Ela gesticulou
brava, gritou, e por um segundo perdeu a cabeça. No outro dia,
lágrimas nos olhos e um pedido de desculpa. “É o meu jeito”,
disse ela envergonhadamente. Eu, apenas observava intrigado a cena. E
o que é pior, sinceramente acreditando na natureza inocente dos seus
atos...
Inocente. É com essa palavra que
começo o post. E é com o seu significado que me
defenderei para escrevê-lo. Sempre fui fascinado pela natureza das
coisas. Parte simples, pura. Não pura de imaculada ou de divina.
Pura de sem retoques. De primitiva. Componente de fábrica mesmo.
Aquilo que veio com a gente na bagagem desde sempre.
Uma vez, ouvi uma
fábula de um escorpião e um sapo. O escorpião queria atravessar de
uma margem à outra de um rio e pediu ajuda ao sapo. Pediu ao sapo
para atravessá-lo em suas costas. O sapo ressabiado disse-lhe: “você
vai me picar”. E o escorpião jurou que não. O sapo concordou e o
levou então. E no caminho ele o picou. Mas antes de afundarem o sapo
disse-lhe: “você é tolo, agora ambos morreremos!”. “Eu sei, e
sinto muito, mas você conhecia minha natureza”, falou o escorpião.
Achei essa fábula
inquietante. E sempre que me deparava com ela ficava incomodado. Com
o passar dos anos, lendo o livro A Cura Quântica, do Deepak
Chopra, encontrei outra versão dessa estória, que completou o seu
significado e me alegrou muito mais. Nessa versão havia dois homens
e um escorpião. Um deles assistia o outro, que era muito sábio,
tentando insistentemente ajudar um escorpião a subir numa calçada e
este sempre picava-lhe às mãos. Foi então que, de tão intrigado,
ele perguntou-lhe: “por que insiste em ajudá-lo se ele só te
pica?!” O sábio sorriu e disse: “mas a sua natureza é picar, a
minha é salvar”,
Achei a segunda estória
muito linda, porque o sábio não lutou para compreender az razões
do escorpião. Tampouco viu perversidade nisso. Ele apenas aceitou a
sua natureza sem racionalizações. E impôs a sua. Permitiu que o
escorpião fosse aquilo que é, sem expectativas. E isso não lhe
ocasionava sofrimento algum. Penso desde então na moral dessa
fábula. Ela me lembra de olhar para as pessoas aceitando aquilo que
vem com elas de fábrica, sem pesar. Eu sei que estou entrando num
campo polêmico entre os sociólogos, os psicólogos e os psiquiatras
até. O homem nasce bom e a sociedade o corrompe, como disse
Rousseau, ou, de acordo com os mais recentes estudos, há um
componente genético ao caráter?
Eu particularmente
acredito que o meio influencie, inibindo, instigando ou modulando
até, mas tem coisa que já vem de fábrica. Pronta. Podem falar o
que for, mas todos nós conhecemos casos de indivíduos que cresceram
em famílias bem estruturadas, foram bem educados, eram socialmente
equilibrados, eram produtivos profissionalmente e de repente, não se
sabe bem o porquê, cometeram uma barbárie. Pais se perguntando onde
erraram. Professores se perguntando o que aconteceu. Amigos se
perguntando como nunca perceberam nada. Simplesmente acontece.
Existem também os
casos de indivíduos que nunca na vida tiveram contato com música,
por exemplo, e no entanto tocam divinamente. Aqueles que nunca
tiveram uma aula de dança sequer e surpreendem até profissionais da
área. Pessoas intelectualmente brilhantes e cognitivamente
avançadas, que mal frequentaram escolas, que cresceram em ambientes
caóticos, com grande tendência à marginalidade e no entanto
despontaram na sociedade com dignidade. Talentos. Dons. Habilidades
específicas. Capacidades instintivas. Acontece.
Quando eu era criança
me lembro que preferia dias chuvosos aos ensolarados. Dias nublados
então eram os melhores. Dias assim me faziam pensar melhor. Achava
bonito paisagens de amanhecer e pôr do sol no mar, mas adorava muito
mais assistir, em dias tempestuosos, os raios no céu, os granizos no
chão, a força das águas nas calçadas e dos ventos nas árvores.
Tudo bem que nos dias seguintes a essas chuvas ficavam marcas.
Rastros de destruição. Mas não se podia culpar a natureza, por ser
a natureza. Concordo, sim, que historicamente a mão do homem
interferiu no clima, modificou e agravou os cenários, mas na
natureza sempre houve desequilíbrios violentos. A vida em si é
violenta. Nós cometemos violência com nós mesmos todos os dias.
Quando cortarmos as unhas e os cabelos ou quando nos depilarmos. Ao fazermos cirurgias plásticas. E durante dietas. Quando
reprimimos desejos, afim de potencializar outros. São verdadeiros
cortes que nos fazemos, podas que de certa forma são violências.
Mas é justamente aí que quero entrar, que é o ponto principal do
post: o homem solitário podia ser selvagem, mas quando escolhera
viver entre outros estabeleceu normas para o convívio harmonioso.
Para haver civilidade. Assim foi preciso policiar a nossa natureza
individual para não ferir o grupo. Ainda mais nos ambientes
profissionais. Mas a questão é: até onde o grupo tem o direito de
decidir quais comportamentos individuais deverão ser aceitos? E
mais, até onde somos capazes, individualmente falando, de controlar
tais comportamentos?
Sinceramente, eu não
sei se tenho essa resposta. Mas é o que tenho me perguntado
ultimamente. E me incomodado também. Principalmente quando assisto
certos julgamentos. As vezes observo julgamentos, julgamentos
severos, a pessoas que dão o máximo de si e só não alcançam mais
porque a sua natureza limita. Uma natureza específica. Vou me
utilizar como exemplo. Eu sou introvertido. Posso até tentar ser
mais aberto, ser mais receptivo, um pouco mais comunicativo, mas
extrovertido, extrovertido mesmo, não serei. Não me seria fácil. E
sei o quanto pode ser difícil também para uma pessoa extrovertida e
inquieta, parar algumas horas para escrever um texto como este. O que
para mim está sendo fácil. Da mesma forma que a Amazônia tem a sua
beleza, o Saara tem a dele. E não se pode esperar o clima de um no
outro. Vai contra a natureza. A gente precisa então mudar o nosso
olhar.
Existem diferentes
formas de se existir nesse mundo, que é também de diferentes
formas. Não quero relativizar leis, códigos éticos ou morais. Mas
todo cuidado é pouco. Certos julgamentos são muito incisivos. Hoje
tenho noção que muitas das minhas decepções tiveram mais a ver
com o meu ego e com o meu orgulho, do que com qualquer outra coisa.
Se eu não esperasse tanto da vida e de certas pessoas, se eu não
julgasse tanto e procurasse mais ver o lado bom em como as coisas
são, sem idealizações, tudo teria sido tão mais simples.
Esse é o nosso
grande desafio. No fundo a vida é como um grande espelho, que
precisamos enxergar além das nossas aparências refletidas nele.
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