Estou fazendo pós-graduação. Esse período estudando e trocando experiências tem sido bastante esclarecedor para mim. Consigo mais uma vez constatar algo que já havia percebido: o conhecimento nos instiga. Toda vez que adquirimos informações e elas sintetizam algum conhecimento, esse processo provoca um movimento interno que nos transforma de alguma maneira. Inevitavelmente. Acontece com todas as pessoas. Nem sempre é perceptível a nós mesmos num primeiro momento. Talvez seja mais nítido aos que convivem conosco. Nessa linha de pensamento, observo que a sociedade contemporânea vive um momento crítico, impulsionado por duas situações: de um lado a difusão democrática do conhecimento advinda da internet e do outro as desigualdades sociais e uma intolerância às diferenças. Essas situações criaram um ambiente perigoso propício ao confronto. Neste post, quero associar os movimentos atuais – tidos como fascistas no mundo todo – ao fortalecimento pessoal que foi gerado pela democratização do saber. É o acesso ao conhecimento que gera uma necessidade de posicionamento e atuação por parte das pessoas. Seria então a democratização do conhecimento um erro? Precisamos se opôr a esses movimentos sociais de natureza tão incisiva? Qual a relação entre o conhecimento e a atitude de uma pessoa?
Durante sua vida, você adquire conhecimentos e isso traz a você mudanças significativas. As experiências que você passa, as histórias que ouve, as conversas que participa, os cursos que realiza, os livros que lê, os filmes que assiste e as percepções, associações e conclusões que faz disso tudo, te traz conhecimentos. Quanto mais você participa desse processo, se enriquecendo nesse sentido, mais você absorve conhecimento e consequentemente termina se fortalecendo. Essa força, proporcionada por esse acúmulo de saberes, faz com que você sinta, cada vez mais, uma necessidade de se posicionar frente às situações; de se expressar como você realmente é.
Ao longo da minha vida, a medida que ia adquirindo conhecimentos dos mais variados sentia que ia mudando. Na hora não é consciente, a gente não percebe essa transformação pois ela ocorre gradativamente, abaixo de nossa percepção. Ao longo do tempo, apenas ia me dando conta de que alguns gostos, algumas opiniões e algumas formas de me posicionar frente às situações, que antes eram muito certas para mim, iam ficando para trás. Mas foi na faculdade que eu tive pela primeira vez uma percepção mais clara de que estava mudando. Me lembro que desde o primeiro semestre passei a observar amigos e colegas e os vi mudarem no decorrer dos anos. Me questionava às vezes se aquilo seria uma mudança mesmo ou se seria um comportamento latente que apenas vinha à superfície. Casos que iam desde uma pessoa mais passiva que de repente “aprendia” a se colocar e aumentava o tom de voz nas discussões, até casos de pessoas assumindo uma orientação sexual diferente. De início sempre me parecia que esses comportamentos eram inesperados. Mas hoje chego a conclusão que o processo é gradativo. A pessoa vai se fortalecendo aos poucos a medida que vai ganhando conhecimento e então passa a externar as suas ideologias, preferências e opiniões próprias. E pode até acontecer inconscientemente também. Hoje tenho a opinião de que o conhecimento empodera o indivíduo e esse empoderamento pessoal o faz se revelar como pessoa. Inevitavelmente ele vai se mostrar como é. Haverá uma necessidade de se posicionar, de se expressar, de fazer valer os seus direitos.
Retornando à época da faculdade. Passei então a me observar melhor em busca de encontrar alguma transformação e conversando a respeito com pessoas próximas a mim constatei que realmente elas ocorriam. Eu já não era mais o mesmo que tinha iniciado a faculdade. Então, associei esse “fenômeno” ao indivíduo que cursava uma faculdade. Concluindo na época que todo aquele que fizesse um curso superior inevitavelmente iria mudar. Mais tarde descobriria que não foi cursar uma faculdade o mote principal da mudança, mas sim o conhecimento que se é adquirido numa faculdade, e que pode ser adquirido em qualquer lugar. O foco não está na faculdade. Está no conhecimento. O saber é o responsável por nos provocar inquietações; movimentos internos que nos alargam; que encorpam nossa personalidade; que trazem coragem e força para nos assumirmos como somos ou como queremos ser tratados. Conhecimento daquilo somos. Daquilo que podemos ser. Daquilo que queremos ser. Assim como conhecimento daquilo que não gostamos nem aceitamos...
Diante de todas essas reflexões, percebi que o grande poder no mundo nunca esteve em espadas ou armas. Tampouco estava no dinheiro. O poder nunca se encontrou em fontes tangíveis. Desde o início dos tempos, a fonte de qualquer poder está no saber. É o conhecimento que move o mundo. No antigo Egito, por trás dos faraós existiam os sacerdotes que detinham o conhecimento místico dos vivos e dos mortos. Nas monarquias, por trás dos reis existiam os conselheiros que detinham o conhecimento das estratégias de guerras e de política. Nos dias atuais, por trás de governos do mundo todo existem órgãos inteligentes que mapeiam e traçam cenários geopolíticos futuros. O poder nunca estará no corpo que avança, mas sim na cabeça pensante que o guia. Mas se no passado o conhecimento era de domínio particular, hoje o conhecimento é de domínio público. Especialmente hoje em se tratando de internet. A internet globalizou o conhecimento democratizando o acesso. E isso é um problema mais sério do que imaginamos. Nas relações de poder, desde o início dos tempos o conhecimento se encontrou em domínio de poucos porque era conveniente essa situação. As elites monopolizavam o acesso ao saber e dominavam assim o resto do povo que se destinava passivamente à subjugação. Mas conhecimento é poder e hoje empoderamos a todos democraticamente. Na atual era do conhecimento, como administrar uma sociedade de desigualdades históricas em que todos os seus indivíduos podem se empoderar? Como administrar uma sociedade de indivíduos que se empoderam mas têm baixa aceitação e tolerância às diferenças entre si? O empoderamento pessoal, oriundo de um maior acesso ao conhecimento, tem feito as pessoas: questionarem as atuais relações de poder no mundo; conhecerem e exigirem seus direitos; se posicionarem fortemente com ideologias, conceitos, preferências, crenças. Mas infelizmente em lugar nenhum do mundo se empoderou na mesma proporção para uma cultura de tolerância e aceitação.
Eu não estou dizendo que as pessoas estão mais inteligentes. De forma nenhuma. Acesso ao conhecimento não significou necessariamente maior erudição ou inteligência. Eu friso o fato do indivíduo ter hoje apenas mais acesso ao saber. O fato em si é empoderador. Mas são indivíduos em sua grande maioria imaturos psicologicamente; socialmente; politicamente. E não lidam bem com as frustrações. É como darmos voz e poder de decisão a uma criança – e essa analogia descreve perfeitamente os nossos tempos. A difusão democrática do conhecimento tem empoderado por igual indiferença e fanatismo, e não vindo acompanhada de uma cultura de tolerância, aceitação e respeito com as diferenças. Isso talvez explique movimentos muito próximos do anarquismo, assim como a ascensão da “extrema direita” no mundo todo. Demos voz a um indivíduo imaturo para viver numa sociedade que historicamente o segregou, o oprimiu e o excluiu. Misture esse “ódio enrustido” e talvez entenderá a origem desse momento doido que vivemos que nem sociólogos, filósofos, psicólogos conseguem decifrar ao certo. Pessoas pedindo a volta do regime militar no Brasil; crescentes ideias nazistas-fascistas mundo a fora; em todo canto inversão de valores... Vivemos um caos difícil de ler. Difícil de entender. Difícil de administrar.
Concluo que o livre acesso ao conhecimento não é um problema. É um problema uma difusão de conhecimento que não vem pareada de uma cultura de tolerância, numa sociedade excludente. Não quero acreditar que a sociedade contemporânea passará por um processo de apoptose, em que chegará num ponto em que se autodestruirá. Quero imaginar a sociedade apenas como um grande sistema em que se está aumentando gradativamente as energias que circulam por ele. Ou encontramos formas para que essas energias possam circular de forma eficiente, ou então elas destruirão o sistema.
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