Como já comentei aqui, eu sou aspirante em psicanálise e a psicanalista me pediu para fazer uma carta a mim mesmo quando criança. Achei a tarefa interessante, eu já a conhecia, mas até então nunca tinha feito. Notei alguns movimentos durante essa semana, antes de sentar e escrever a carta. Houve resistência. “Amanhã eu faço”. “Sábado eu faço”. Acabou ficando para hoje, domingo. Esse adiamento me fez refletir sobre uma resistência de olhar e dirigir a minha fala a mim mesmo. Veja que aqui no blog é comum eu falar sobre mim, mas me dirigindo ao leitor, no entanto o objetivo da carta é falar sobre mim, me dirigindo a mim mesmo. E o destinatário é uma versão muito relevante: a criança. Alguns trechos escrevi chorando, pois me recordei de coisas que imaginava ter esquecido. Estou me sentindo muito bem. Como se tivesse reafirmado pactos antigos.
Gostaria de dividir essa carta com vocês. E também convida-los a fazer o mesmo. Se você escrevesse uma carta a si mesmo quando criança, qual período escolheria e o que você se falaria?
Pedreira, 20 de dezembro de 2020.
Querido, Jonas
Você deve ter hoje sete anos né. Eu sou você, daqui alguns anos... Observo atentamente como você vem se desenvolvendo e me orgulho muito disso. É muito bonita essa sua vontade de mudar o mundo, você quer trazer algo que ilumine toda a humanidade. Como você é apaixonado pelo conhecimento (você sabe que herdou isso de nosso pai, não é?), você está sempre rodeado de livros, de revistas e percebo que gosta muito de conversar com as pessoas ao seu redor sobre a vida, você aprende muito com elas né. Você é muito sensível, Jonas. Possui uma sensibilidade à flor da pele! Sempre ouvindo canções durante as madrugadas nesse rádio velho. Noites em que o sono não vem. Noites em silêncio em que você se encontra consigo mesmo. Você sobe no telhado para assistir a cidade dormir; é uma vista realmente incrível aí do alto, não é mesmo? Eu sei que isso te faz sentir livre, você gosta de sentir o vento soprando seu rosto, posso entender bem essa sensação indescritível de liberdade. Você tem um coração bom, puro e tem uma vontade de sempre ser verdadeiro com você mesmo. Não perca isso.
Sei também que você se sente sufocado, silenciado, sente que existe um lado melhor de você, uma parte imaginativa, sensível e extremamente criativa, mas que deve ser contida. Não há espaço para emoções. Não há espaço para sentimentalismo barato. Entende que deve ser forte, resiliente e resistente, para sobreviver na atual circunstância em que vive. Você reprime as suas emoções e tem levantado barreiras. Está montando um arsenal de lógica, raciocínio, onde tudo, inclusive você, deve ser movido apenas pela racionalidade. Você não quer sentir. Entende que não pode. Entende que é melhor assim. Está aprendendo a atirar primeiro. Vai machucar antes de ser machucado...
Jonas, eu sei de seu sofrimento. Acompanho os seus pensamentos. Gostaria que confiasse em mim agora. As nossas emoções são nossas amigas. Acolha todas elas, até mesmo aquelas que você se envergonha de sentir, como a raiva, o ódio e o medo, pois essas também nos ajudam. Essas emoções também têm um propósito, acredite. A raiva que você sente pode te impulsionar a perseguir os seus sonhos. E seus sonhos são lindos, não desista deles. O ódio é apenas uma faceta do amor, traga esse sentimento e exponha isso. Fale o que você sente, aprenda a não brigar. Aprenda a usar o diálogo, mesmo nesses momentos e verá que tudo se resolve conversando. O medo que tem é de ser inadequado e imperfeito. Jonas, você não precisa ser perfeito, porque a nossa “perfeição” está justamente na soma de todas as nossas partes imperfeitas. Aceite o erro. Admita seus fracassos, eles sempre vão ocorrer, mas trarão boas lições também.
A medida que for crescendo precisará perceber que terá maturidade, conhecimento e novas ferramentas para trabalhar esse turbilhão de emoções que existe em você. Compreenda que as suas emoções às vezes ficam rebeldes e te descontrolam porque você as sufoca demais; você as trancou numa zona escura dentro de você mesmo, mas elas só querem ver a luz também. Eu sei porque você fez isso, você precisava se defender, defender-se de nosso pai. Mas acredite em mim, quando você se tornar um homem vai agradecê-lo por tudo o que ele fez. Nosso pai é um homem intenso e frágil psíquica e emocionalmente e ele se enxerga em você. Ele não tem ódio, nem raiva de você, o que ele sente é medo, porque nosso pai percebe que o seu coração é como o dele, um coração puro demais, um coração de quem não sabe falar “não”. Ele não quer que aconteça com você tudo aquilo que um dia aconteceu com ele, por isso ele tenta te preparar. Talvez um dia pessoas se aproveitaram ou passaram a perna nele e por vir de pessoas que ele jamais esperava, isso o magoou demais. Nosso pai teme se sentir traído (a mesma raiz do seu medo hoje). Ao ver que você nasceu com o “coração” dele, ele tenta te endurecer para os golpes que um dia ele sofreu e que, na cabeça dele, certamente você sofrerá também. Ele quer, a qualquer custo, que você seja a versão melhorada dele.
Jonas, a intenção de nosso pai é nobre. Acredite. Apenas seus métodos e a sua estratégia estão muito errados. Ele pressupõe que o melhor nessa circunstância é forjá-lo na agressividade, treina-lo para resistir à pancada, aprender a suportar a dor e assim você se tornará duro e forte. Nosso pai acredita que se você for capaz de suportar a ele, ninguém mais te derrubará! Então ele está montando uma estratégia de guerra, colocando a si próprio como o seu pior inimigo. Mas devo alerta-lo que apesar da intenção de nosso pai ser positiva, a estratégia que ele está utilizando está totalmente equivocada, porque dessa forma você não sofrerá por um inimigo externo, no campo de batalha o seu pior inimigo será você mesmo, e até que entenda isso, você travará incontáveis batalhas com as suas próprias sombras. Espero que se lembre disso.
Gostaria apenas de pedir a você mais três coisas.
Confie no seu treinamento, pois se tornará um dia um homem extraordinário.
Dê ao nosso pai um voto de confiança, você o ama demais, não sinta ódio por ele, pois não é ele e sim a perversão da ideia dele que está lhe causando dor. Ofereça-lhe a compreensão, a sua compaixão e perceba que toda fera no fundo também está ferida. Se você for capaz de enxergar as feridas de nosso pai, não será capaz de sentir ódio por ele, pelo contrário, sentirá ainda mais amor.
Sobre a nossa mãe... O que falar dela, não é. Ela trabalha demais. Eu sei que você a admira muito e você sonha em ser um dia tão forte e resistente como ela é. Nossa mãe parece uma rocha, não é mesmo? Sempre firme. Sempre em frente. Servindo de alicerce para todos. Ela nunca desanima. Você não consegue entender de onde vem tanta força interior. Mas você logo perceberá que isso é uma forma de fuga também. Nossa mãe se refugia no trabalho para não ter que lidar com os conflitos emocionais que existem dentro de casa. É a forma que ela encontrou de lidar com as circunstâncias atuais. É como se ao pôr o seu dinheiro sobre a mesa, se levantasse e se retirasse dela o seu coração. “Por que ela faz isso?” (você deve estar pensando). Sinceramente, meu amigo, até hoje eu não descobri. E para ser ainda mais sincero com você, eu não acredito que haja um motivo por trás disso. É só o jeito dela de ser. Busque respeitar a sua reserva, o seu silêncio, pois ela ama todos, a sua maneira, e se não amasse, ela não suportaria nem metade do que já passou. Ela tem os seus sacrifícios. Não guarde mágoas nem ressentimentos, porque um dia você vai descobrir que todos na vida têm os seus sacrifícios pessoais. E você será sempre uma mistura dessa união: metade de nossa mãe e metade de nosso pai. Honre isso. Seja alguém ainda melhor para si e para as outras pessoas.
Lembre-se sempre de mim. Eu estarei sempre com você. Ao longo do tempo você me dará muitos nomes: amigo imaginário, intuição, consciência, uma voz interior... Apenas me ouça: ficará tudo bem!
2 comentários:
Top demais cada dia mais adimiro seu trabalho e me apaixono pela pisicanalise
Continue nesse caminho amigo vc é fera
Obrigado! Muito obrigado. 🙏🏻
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