quarta-feira, 23 de julho de 2014

POR TRÁS DE OLHOS AZUIS


Ela gesticulou brava, gritou, e por um segundo perdeu a cabeça. No outro dia, lágrimas nos olhos e um pedido de desculpa. “É o meu jeito”, disse ela envergonhadamente. Eu, apenas observava intrigado a cena. E o que é pior, sinceramente acreditando na natureza inocente dos seus atos...

Inocente. É com essa palavra que começo o post. E é com o seu significado que me defenderei para escrevê-lo. Sempre fui fascinado pela natureza das coisas. Parte simples, pura. Não pura de imaculada ou de divina. Pura de sem retoques. De primitiva. Componente de fábrica mesmo. Aquilo que veio com a gente na bagagem desde sempre.

Uma vez, ouvi uma fábula de um escorpião e um sapo. O escorpião queria atravessar de uma margem à outra de um rio e pediu ajuda ao sapo. Pediu ao sapo para atravessá-lo em suas costas. O sapo ressabiado disse-lhe: “você vai me picar”. E o escorpião jurou que não. O sapo concordou e o levou então. E no caminho ele o picou. Mas antes de afundarem o sapo disse-lhe: “você é tolo, agora ambos morreremos!”. “Eu sei, e sinto muito, mas você conhecia minha natureza”, falou o escorpião.
Achei essa fábula inquietante. E sempre que me deparava com ela ficava incomodado. Com o passar dos anos, lendo o livro A Cura Quântica, do Deepak Chopra, encontrei outra versão dessa estória, que completou o seu significado e me alegrou muito mais. Nessa versão havia dois homens e um escorpião. Um deles assistia o outro, que era muito sábio, tentando insistentemente ajudar um escorpião a subir numa calçada e este sempre picava-lhe às mãos. Foi então que, de tão intrigado, ele perguntou-lhe: “por que insiste em ajudá-lo se ele só te pica?!” O sábio sorriu e disse: “mas a sua natureza é picar, a minha é salvar”,

Achei a segunda estória muito linda, porque o sábio não lutou para compreender az razões do escorpião. Tampouco viu perversidade nisso. Ele apenas aceitou a sua natureza sem racionalizações. E impôs a sua. Permitiu que o escorpião fosse aquilo que é, sem expectativas. E isso não lhe ocasionava sofrimento algum. Penso desde então na moral dessa fábula. Ela me lembra de olhar para as pessoas aceitando aquilo que vem com elas de fábrica, sem pesar. Eu sei que estou entrando num campo polêmico entre os sociólogos, os psicólogos e os psiquiatras até. O homem nasce bom e a sociedade o corrompe, como disse Rousseau, ou, de acordo com os mais recentes estudos, há um componente genético ao caráter?

Eu particularmente acredito que o meio influencie, inibindo, instigando ou modulando até, mas tem coisa que já vem de fábrica. Pronta. Podem falar o que for, mas todos nós conhecemos casos de indivíduos que cresceram em famílias bem estruturadas, foram bem educados, eram socialmente equilibrados, eram produtivos profissionalmente e de repente, não se sabe bem o porquê, cometeram uma barbárie. Pais se perguntando onde erraram. Professores se perguntando o que aconteceu. Amigos se perguntando como nunca perceberam nada. Simplesmente acontece.
Existem também os casos de indivíduos que nunca na vida tiveram contato com música, por exemplo, e no entanto tocam divinamente. Aqueles que nunca tiveram uma aula de dança sequer e surpreendem até profissionais da área. Pessoas intelectualmente brilhantes e cognitivamente avançadas, que mal frequentaram escolas, que cresceram em ambientes caóticos, com grande tendência à marginalidade e no entanto despontaram na sociedade com dignidade. Talentos. Dons. Habilidades específicas. Capacidades instintivas. Acontece.

Quando eu era criança me lembro que preferia dias chuvosos aos ensolarados. Dias nublados então eram os melhores. Dias assim me faziam pensar melhor. Achava bonito paisagens de amanhecer e pôr do sol no mar, mas adorava muito mais assistir, em dias tempestuosos, os raios no céu, os granizos no chão, a força das águas nas calçadas e dos ventos nas árvores. Tudo bem que nos dias seguintes a essas chuvas ficavam marcas. Rastros de destruição. Mas não se podia culpar a natureza, por ser a natureza. Concordo, sim, que historicamente a mão do homem interferiu no clima, modificou e agravou os cenários, mas na natureza sempre houve desequilíbrios violentos. A vida em si é violenta. Nós cometemos violência com nós mesmos todos os dias. Quando cortarmos as unhas e os cabelos ou quando nos depilarmos. Ao fazermos cirurgias plásticas. E durante dietas. Quando reprimimos desejos, afim de potencializar outros. São verdadeiros cortes que nos fazemos, podas que de certa forma são violências. Mas é justamente aí que quero entrar, que é o ponto principal do post: o homem solitário podia ser selvagem, mas quando escolhera viver entre outros estabeleceu normas para o convívio harmonioso. Para haver civilidade. Assim foi preciso policiar a nossa natureza individual para não ferir o grupo. Ainda mais nos ambientes profissionais. Mas a questão é: até onde o grupo tem o direito de decidir quais comportamentos individuais deverão ser aceitos? E mais, até onde somos capazes, individualmente falando, de controlar tais comportamentos?

Sinceramente, eu não sei se tenho essa resposta. Mas é o que tenho me perguntado ultimamente. E me incomodado também. Principalmente quando assisto certos julgamentos. As vezes observo julgamentos, julgamentos severos, a pessoas que dão o máximo de si e só não alcançam mais porque a sua natureza limita. Uma natureza específica. Vou me utilizar como exemplo. Eu sou introvertido. Posso até tentar ser mais aberto, ser mais receptivo, um pouco mais comunicativo, mas extrovertido, extrovertido mesmo, não serei. Não me seria fácil. E sei o quanto pode ser difícil também para uma pessoa extrovertida e inquieta, parar algumas horas para escrever um texto como este. O que para mim está sendo fácil. Da mesma forma que a Amazônia tem a sua beleza, o Saara tem a dele. E não se pode esperar o clima de um no outro. Vai contra a natureza. A gente precisa então mudar o nosso olhar.

Existem diferentes formas de se existir nesse mundo, que é também de diferentes formas. Não quero relativizar leis, códigos éticos ou morais. Mas todo cuidado é pouco. Certos julgamentos são muito incisivos. Hoje tenho noção que muitas das minhas decepções tiveram mais a ver com o meu ego e com o meu orgulho, do que com qualquer outra coisa. Se eu não esperasse tanto da vida e de certas pessoas, se eu não julgasse tanto e procurasse mais ver o lado bom em como as coisas são, sem idealizações, tudo teria sido tão mais simples.

Esse é o nosso grande desafio. No fundo a vida é como um grande espelho, que precisamos enxergar além das nossas aparências refletidas nele.

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