, é bastante prazeroso também. Quanto mais se aprofunda em si mesmo, mais contato com aspectos sombrios da personalidade. Nesse estágio se encontra de tudo, como na dark web. Já ouviram falar em dark web? Eu nunca estive lá. Mas dizem que é onde estão muitos conteúdos da web propositalmente escondidos por seus proprietários. Conteúdos esses inacessíveis por mecanismos de busca usuais. Eles só podem ser acessados por métodos específicos. É impressão minha ou acabamos de descrever a psicanálise?

     A dark web é o mesmo que o nosso inconsciente então. E os métodos específicos de acesso são os trabalhados em análise: interpretação dos sonhos, mecanismos de defesa, atos falhos, chistes, repetições, associação livre... Meios de trazer à tona conteúdos recalcados. Aqueles mais profundos. Mais sombrios. Distantes da superfície luminosa. Banidos da consciência. Às vezes por motivos de segurança. A partir daqui acredito que entraremos no miolo desse texto. Até que ponto uma pessoa tem condições seguras de mergulhar? Lembra do que eu disse que nem todos são mergulhadores de águas profundas? A questão não está só em ter habilidade para mergulhar. Mas de ter capacidade de suportar esse mergulho. Nesse ponto creio que a psicanálise não é para qualquer um.

     Essa semana pensei muito sobre isso. Tentarei ser o mais claro e objetivo ao que vou dizer. Gosto de acessar conteúdos profundos – quanto mais fundo melhor. Minha criação favoreceu isso, eu acho. Vejam que os textos aqui são densos. Intensos. Fortes. Mas assim é a minha personalidade também. Não sou depressivo. Na Grécia Antiga diziam que isso era um temperamento melancólico. Sou profundo. Busco sentir todas as emoções da forma mais vívida possível. Mas sem transparecer também. Não gosto de demonstrar. Procuro metabolizar o que sinto sem transparecer ao meio. Forçar inexpressividade. Mostrar indiferença. Frieza. Ocultando a sensibilidade e uma perspectiva bem pessoal. Estou sempre analisando de um ponto de vista muito particular. Mas sou bastante afetado, embora esconda. Às vezes com uma única palavra ocorre uma avalanche de sentimentos em mim. Ganho o dia. Ou perco a semana. Mas ainda assim não demonstrarei absolutamente nada.

     Ao longo da minha vida precisei desenvolver uma capacidade quase que extrema de me aprofundar. Eu vivi uma infância muito difícil, em questão emocional e psicológica. Aqui no blog dou umas pinceladas sobre a infância e a adolescência que tive, até para evitar dar “ideias erradas” aos pais de como educar os filhos. Vamos dizer que o meu pai tinha formas bastante peculiares de educar e disciplinar. Hoje não tenho mágoas disso, mas quando criança foi um desafio e tanto lidar com tudo. Como não tinha para onde fugir, corri para dentro. Para o meu interior. Quanto mais desconfortável o ambiente fora, mais aprofundava em mim. Alguma coisa me dizia que a saída do que estava vivendo era voltada para dentro. Então mergulhei de cabeça. Eu só tinha medo de romper com a realidade. Porque embora aquela realidade fosse difícil de suportar, era a realidade. Eu sabia disso. Então procurava não perder o foco. Não fantasiar demais. Tinha medo de enlouquecer.

     De alguma forma percebi cedo que tinha uma propensão para isso. Alguma coisa me dizia que estava numa encruzilhada. Um dos caminhos poderia me levar a uma psicose. Outro a um transtorno de personalidade antissocial ou narcisista. Outro ao autismo. Síndrome de Asperger. Me sentia em pontos limítrofes. Cresci caminhando sob uma corda bamba, imaginando qual lado cairia.

     Como era de se esperar fiquei bem treinado a suportar estágios que exigem muito do psiquismo. Tanto que sou atraído pela ideia de hospitais, principalmente psiquiátricos. Presídios. População em extrema pobreza. Abuso doméstico de qualquer natureza. Me preocupo com situações em que um indivíduo precisa ser capaz de manter a saúde psíquica em condições radicais de sobrevivência. O quão forte psiquicamente uma pessoa precisa ser, quando o ambiente externo a leva ao extremo?! Aprendi que quando não há saída para o lado de fora, precisará haver no lado de dentro. Assim desenvolvi uma inclinação para mergulhar fundo. O mais fundo que pudesse ir na minha mente. Isso também trouxe tendência a escape. A impulsos (auto)destrutivos. Compulsões. Adicções. Pulsão de morte. Hoje fico longe do consumo de álcool. De substâncias psicoativas de qualquer natureza. De tudo que possa me tirar da realidade. Imagino como é ter um pezinho na neurose e outro na psicose.

     Precisei desenvolver uma inteligência intrapessoal. Tenho facilidade para levar as pessoas a estágios mais profundos também. Percebo isso nas minhas relações com amigos. Familiares. As pessoas comentam. Sempre fui de observar o comportamento das pessoas. Isso me fascina. Mas antes de fazer psicanálise achava natural me meter na vida das pessoas. Sair “mexendo no psicológico” dos outros. Hoje sei que isso é psicanálise selvagem. Quando fazemos uma “interpretação analítica” desconsiderando a situação, a dinâmica e a dimensão na vida da pessoa, expondo um conteúdo recalcado, desprezando as resistências e a transferência. Isso não ajuda em nada. E ainda pode atrapalhar bastante a vida da pessoa.

     Freud disse que um analista só consegue ir com o paciente até onde ele deu conta de ir em sua própria análise. Se assim for, quero mergulhar bem fundo. Quero ser um analista de águas profundas. E um mergulhador amador é bem diferente de um profissional. É errado levar uma pessoa a estágios que ela não está preparada. Talvez nem queira ir. Ou precise. O analista deve interferir o menos possível. É como uma dança, mas é o paciente quem deve conduzir.

 

     Quanto mais faço o (per)curso psicanalítico vejo que o que faz um bom analista não é domínio da teoria. Isso é o mais simples. O desafio é lapidar a si mesmo. E isso é fruto da própria análise.


domingo, 16 de janeiro de 2022

QUANDO EXISTE CODEPENDÊNCIA

 


      Acreditava que para ajudar as pessoas precisava dizer-lhes o que fazer. Dar conselhos. Intervir nas conversas fazendo “grandes colocações”. “Interpretações” do que uma pessoa estaria passando. Como acreditava que deveria proceder para resolver sua questão. Hoje percebo que isso não é algo legal assim. Não é tão necessário. Ou sempre eficaz para quem ouve. Isso às vezes retira o direito de uma pessoa de pensar por si. De fazer por si. Cheguei a acreditar que para ajudar uma pessoa precisava fazer tudo – até aquilo que só a pessoa poderia fazer por si mesma. Hoje consigo perceber que muitas vezes fui longe demais. Fiz mais do que deveria ter feito. Mais atrapalhei o desenvolvimento da outra parte. E alimentei dinâmicas de dependência. Até que ponto então ser suficientemente bom ao ajudar uma pessoa? Cuidar demais, pode mais atrapalhar?

     Como falei acima, eu sempre fui da turma do intervir. Mais do que isso. Se deixasse até fazia pelo outro. Não vou mentir aqui, porque já é bem percebível nos meus textos que tenho um histórico de salvador da pátria – como sempre brinquei. Mas o nome disso é codependência. O que seria isso? O codependente é uma pessoa que acredita que o seu valor está nele ser útil aos outros! Ele associa as pessoas precisam de mim = as pessoas me amam. Consequentemente quanto mais ele for essencial = mais acreditará que é amado. Tudo inconscientemente, tá? Só que isso em si já não é algo legal, mas tem um agravante ainda. O codependente pode inconscientemente alimentar a dependência do outro. Assim a outra parte não consegue desenvolver autonomia. Independência dele. Nem preciso dizer o quanto isso é problemático a médio e longo prazo, né? Vai dar ruim em algum momento nessa relação. Todo aquele que muito dá, uma hora cobra. Com juros até.

     Mas como se forma um codependente? Quando criança, ele buscava o olhar de sua mãe, mas ela estava sempre olhando para outra direção; à outra coisa. Essa outra coisa pode ser um trabalho; um problema de saúde; algo que tira o sossego dessa mãe. Quando a mãe finalmente olha à criança, é um olhar de me ajude. Que tipo de ajuda? Me ajude não me atarefando mais! Talvez isso não tenha acontecido de fato, mas o codependente leu o seu ambiente familiar assim. Um ambiente familiar cheio de preocupações, onde a sua mãe estava sempre muito ocupada. E o que ele podia [deveria] fazer é não lhe causar mais problemas. Aqui ele vai entender, de forma gravemente distorcida, duas coisas: 1 – me ajudar é um problema (por isso que o codependente tem muita dificuldade de aceitar ou de pedir ajuda às pessoas, porque na sua cabeça ele não deve ter ajuda, é errado isso; 2 – preciso sempre ser a solução (assim ele se torna aquele que resolve tudo).

     Se na infância do codependente o problema maior do ambiente familiar era uma enfermidade física, por exemplo, ele se torna um médico. Um enfermeiro. Um fisioterapeuta. Se era uma questão mais emocional, de ordem psicológica, ele vai se tornar um psicólogo. Um psicanalista. Ele pode se tornar advogado. Só a título de curiosidade, sempre observei advogados com dúvidas entre a escolha dessa profissão e a psicologia. A questão é que o codependente se tornará um cuidador compulsivo. Ele tinha que ser a solução ao seu meio, lembra? Assim ele cresce com essa configuração de personalidade. A codependência aparecerá em todos os ambientes e relações em que ele estiver (seja família, casamento, trabalho, amizades, sociedade). Preste atenção a essas palavras colocadas: ambiente e relação (especialmente a primeira).

     Dentro da psicanálise, quando pensamos nos teóricos das relações objetais, um nome que se sobressai é o da psicanalista Melanie Klein. Gosto na sua obra como ela dá bastante atenção aos impulsos mais destrutivos do ser humano! Sentimentos como o ódio, por exemplo. E como na clínica ela trabalha a transferência negativa. Algo que com Freud não parece ser bem aceito. um outro psicanalista que também atendia crianças – mas não somente, chamado Donald Woods Winnicott. Apesar de Winnicott não ser kleiniano, ele reconheceu bastante o trabalho da Melanie Klein. Mas se distancia em vários pontos próprios também. Gosto da obra de Winnicott, porque ele vai se atentar, antes de relações objetais, ao ambiente! Daí a sua célebre recomendação de uma mãe suficientemente boa. Um ambiente suficientemente bom à criança nos primeiros anos de vida.

     Algumas pessoas já me disseram que a minha questão [se é que existe a questão assim] é com o meu pai. Talvez eu tenha responsabilidade nisso, porque de fato escrevo aqui mais sobre a minha relação com ele. Mas isso não significa que seja ele o responsável por todas as minhas questões. as que quero trabalhar! Posso, inconscientemente, estar fazendo todos olharem a uma direção oposta da que eu quero olhar. Aqui vai um detalhe sutil que um analista (inclusive a minha) pega na análise: onde o paciente quer que o analista olhe. A minha analista aos poucos me fez notar que eu conduzo a minha análise ao meu pai. Não que eu não possa falar do meu pai em análise. A questão é por que não quero falar da minha mãe. Isso podemos observar no dia a dia em nossas conversas mais triviais. Sempre que uma pessoa tentar conduzir o seu olhar a uma única direção, a uma única interpretação; o que haveria do outro lado que não pode ser visto?!

     A questão da codependência então, a meu ver, por experiência pessoal tem muito mais a ver com a mãe. No meu caso com a minha mãe mesmo, uma mulher. Mas hoje em dia podemos ultrapassar esse entendimento e pensar melhor isso como função materna. Hoje em dia existem casais homoafetivos que têm filhos, e certamente um(a) eventualmente fará a função materna e o(a) outro(a) a função paterna. Hoje em dia é comum homem dono de casa. A esposa trabalha fora, chega à noite, o marido fica o dia todo com a criança. Esse homem terá o papel de ser função materna na vida da criança. E essa mãe o papel de ser função paterna. Lembrando que a função materna é aquela que alimenta, cuida, dá sustento a essa criança. Independente de quem seja. E a função paterna é a representante do mundo externo, que interditará a relação mãe-bebê, "servindo" de alvo do ódio da criança.

     Problema de codependência então, na minha opinião, é questão com função MATERNA. O indivíduo não se sentiu cuidado, nem seguro, em estágios muito iniciais da vida, quando uma dependência era imprescindível. Tem a ver com a dependência que esse indivíduo teve da “mãe” e por alguma razão se sentiu desamparado. Isso não significa que a mãe tenha sido negligente, isso apenas significa que a criança leu o ambiente dessa forma. Por essa razão, todo codependente morre de medo de se entregar; de estar nas mãos de alguém. Ele não quer depender novamente, porque sabe como foi estar nesse lugar e não se sentir acolhido. Na cabeça do codependente é como se tivesse registrado assim: Não tem pra mim”. Tudo depende só de mim”. Esse trauma, a psiquê da criança precisa achar uma saída – e algumas vezes é um sintoma. Sim, às vezes uma doença pode ser a melhor saída encontrada para se evitar algo pior. A saída do codependente para esse conflito psíquico foi recalcar um sentimento negativo que ficou da mãe (lembra que eu falei da Klein?) e para a sobrevivência desenvolver um falso self forte. Autossuficiente. Invulnerável. Codependente.

     Eu acho muito difícil um codependente enxergar tudo isso, sem o auxílio de um profissional numa análise ou numa terapia. Falo por experiência própria. Não é um processo tão fácil e pode ser demorado. Para quem é psicanalista e atenderá um codependente, na minha opinião, ajuda bastante uma abordagem winnicottiana, com algumas doses de Klein. Winnicott porque a questão nuclear aqui é AMBIENTE. Não só a transferência será importante, como a contratransferência será fundamental! O psicanalista pode se abster de sacadas e eventuais interpretações. Num primeiro momento deve se concentrar apenas em estabelecer CONFIANÇA. O paciente codependente precisa assumir sua fragilidade, sua vulnerabilidade e enxergar uma função materna no analista. O analista será a figura de referência; de segurança; cuidadora. O analista sendo suficientemente bom proverá o suporte ao paciente para continuar seu processo de integração natural. É um erro o psicanalista forçar a barra fazendo intervenções, interpretações, o que se assemelharia a uma psicanálise selvagem, porque a única coisa que ganhará nesse caso é o recuo do verdadeiro self do paciente e dessa forma o paciente apresentará ao analista o seu falso selfE se o analista não perceber isso continuará tratando o falso self, agravando ainda mais a questão dessa pessoa!

     Psicanálise kleiniana penso ser útil também, porque esse paciente codependente precisará entrar em contato com os seus sentimentos mais destrutivos em relação à mãe! E é muito difícil a um codependente assumir isso. Admitir que ele sente ódio de sua própria mãe! Ele recalcou tanto esse ódio que sente da mãe e procurou tanto justificar a sua falta, que ter contato com isso é como se estivesse traindo um pacto de lealdade com essa mãe. E ainda tendo de lidar com sentimentos de destruição do objeto amado! Agora pense, quem através da transferência será convocado a “representar” essa mãe?! O analista. Se a transferência acontecer [e se espera que aconteça], todo esse ódio reprimido da mãe será dirigido ao analista. E este, através da contransferência [Winnicott], deverá manejar a análise de uma forma suficientemente boa: suportando esse ódio sem retaliação, demonstrando que o ódio é bem vindo, espaço para ele ali na relação; e sem indiferença também, para que o paciente veja o seu impacto e entenda a responsabilidade de seus atos. Assim, se o analista não gostar de algo, ficará claro o seu descontentamento. Mas ficará claro também ao paciente que todas as suas expressões autênticas são bem vindas! O codependente assimilará que pode amar e odiar a mesma pessoa, sem perder seu afeto, introjetando e integrando os seus sentimentos opostos, alcançando o que Klein chamou de posição depressiva.

     Aos poucos, com o passar do tratamento analítico, o paciente codependente percebe que ele pode baixar a guarda. Abrir mão do falso self e demostrar livremente sua autenticidade. Assumindo as suas fraquezas. Podendo confiar nas pessoas e receber delas ajuda também. E aos poucos deixar esse lugar daquele que sempre cuida.