sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Psicanálise não cura

Narciso, d'après Caravaggio. De Vik Muniz.

 

Algumas transformações internas são disparadas por atualizações pessoais necessárias que fazemos de tempos em tempos, algumas de forma involuntária, quando a partir de nossos cacos, de pedaços quebrados e restos de passado, nós podemos esculpir criações que servirão para iluminar novos caminhos.


     De tempos em tempos sentimos que algo em nós está diferente e algumas vezes não legal. Quando é algo físico percebemos com mais facilidade. Se engordarmos, crescemos ou emagrecemos demais, nós adequamos o nosso guarda roupa, por exemplo. Se já não compactuamos dos mesmos valores de um determinado grupo, seja religioso, social, de trabalho, de amizades ou até mesmo familiar, nós damos uma peneirada; filtramos um pouco aqui, vamos selecionando ali e assim naturalmente vamos nos distanciando e aderindo a novos grupos mais similares ao nosso jeito de pensar e viver. Até aqui tudo bem. Não digo que seja fácil fazer isso, mas é bem menos trabalhoso identificar essa necessidade de uma adequação que resulte em mudanças externas. E mudanças possíveis ainda. O problema maior é quando somos “convidados” a criar transformações internas. Aqui complica um pouco. É tarefa de análise.

     É quando nos deparamos com falas e perguntas como as seguintes: “Por que eu amo assim?”; “Por que eu me atraio por esse tipo de coisa?”; “Por que eu sempre faço isso?”; “Por que vira e mexe me pego nesse tipo de situação?”; “Por que não me sinto bem comigo mesmo?”; “Por que eu sou assim, se eu não gosto de ser assim?”; “Por que tenho a impressão de que a minha vida é uma eterna reprise, como se estivesse num looping onde nunca saio do lugar?”. “Eu não quero e não aguento mais isso, eu preciso mudar”. Essas falas são perfeitas para iniciar um processo analítico. Só que aqui entra o x da questão e a resposta é clara: você nunca vai mudar, porque não tem como mudar assim.

     Calma. Antes de você levantar todas as pedras para atirar em mim, me deixe explicar onde quero chegar e a que me refiro. A mudança que a maioria de nós busca quando se depara com perguntas dessa natureza, que vão literalmente na raiz da nossa criação, é uma mudança no sentido de deixar de ser o que se é. Grava isso. Buscamos nos tornar outra coisa em essência. Mas isso é impossível, porque a estrutura psíquica é o que é e não dá para levar tudo abaixo e provocar uma mudança a partir do zero absoluto. Teríamos que morrer e nascer de novo para isso acontecer. Eu sei que é horrível ouvir isso, principalmente para quem sofre, mas o convite que proponho aqui hoje a você é uma reflexão pessoal, porque o objetivo da psicanálise é justamente este, fazer você ser capaz de se sentir bem com a sua própria estrutura. A psicanálise não muda nada em essência, porque já está dado. A psicanálise também não promove cura. Mas então o que a psicanálise faz?

     Uma análise tem a pretensão de fazer você olhar para si mesmo; enxergar a sua questão; falar, pensar e refletir sobre isso, a tal ponto que você encontre meios de coexistir de maneira pacífica com a sua questão, elaborando também novas atualizações estruturais a partir da sua questão em si. Mesmo os típicos neuróticos histéricos, por exemplo, aqueles que convergem suas questões no corpo, o que chamamos hoje de somatização, a psicanálise só poderia remir os sintomas. Isso, por si só, seria uma cura? Essa pessoa mudou a sua estrutura psíquica neurótica histérica e nunca mais ela terá processos de somatização? Os que defendem que a psicanálise cura alegam um “controle” da questão. Controle não é cura. Cura é livrar-se da doença. E justamente por isso não dizemos que diabetes, HIV, hipertensão têm cura, pois os tratamentos eficazes promovem um controle. Assim, psicanálise trata da dor, porém não a cura.

     É interessante também assistir que a neurociência já nos mostrou que, ao contrário do que imaginávamos, não nascemos com uma quantidade definida de neurônios que apenas perderemos aos poucos ao longo da vida. Em qualquer fase da nossa vida há processos de neurogênese ocorrendo e a partir de hábitos e estilos de vida persistentes podemos alterar estruturas cerebrais por causa da neuroplasticidade. A epigenética também já nos mostrou que hábitos e estilos de vida impactam diretamente na expressão ou no silenciamento de determinadas marcações genéticas. Dado isso, podemos afirmar que não somos reféns da genética em absoluto, existe algum ponto onde podemos nos trabalhar. Mas teria como hoje, pela genética, uma pessoa se tornar loura se nasceu com o cabelo castanho? Mudar a cor dos olhos talvez? A sua altura? A resposta é não. O que as pessoas fazem é tingir os cabelos, usar lentes e pôr saltos.

     Quando não estamos contentes com aquilo que somos ou o que nos tornamos, ou quando não estamos satisfeitos com as nossas respostas às circunstâncias é um bom momento para iniciar uma análise. Mas precisamos entender uma coisa básica: não dá para ter tudo aquilo que queremos. Eu sei que seria mais fácil eu vir aqui e dizer que psicanálise cura e que ela vai extinguir o sofrimento humano, mas isso é impossível, porque o sofrimento é uma condição do ser humano. É inerente. É fundante de cada indivíduo. O que a psicanálise faz, ou deveria fazer, é criar um espaço de reflexão que possibilite a atualização de formas saudáveis de trabalhar a angústia que todos possuímos. Vamos fazer uma analogia com a obra de um prédio. Imagine que você tem um prédio num determinado terreno e quer construir um novo no mesmo lugar do antigo. Psiquicamente falando, é impossível você implodir esse prédio e construir um novo a partir do chão. O que você pode, e até deve fazer se não está satisfeito, é elaborar o seu novo prédio a partir da estrutura antiga o que já não é pouco. Você pode reforçar as bases e aumentar os andares. Pinta-lo com cores novas. Abrir mais salas e alterar o layout. Mudar o entorno desse terreno. Com ideias mil, você pode literalmente criar um “novo” prédio. Só que o antigo jamais deixou de existir ali, pois ele compõe essa e cada nova atualização dessa estrutura.

     Não gostaria que interpretasse esse texto como pessimista ou provocativo, o meu objetivo não é esse. O que eu quero dizer é que não há nada de errado com o que somos. Nascemos e fomos criados de uma forma e isso é o que temos de base para viver essa experiência aqui na vida. Eu sei que algumas experiências nos machucam muito, mas algumas coisas em nós poderemos mudar e outras não. Aquelas coisas que não poderemos mudar, que tal transformarmos? E se analisássemos cada pedaço de caco quebrado, aqueles traumas passados, restos de nós mesmos que ficaram pelo caminho e que deixaram cicatrizes e a partir disso – e também com isso – nós bordássemos uma existência diferente? Pintássemos uma nova obra? Que tal criar algo novo a partir daquilo que já nos foi dado pela vida? Não pense que estou diminuindo ou desmerecendo o nosso sofrimento e sei bem que cada um sabe onde a sua ferida dói, mas precisamos entender que a vida é feita de embates e o sofrimento e a angústia fazem parte desse pacote. O que podemos fazer é nos dar uma chance. Apenas uma chance. Uma chance de encontrarmos formas diferentes de bordar os pedaços rasgados da nossa história e a partir dessa imagem atualizada continuar bordando novas formas que nos agradem mais. Isso não vai mudar aquilo que aconteceu um dia, mas isso muda a importância que damos ao passado, com a certeza de que podemos hoje criar um futuro diferente a partir disso. A tal ponto que um dia olharemos para trás com orgulho em dizer que a nossa história tinha tudo para nos limitar, mas foi justamente a partir do sofrimento que passamos que a nossa vida se expandiu com ainda mais força!

Que tal iniciar uma análise?


Feliz Natal

Apesar deste ano conturbado, que você tenha momentos de tranquilidade. Fique em paz.

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