quarta-feira, 13 de setembro de 2023

NARCISO E A NOSSA AUTOESTIMA


     Segundo o dicionário Oxford a palavra “estima” se refere a um sentimento de carinho ou de apreço em relação a alguém ou algo. Logo, pode-se entender “autoestima” como esse sentimento ou apreço por si mesmo.

     Está aí uma das grandes dificuldades, não sei se apenas dos nossos tempos, mas certamente que hoje esse é um grande problema para muitas pessoas. Fiquei surpreso quando descobri que uma das maiores dores das pessoas atualmente, principalmente daquelas que buscam por ajuda profissional, é por conta de baixa autoestima. Fiquei surpreso mesmo. Não que eu não imaginasse que isso fosse possível, não quero me fazer de ingênuo aqui, até porque sempre ouço isto, pessoas que sofrem com baixa autoestima, só não tinha consciência da dimensão, de quanto existe uma busca por ajuda por esse motivo. A que ponto chegamos... Será que sempre foi assim?

     Não me lembro de ouvir sobre isso com tanta intensidade como hoje em dia. Embora se analisarmos as redes sociais, principalmente aquelas em que compartilhamos fotos e imagens, é possível enxergar um mundo quase paralelo, não é mesmo? Cinco minutos rolando o feed você já se perguntaria se aquelas pessoas são reais. Pois é, não são. Não somos. Nas redes sociais todas as pessoas são felizes e de bem com a vida, viajando para todo canto com relacionamentos incrivelmente satisfatórios porque é (só) isso o que mostramos. É (só) isso o que vendemos. E não consigo agora deixar de comentar após escrever a palavra vendemos o quanto isso remete a capitalismo. Tornamo-nos produtos?

     Sustentamos ferrenhamente uma montagem de recortes estrategicamente selecionados e editados da nossa vida, mas no fundo as redes sociais não inventaram nada, elas apenas reproduzem o modus operandi da nossa sociedade com seus padrões excludentes. E o objetivo desta postagem – se é que ela será capaz disso – é promover uma reflexão sobre como anda a nossa autoestima e o que estamos fazendo conosco. Na faculdade estamos fazendo um estudo sobre o impacto das redes sociais na autoimagem dos adolescentes e me surpreendo com os dados lidos nos artigos, porque se já é significativo o impacto na autoestima de um adulto, pense no impacto nos adolescentes.

      Embora muito atual, essa reflexão que trago aqui não é novidade alguma, já existem estudos sólidos de anos atrás alertando sobre o impacto das redes sociais na saúde mental. Contudo, todos nós continuamos a usar como fuga da realidade e na construção de um universo ideal, e o que é pior, não sei se conseguimos parar... Acho que por isso me assusto mais, percebo que estamos indo de encontro a um abismo sem conseguir frear. Onde isso vai terminar?

      Esse texto não pretende ser alarmante nem sensacionalista, não gosto de extremismos e não penso que devemos abandonar tudo, excluir nossas redes sociais ou pior: proibir o uso. Censura nunca será o caminho. Sabemos o quanto as redes sociais e a internet de modo geral são bastante úteis e transformaram a nossa vida em vários sentidos. Precisamos então de um caminho do meio. Como sempre, haver um equilíbrio. Mas como retirar agora o espelho de Narciso? Ou melhor: como retirar Narciso de seu reflexo?!

      E tem outra coisa que fico pensando aqui, a partir de um livro que li recentemente, e inclusive publiquei uma frase dele nas redes sociais, que é a seguinte:


[...] uma pessoa que usa uma defesa em geral está tentando, de modo inconsciente, atingir um dos seguintes objetivos (ou ambos): (1) evitar ou administrar algum sentimento poderoso e ameaçador, normalmente ansiedade, mas também luto esmagador, vergonha, inveja e outras experiências emocionais caóticas; (2) manter a autoestima [...]" (McWILLIAMS, 2018, p.122, grifo nosso)


     Quais mecanismos de defesa se levantam para mantermos a nossa autoestima? Negação? - quando negamos a realidade de uma situação ou sentimento. Repressão? - quando reprimimos um pensamento, sentimento ou memória indesejados. Projeção? - quando atribuímos os próprios pensamentos, sentimentos ou desejos indesejados a outra pessoa. Formação reativa? - quando desenvolvemos um sentimento ou comportamento oposto a um sentimento ou comportamento indesejados. Racionalização? - quando justificamos ou racionalizamos comportamentos ou sentimentos indesejados. Eles são inconscientes, quais lança mão?

      Segundo Winnicott (1982) quando existem falhas ambientais significativas durante o desenvolvimento, isso compromete a formação de um verdadeiro self, o que nos faz (precisar) construir um falso self para proteger o verdadeiro. Agora pense. Uma pessoa que tem uma estruturação egoica frágil (o que não é nada difícil) e precisa sustentar um falso self (entenda como um personagem distante da autenticidade) - por proteção -, quando ela encontra nas redes sociais perfis com vidas perfeitas, isso não tende a reforçar ainda mais os seus mecanismos de defesa para manter a autoestima? E se for assim, o gasto de energia dessa pessoa é impressionante porque ela sofre duplamente: 1- por ter que ocultar o seu verdadeiro self; 2- por ter que sustentar intacto o falso self.

      Assim a nossa sociedade não tem sido apenas fonte geradora de neuroses como disse Freud (1908) em A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno, agora ela cria também mecanismos que nos aprisionam nelas, porque nunca dependemos tanto da nossa imagem, sofrendo as consequências disso. Não tenho respostas. Nem aponto caminhos. Pelo contrário, sou um homem de perguntas. Mas sigo desconfiado de tudo o que reluz demais. Sem perder de vista, também, a minha própria escuridão.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

QUANDO TUDO BEM NÃO ESTAR TUDO BEM


      Diante da dor, de momentos de angústia e de sofrimento muitos buscam por saídas que os tiram do contato com o momento vivido, sem perceber que nenhum caminho trará garantia de ausência de sofrimento, porque sofrer faz parte da vida. Tristeza faz parte da vida. Perder faz parte da vida. Viver não tem nada a ver com ganhar ou perder, com felicidade ou tristeza, o valor da vida é a própria vida, está em viver cada instante como se apresenta. Por mais que saibamos que isso é verdade, infelizmente isso foi transformado em discurso de perdedores, de fracassados, de pessoas incapazes de lutar pelos seus objetivos e metas pois não conseguiram administrar a própria vida. Mas isso não é verdade. E infelizmente é essa forma de pensar que tem nos levado rumo aos dilemas atuais, com números cada vez maiores de indivíduos sofrendo de depressão e ansiedade.

Com tanta tecnologia disponível, com tantas possibilidades de encontros, com um número crescente de opções para se aproveitar a vida, não é contraditório estarmos mais tristes e doentes? Essa conta nunca vai fechar enquanto insistirmos em qualificar e hierarquizar emoções e sentimentos humanos.

      Quando aprendemos que existem “emoções positivas” e “emoções negativas” sem perceber estamos qualificando e hierarquizando tais emoções. Construindo assim uma relação binária, assimétrica e hierarquizada entre elas: felicidade>tristeza; amor>ódio; calma>raiva, logo uma melhor, outra pior. Uma boa, outra ruim. Uma de ganho, outra de perda. Uma certa, outra errada. E como dizer que alegria é sempre melhor do que tristeza? Será mesmo? Algumas vezes vivi momentos de grande felicidade que só me trouxeram muita dor de cabeça. Outras vezes foram justamente nos momentos de tristeza que aprendi muito sobre mim e as pessoas que me cercavam. Por que então dizer que o amor é sempre melhor do que o ódio? Amor demais às vezes não é bom. Noutras vezes odiar é preciso. As emoções e os sentimentos humanos estão para além das polaridades positivo e negativo. Essa relação qualificadora moral que temos com os sentimentos e as emoções não é apenas reducionista e dicotômica, é também prejudicial! Ninguém controla o surgimento de emoções, é algo involuntário sentirmos ódio, inveja, raiva ou ciúmes. Se o ser humano saudável é aquele que eventualmente perpassa por todos esses sentimentos, como admitir uma vida saudável composta apenas de alegria, felicidade, amor ou paz? Vida também é dor.

      Ao defender que o positivo, o certo, o melhor é a felicidade, afirmamos também o oposto disso: o negativo, o errado, o pior é a tristeza. Essa forma binária e assimétrica de avaliar nos exige a expectativa de construção de uma vida sem espaço para sentimentos tidos como negativos, pois o “melhor” é o cultivo de sentimentos positivos apenas. Ingenuidade... Se não dominamos nossos afetos, se eles surgem à revelia dos nossos resultados, é um contrassenso associar emoções e sentimentos a conceitos morais de positividade e negatividade, como também é perigoso valorar a vida a partir disso.

      Pense comigo. Se uma pessoa deseja e atinge determinado resultado para a sua vida, logo esse ganho será um resultado positivo. Contudo, se aquilo que é positivo está associado a sentimentos de felicidade, alegria e completude, o que acontece quando uma pessoa atinge tais resultados desejados, mas por algum momento se percebe triste ou infeliz? Seu cérebro buga – como diz os adeptos da linguagem computacional. A pessoa não compreende a incongruência dessa equação pois foi ensinada que todo resultado positivo em sua vida era igual a emoções positivas, uma coisa estaria associada à outra [resultado positivo = emoção positiva = felicidade/alegria/bem estar]. Mas a matemática não fecha com algo diferente disso [resultado positivo = emoção positiva = tristeza/vazio/angústia(?!)]. A pessoa é incapaz de encontrar uma explicação para si nessa circunstância.

      Precisamos então desaprender que existem emoções positivas e negativas. Existem emoções. Existem sentimentos. Sem julgamento de valor. Assim como não existe uma vida melhor ou pior, existe uma vida com tudo aquilo que ela nos apresenta. E o valor da vida é a vida em si. Vivemos tempos em que há uma grande dificuldade de lidar com frustração e em vivenciar estados de humor mais sombrios e depressivos, quando medo, ansiedade e angústia são da condição humana. Você não escolhe ter ou não tê-los, você os terá! É algo dado. Deveríamos ensinar as crianças a viver bem independente dos sentimentos, desatrelando sentimento X resultado, porque a vida não se qualifica, muito menos se classifica por aquilo que sentimos ou que conquistamos, a vida está para muito além de tudo isso! E se uma criança associa sentimento a resultado, quando ela estiver triste poderá entender que a sua vida teve um resultado ruim e sabemos em que isso pode culminar. Da mesma forma o contrário disso, se alcança os resultados desejados mas por algum motivo se sente infeliz, ela não consegue encontrar uma explicação para essa incongruência. Precisamos urgentemente desaprender todo um entendimento moral acerca dos sentimentos e emoções e nos permitir sentir de forma mais livre e aberta, mesmo se em dissonância com a realidade externa.

sábado, 17 de junho de 2023

PEQUENAS MORTES

Natureza-morta com uma caveira, pintura Vanitas de Philippe de Champaigne (1671)

 

      Nos últimos tempos tenho pensado bastante sobre a importância dos términos que vivenciamos ao longo da vida que são como pequenas mortes – simbólicas –, mas que possibilitam a partir disso obter significados possíveis para a nossa própria existência. Sei que essa conversa pode soar um pouco metafísica, ou talvez um tanto quanto esotérica, todavia é mais simples do que possa parecer. Recentemente assisti no Youtube uma palestra do psicanalista Jorge Forbes em que ele falava que o humano se determina a posteriori e achei isso de uma profundidade imensa. Durante esse semestre na faculdade, na disciplina de Psicologia Social trabalhamos sobre um conceito de Identidade de Antonio da Costa Ciampa, ele tem uma dimensão processual e a professora amarrou tão bem os conteúdos com a obra de Clarice Lispector, “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Voltando à psicanálise gostaria de lembrar a técnica utilizada em análise conhecida como corte lacaniano, que se trata da intervenção do analista para pontuar, interpretar a fala do paciente ou encerrar a sessão.

      Mas qual a relação disso tudo? Pense numa frase que não tenha nenhuma pontuação, um texto corrido e fluído; ele não faz sentido. Ou melhor, ele faz todo e qualquer sentido, pois muitas seriam as possibilidades. Fica tudo solto. E o limite é aquilo que dá forma. A forma é o entendimento. Numa frase o que deixa justamente o entendimento preciso ao leitor – ou melhor: o mais preciso possível – do que o escritor pensou ao escrever tais palavras são as pontuações. Como o ponto final, por exemplo. Quando é determinado um ponto final numa frase somos capazes de vê-la de outra forma, falá-la de outra forma, podemos entender um significado, pois é possível inferir uma interpretação plausível. O corte lacaniano se presta a essa função também, pois ele interrompe uma fala livre, fluída e solta, como no exemplo acima. A escuta do analista capta justamente palavras significativas ditas despercebidas ao paciente, como atos falhos. O analista nota isso e rapidamente pontua: “você disse...?”, cortando o discurso e o chamando à atenção do trecho falado, pois agora ele já poderá ser melhor compreendido. Ocorre também quando o paciente obtém um insight importante durante a sessão e o profissional intervém encerrando a análise neste exato momento, possibilitando o entendimento até a próxima.

      Na vida também é assim. A vida é esse fluxo contínuo, corrido, sem uma determinação prévia ou uma interpretação implícita a priori. A vida humana não tem um sentido dado, determinado, cabe a cada um de nós a tarefa de fornecer uma interpretação da própria vida. Como diz Forbes, implicando-se nela. Isso se faz possível pelos términos vividos no caminho; os voluntários, mas principalmente os involuntários. Os términos fornecem um ponto final em que a partir daí, de uma separação, de uma demissão, de uma decisão, de uma doença, de um falecimento de alguém querido, a partir disso que se costuma chamar de um divisor de águas na vida, tem-se condições claras – ou melhor: o mais claro possível – de analisar uma situação vivenciada em toda a sua completude. Quantas vezes vivemos num ritmo mecânico, inconsciente, dia após dia e somos incapazes de entender o que se passa, mas no exato momento que ocorre uma ruptura é como uma pequena morte, a partir desse ponto olhamos para trás e dizemos: Ah! Então era isso... Agora eu entendo. Após esse fato é possível obter um ponto final (se vamos ou não abrir um novo parágrafo na história são outros poréns, cabe a cada um), mas o fato ocorrido proporcionou a compreensão da situação, deixou a leitura possível! Quantos relacionamentos tóxicos há pessoas que se envolvem em que fazem um papel indigno, no entanto não conseguem perceber isso na própria história, são incapazes de ler e entender esse discurso, essa narrativa, até o término da relação. Ou o inverso disso, quando uma pessoa só é capaz de dar o devido valor a alguém, quando essa pessoa já partiu.

      Mortes. Quebras. Cortes. Pontos finais essenciais ao entendimento da vida. Eu sei que é difícil falar sobre isso, lidar com isso, porque não somos treinados no Ocidente a olhar para essas questões. Diferentemente do Oriente que me parece que possui uma relação mais pacífica com a finitude da vida. Temos pavor de falar sobre a morte, porque sequer pensamos na nossa própria morte, que é a coisa mais certa que temos na vida. Se existe algo que podemos garantir sem sombra de dúvidas que acontecerá um dia é a morte, disso ninguém escapará. Em “A Hora da Estrela”, a personagem principal morre atropelada ao sair de uma cartomante completamente feliz pelas coisas que ouviu. Somente uma autora como Clarice Lispector poderia decifrar o final trágico e inesperado de Macabéia, contudo penso que teria sido a morte que deu forma a vida, à identidade da personagem. Em Ciampa, a nossa identidade tem um caráter de metamorfose, como algo que está em constante mudança. Segundo Ciampa, a identidade é apresentada como “estática”, como se fosse uma fotografia, mas essa identidade em si que não se revela, eclipsa o seu real e natural processo de eterna transformação. É como dizer que quem somos estamos sempre sendo.

     E se a gente pensar de um ponto de vista psicológico, o que é o sofrimento psíquico senão uma tentativa, por vezes inconsciente até, de insistir, ou de se identificar demasiadamente, com personas que fomos ou somos de forma fixa e engessada, sem aceitar a transformação permanente e natural do processo de identidade. As pessoas mudam. Nós mudamos ao longo da vida. E a vida se transforma também. Tudo tem fim. Mas o fim pode nos dar os contornos necessários para os entendimentos possíveis das questões vividas. Não devemos ter medo de términos, se é deles que surgem os novos recomeços da vida.

 

"Vai ter que estar preparado para se queimar em sua própria chama: Como você espera se renovar sem primeiro se transformar em cinzas?" (Friedrich Nietzsche) 

 

domingo, 21 de maio de 2023

O ESTUDANTE E O BÊBADO


      Imagino que pelo título curioso, talvez até provocativo desse texto, deva fazer você se perguntar qual seria a relação possível entre um estudante e um bêbado. A ideia era colocar um título provocativo que chamasse a atenção, mas tem sim uma relação... Evitarei rodeios e vamos direto ao texto.

      Por volta dos meus vinte anos, iniciava a minha primeira graduação em Administração, quando tive uma conversa muito interessante que me lembro até hoje. Só um parênteses aqui: sempre presto muita atenção às conversas – não só as que tenho, como também as que ouço de outras pessoas –, as palavras que me chegam, como chegam, por quem, de que formas, sob quais contextos, como me mobilizam emoções e provam reflexões... Essa é uma das razões de eu gostar de psicanálise, pois são as palavras, a escolha ou não delas e como se encaminham às associações significativas seguintes.

      Essa pessoa com quem conversava na época já estava na sua segunda graduação e nós viajávamos juntos diariamente para a faculdade – era uma longa distância. Um dia lhe perguntei se a faculdade a mudara de alguma forma e ela me respondeu que sim; não especificou quais foram as mudanças, mas concluiu que eu também mudaria ao longo do meu curso, principalmente após o primeiro ano. E continuou que talvez eu não notaria isso, mas certamente aqueles com quem convivia mais próximo, como familiares, amigos e colegas de trabalho perceberiam a mudança no meu comportamento. Naquela noite, fui e voltei o caminho todo pensando sobre isso e resolvi então começar uma observação; não só pessoal, mas também nos meus amigos, nos meus colegas de curso, nos meus colegas de faculdade que iniciavam essa jornada comigo. E ano após ano ia nos analisando com o objetivo de verificar essa teoria. De fato, todos nós mudamos significativamente ao longo dos anos. A minha tese para esse fenômeno é a de que conhecimento é poder e o poder transforma, inconscientemente.

      Por exemplo. Há mais de uma década trabalho em ambiente organizacional em recursos humanos, tenho inúmeras amostras desse fenômeno. Indivíduos que antes não tinham qualquer responsabilidade de liderança que quando lhe dada a função de líder, eles se revelam. Sem entrar no mérito de melhor ou pior, isso seria um julgamento de valor, todavia esses sujeitos se transformam. O que de mais reprimido possuem vem à superfície. Quem trabalha ou já trabalhou em RH já viu essa dinâmica acontecer. Foi só dar um cargo de liderança àquela pessoa que ela se transformou.

      Outro fenômeno muito comum, nessa mesma linha, é quando um sujeito ascende socialmente, ou seja, quando uma pessoa muda de classe ou de posição social. Me lembro daquela famosa frase “dê dinheiro a um homem e vai conhecê-lo”. Acredito nisso. O dinheiro, assim como o conhecimento e a liderança promovem uma sensação de poder ao sujeito. Aqui neste ponto que entro para explicar esse fenômeno psicológico observado, essa “transformação”.

     A minha aposta é a de que o poder está intimamente ligado ao inconsciente. Quando uma pessoa se empodera, seja adquirindo conhecimentos, seja ascendendo socialmente, seja exercendo uma liderança, aquilo que de mais inconsciente ela tiver vem à superfície. O inconsciente se faz presente de alguma forma. A minha tese é a de que o poder contraído dá subsídios ao sujeito [do inconsciente] de reaver, de advogar, de reivindicar o seu desejo – mesmo sem consciência disso. Nas menores palavras, nos pequenos gestos, em micro-ações o desejo do sujeito se faz presente, mesmo à sua revelia. Sem que se dê conta muitas vezes, sua forma de falar, de olhar, seu jeito, seus trejeitos, sua postura, seu comportamento entregarão, não precisamente quem essa pessoa é, mas muito além disso: o que ela quer!

      Vou contar uma das histórias que lembro sempre com muita atenção. Trabalhava como analista de recursos humanos numa empresa e havia uma colaboradora que era muito tímida e reservada. Ela era uma excelente profissional, trabalhava com atendimento direto aos clientes e a elogiavam muito; sempre pontual, disciplinada, organizada, educada e muito receptiva. Todavia, ela tinha uma imensa dificuldade de conversar com as outras pessoas, principalmente com superiores. Quando a sua gestora precisava conversar com ela para dar alguma instrução, era começar a falar e as lágrimas já começavam a cair. Não eram críticas nem feedbacks negativos, pelo contrário, até quando recebia elogios ela se desconcertava emocionalmente e chorava. Em reuniões, sessões de brainstorming, ela não erguia a mão, nunca tomava a palavra, não tinha opiniões sobre nada, com tudo ela concordava. Muitas vezes nós percebíamos o quanto podia ser difícil algumas circunstâncias e ela tinha abertura para trazer as suas percepções, suas dificuldades, mas não fazia. Mesmo quando eu tentava conversar com ela – tenho bastante habilidade nisso – ela chorava copiosamente. Tinha percebido que não era algo com o meio, era uma característica pessoal dela.

      Pois bem, passados vários meses, um dia chega à minha sala a notícia que essa colaboradora mudaria de horário, porque iniciaria uma faculdade. Eu que já conhecia esse fenômeno que defendo nesse texto, disse a sua gestora na época: “agora conheceremos melhor essa colaboradora”. Me lembro bem quando ela me questionou o porquê e só respondi o seguinte: “agora ela afirmará o seu desejo”.

     Passados seis meses, o setor dessa colaboradora estava fazendo uma reunião – da qual eu participava – e quando perguntado se todos concordavam, eis que alguém levanta a mão e diz: “Eu DISCORDO”. Era a colaboradora em questão. Corri os olhos em direção a gestora, que já me olhava atentamente... Passados outros seis meses, a empresa fazia uma convocação para trabalhar num feriado e essa colaboradora que até então nunca dissera NÃO para a empresa, desta vez se recusou a vir trabalhar. Estava passando pelo corredor, quando pude assisti-la explicando à sua gestora, de forma assertiva olhando nos olhos, falando em alto e bom tom, as razões pelas quais não viria trabalhar. A gestora me olhou, abaixou a cabeça e deu um sorriso de canto de boca, talvez relembrando nossa conversa. 

     Nesse dia, a gestora veio à minha sala conversar e a questionei: “Ela ainda é boa colaboradora?!”. Ela respondeu, “sim, continua sendo uma das melhores da minha equipe, mas como você disse um dia 'ela afirmará o seu desejo', agora ela se coloca, está impondo seus limites.” Não pude concluir a conversa sem perguntar: “E isso é ruim?!”. Ela respondeu com chave de ouro: “Pela pessoa que sou, que gosto de ser, a minha liderança sabe lidar com isso; outro gestor não sei!”.

      Esse fenômeno observei em muitos colaboradores, ao longo de mais de uma década. O colaborador começa a fazer faculdade e o conhecimento adquirido vai o empoderando e com isso ele ganha maior força para pleitear o seu desejo. Assumir novas posturas. Ter maior posicionamento na vida. Começa a se delinear melhor uma identidade dessa pessoa, naquele momento de sua vida. Acho isso fantástico de assistir, de conviver, de aprender a lidar, porque envolve a capacidade de lidar com as diferenças. E diria mais, envolve a capacidade de aprender com as diferenças. O conhecimento é extremamente poderoso por conta disso. Ele promove a transformação das pessoas. Note por exemplo que, quando se instala uma ditadura num país, uma das primeiras coisas que se procura fazer é retirar ao máximo o pensamento crítico do ensino. Disciplinas como Filosofia e Sociologia sempre foram alvos dessa censura. Hoje em dia o pensamento crítico perpassa todas as disciplinas, mas é inegável que em alguns cursos, principalmente de Humanas, esse critério é forte.

      Bem, mas você deve estar se perguntando em que ponto entra o bêbado do título desse texto. E agora vou fazer uma amarração disso, indo por outro caminho. Existe um jargão dentro da psicologia, mais precisamente na psicanálise, que diz assim, a bebida dilui o superego. Para fins didáticos, o superego é aquela instância moral do indivíduo que freia os seus desejos; são as leis, os valores, os códigos de conduta interiorizados pelo sujeito, advindos dos seus pais, dos pais dos seus pais, que norteiam o seu comportamento. Imaginariamente veja o superego como sendo uma sela de um cavalo ou como sendo uma barragem que impede um fluxo livre dos desejos. Mas isso acontece com uma pessoa alcoolizada? A resposta é não, o indivíduo age livremente.

     Essa represa que age como um censor da personalidade, na embriaguez fica afrouxada, ocorrendo assim o fluxo livre das pulsões. Por isso é muito comum a pessoa alcoolizada ter comportamentos muito diferentes daqueles que ela costuma ter quando sóbria. É comum também aquelas desculpas de que não se queria fazer algo, que foi a bebida que provocou determinado comportamento, que o que foi dito não era verdade. Mas a verdade é que a bebida só afrouxou a censura do indivíduo, e como o álcool é um depressor do sistema nervoso central diminuiu a capacidade crítica do sujeito, mas a bebida não lhe gerou o desejo! A pessoa embriagada faz e fala o que deseja, mesmo sem plena consciência disso.

      Esse texto busca apontar algumas circunstâncias em que há um contato com os nossos desejos e como isso pode acontecer inconscientemente. Pode acontecer através da obtenção de poder advindo de inúmeras formas, como podemos ter contato com os nossos desejos a partir da diluição do superego quando alcoolizados. Isso não significa também que precisamos encher a cara para conhecer o que rola no nosso inconsciente. Embora cada um é livre para fazer e se dar depois a desculpa que quiser.

      Numa análise por exemplo, o que um psicanalista faz é promover um setting onde haja uma associação livre por parte do paciente. A associação livre é quando o paciente é convidado a falar livremente. A aposta psicanalítica é que a partir dessa fala livre, ocorrendo em alguns momentos afrouxamentos da censura dessa pessoa, escape no seu discurso materiais do seu inconsciente. Vestígios do seu desejo. Esses vestígios sinalizam o circuito pulsional, os caminhos do seu desejo. A técnica psicanalítica visa o afrouxamento da censura do sujeito, mas diferente do álcool que deprime o sistema nervoso central e provoca um rebaixamento das funções executivas da pessoa, numa análise ocorre o contrário, o sujeito permanece consciente. Freud abandona a hipnose por isso, porque ela promove um rebaixamento da consciência do indivíduo fazendo sugestões, quando a análise promove o contrário, análise não tem sugestão. Freud também percebe que após voltarem do transe hipnótico, os sintomas dos pacientes voltavam.

      A única sugestão aqui é pense nas associações trazidas nesse texto. Você já tinha notado que as pessoas se transformam, ou se revelam, ao adquirir conhecimento, uma função de liderança ou ascender socialmente? Você que está estudando ou que já estudou uma graduação, nota alterações no seu comportamento? E no comportamento das outras pessoas? Você que tem o hábito de tomar bebidas alcoólicas, nota alterações no seu comportamento quando alcoolizado? E no comportamento das outras pessoas? Você já fez, faz ou já pensou em fazer análise algum dia? Por quê?

segunda-feira, 1 de maio de 2023

AMOR À PESQUISA


Mas não entendam este meu anúncio como se eu pretendesse dar palestras dogmáticas e requerer sua fé incondicional. Esse mal-entendido seria uma grave injustiça contra a minha pessoa. Não quero despertar convicções — quero fornecer estímulos e abalar preconceitos. Se, por desconhecer o material, os senhores não têm condições de julgar, não devem crer nem condenar. Devem escutar e permitir que o que lhes é relatado produza efeito. Não é tão fácil adquirir convicções, ou, se chegamos a elas sem fazer esforço, logo se mostram desprovidas de valor e capacidade de resistência. Direito à convicção possui apenas aquele que, assim como eu, trabalhou muitos anos no mesmo material e viveu ele próprio, repetidas vezes, as mesmas novas e surpreendentes experiências. De que servem, no campo intelectual, as convicções apressadas, as conversões fulminantes, os repúdios momentâneos? (FREUD, 2014, p. 265-266)


       Existe um teórico da psicanálise chamado Jacques Lacan que confesso que eu tinha muito preconceito, mas o engraçado, que na verdade é bastante comum, é que eu também desconhecia a sua obra. Quando digo que é bastante comum é pelo fato de quantas coisas na vida temos preconceito sem nos dar a oportunidade de conhecer melhor. É aquele preconceito sem fundamento. Uma coisa seria eu me dar a oportunidade de conhecer e julgar que não gostei ou que não concordo; outra coisa, completamente diferente, é eu julgar o seu trabalho sem nunca tê-lo conhecido. E fazemos muito isto, seja com teorias, seja com pessoas: é o não gostar simplesmente por não gostar. É a famosa crítica sem criticidade alguma. Deixo aqui então o seguinte questionamento, para você e para mim também: quais julgamentos ou opiniões possuímos sobre temas, sobre pessoas, que nunca nos demos a oportunidade de saber, de conhecer essas pessoas em questão? Essas opiniões têm fundamento?

        Do pouco que li e conheci sobre a obra de Jacques Lacan estou gostando bastante. O que noto, e que percebi em mim também, é que a psicanálise lacaniana é julgada pela dificuldade do entendimento. É claro que sou a favor de que sempre que possível quem se expressa precisa fazer um esforço para [tentar] ser entendido, o objetivo da comunicação é justamente esse. Não faz sentido rebuscar ou florear demais o discurso, a tal ponto que fique incompreensível à maioria dos leitores – a menos que o objetivo seja este, alcançar um nicho muito especializado. Lacan é um teórico difícil de compreender até para quem tem conhecimento aprofundado de psicanálise, no entanto, o fato de escrever difícil não desqualifica a genialidade do seu trabalho, porque vejo muita. Estou lendo e aprendendo sobre o que ele fala sobre os quatro discursos e é muito interessante, principalmente quando transpomos à prática das nossas relações cotidianas e é isso que trarei no texto de hoje. Tenho refletido muito sobre isto: em quais momentos, com quais pessoas, em que locais me utilizo de cada discurso inconscientemente? E quando esse discurso provém do outro? Pesquisem sobre os quatro discursos de Lacan e em seguida se permitam uma reflexão sobre a própria vida.

        Gostaria de compartilhar também que fui aprovado na iniciação científica na UniFAJ, no curso de Psicologia do qual faço parte, com pesquisa em Psicanálise. A minha orientadora é dessa linha. Estou gostando bastante. O tema que escolhi na minha pesquisa é sobre o Fetichismo, quero compreender melhor esse fenômeno psicológico, adentrando na estrutura perversa (se é que fetichismo está lá). Quando lemos a obra freudiana “O Fetichismo” (1927) percebemos que alguns pontos foram levantados por Freud e pretendo investigar se os pós-freudianos responderam os questionamentos que lá ficaram em suspenso. E por que o interesse – podem estar se perguntando?

        Respondo: e por que não? Não tenho encontrado muitos materiais sobre esse tema, o que aguça ainda mais a minha curiosidade e a vontade de pesquisar. Por que há poucos materiais sobre o fetichismo? E sobre a perversão? Existiria algum manto de “moralidade” dificultando o interesse à pesquisa? Ouço que “o perverso [e o fetichista se encontra aqui (?)] não procura pela clínica, ele não sofre.” - essa é uma voz quase monocorde dentro da psicanálise. Quero entender melhor isso. Onde encontro lacunas na teoria, sinto necessidade da pesquisa. Vejo pesquisadores que possuem teses que giram em torno de temas habituais, então me questiono se essas pessoas não estariam mais interessadas num título, do que no compromisso científico. Me lembro quando fiz a graduação em Administração e ao final do curso o tema do trabalho de conclusão de muitos era sobre Motivação. Na época fui à biblioteca conhecer os trabalhos elaborados na última década e poderia afirmar que quase metade dos trabalhos realizados giravam em torno desse tema. Meu trabalho foi sobre MDL – Mecanismos de Desenvolvimento Limpo e Créditos de Carbono, o que na época o meu orientador me advertiu que não encontraria publicações, dado o ineditismo do tema. Entendi ainda mais como necessário.

        Precisamos lembrar que o pesquisador, seja qual área for, ele tem um compromisso com a ciência. E a ciência pressupõe progresso, novas descobertas, o conhecimento científico não é concluído, ou se conclui temporariamente, até que as evidências apontem novas direções. O contrário é dogma. Mas para isso vejo como necessário um espírito de pesquisador. Ao contrário de Lacan, Freud era pesquisador. Quando lemos Lacan percebemos um texto fluido, como um analisante falando em sessão, e ele se apresentava assim, quem assistiu os seminários de Lacan disse que era exatamente desta forma, que Lacan falava de maneira livre, de forma solta, deixando os conteúdos virem. Neste ponto, quando lemos Freud é diferente – e confesso que prefiro. Analisando o texto, a escrita de Freud, percebemos uma postura investigativa, a de um cientista. Freud era um pesquisador! Ele só foi para a clínica porque era pobre e não tinha dinheiro para se casar com Martha. No entanto, foi a clínica que lhe deu subsídios ao desenvolvimento da sua obra. É a clínica que constrói a psicanálise.

        Fico sempre imaginando Sigmund Freud anunciando a psicanálise, na virada do século XIX/XX, falando de sexualidade infantil e sendo visto pelos próprios companheiros médicos como um pervertido, se ele tivesse recuado? Para mim o pai das psicoterapias é Freud, porque começou com ele. Quase todos os dissidentes que formularam mais tarde as suas próprias teorias psicológicas beberam ou vieram da psicanálise. Jung, Adler, Aaron Beck, Perls, Viktor Frankl, entre tantos outros. Wundt é considerado o pai da psicologia moderna, mas os seus estudos não iniciaram com clínica, na época se buscava compreender os processos psicológicos básicos. Teoria psicológica para fins clínicos se iniciou com Freud. A psicanálise não vem da psicologia, ela vem da psiquiatria. É uma rua que caminhou desde sempre paralela. A psicanálise entra nos cursos de graduação em psicologia por conta da história clínica. Lembrando também que não se deve resumir a Psicologia em psicoterapia apenas. Mas, parafraseando o psicanalista David Zimerman, psicoterapia e psicanálise são como dia e noite, embora existem extremos entre a claridade do dia e a escuridão da noite, há também a aurora e o crepúsculo, e neles não se pode distinguir quando começa um e em que ponto terminaria o outro.

        Esse texto é para dividir a paixão que estou tendo pela graduação de psicologia, assim como a paixão que sempre carreguei pela psicanálise. E admito que não enxergo, facilmente, diferenças significativas entre as próprias teorias psicológicas, quando estamos falando de clínica, sejam elas comportamentais, cognitivas, humanistas, psicanalíticas, sócio-históricas. São formas distintas de enxergar os fenômenos psicológicos, o que diferencia é o referencial teórico. Gosto bastante quando os meus próprios amigos e colegas de classe zombam dizendo que não sabem se gosto mais da psicanálise, da comportamental ou da cognitiva, apostando até que termino o curso no humanismo. Ficarei feliz se conseguir absorver o conhecimento de todas as teorias psicológicas. Penso que na clínica o profissional segue uma abordagem específica para se nortear, pois numa forma de enxergar o fenômeno ele conduz o tratamento por um caminho, mas enxergando de outra forma conduziria por outro, não se mistura as técnicas para não se perder e mais confundir o paciente. Mas, quanto mais estudo, mais defendo que a leitura do fenômeno pouco importará no resultado final. Pretendo me manter aberto durante o curso, para aprender e crescer a partir dele, e também para pesquisar e poder de alguma forma contribuir nesse conhecimento. Assim como o Freud.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

PARABÉNS AOS 15 ANOS DE BLOG!

Quem diria que esse blog chegaria tão longe... Certamente eu não diria. Esse espaço completa neste mês quinze anos (!) e quando ele foi criado não imaginava que continuaria por tanto tempo. Já são 306 postagens, entre textos na grande maioria meus, vídeos, imagens e tudo aquilo que compôs a minha história. Tenho muito orgulho, principalmente da pessoa que me permiti tornar a partir daqui. Escrever certamente é uma tarefa fantástica, porque além de ser prazeroso, também possibilita refletir sobre o conteúdo e isso de alguma forma é terapêutico também. Existem muitas formas de terapia, mas todas envolvem algum tipo de produção e os textos aqui são as minhas produções, quando não sempre coloquei os autores, mas o fato é que isso envolveu e envolve até hoje um saber. Um saber muito particular que sem dúvida nenhuma foi o material para muitas ressignificações. É a partir desta palavra que construirei agora todo esse texto de comemoração: RESSIGNIFICAÇÃO.

        A imagem da comemoração de um aniversário é significativa, no entanto escolhi a imagem de uma pessoa soprando vela de aniversário para aludir a um ponto de luz em torno de muita escuridão, porque é exatamente assim que enxergo esse blog; ele sempre envolveu a minha própria escuridão. Engraçado que me lembro certa vez de um amigo me dizer, lá no começo nos primeiros anos daqui, que o incomodava esse espaço ser visualmente muito escuro, o quanto ele tinha vergonha de acessá-lo na faculdade por exemplo, porque esse layout preto lhe remetia a sites de pornografia! Achei muito sugestiva essa associação entre escuridão, sexualidade e psicanálise... E “Freud explica”.

        A analogia com a escuridão é porque escolhi olhar para ela e isso envolveu me voltar ao passado e nesse ponto é perfeita a associação com a psicanálise, porque nenhuma análise passará ilesa disso; você terá de olhar para algumas coisas que possivelmente não gostaria. E costuma ser lá no passado que elas se encontram. Ao longo desse texto farei sempre essa ponte entre escrever e minha própria análise, porque vejo muitas semelhanças. A escrita não foi o meu processo psicanalítico de análise, mas certamente teve muito dele também. Aqui escrevi muito sobre minha vida, sobre minha relação com meus pais, sobre minha infância e isso foi como se jogasse uma luz sobre vários temas complicados e ter de pensar sobre algumas experiências que muitas vezes tentava esquecer. Apesar de hoje enxergar completamente diferente de como já fui um dia, sei o quanto isso foi um processo.

        Quando criei esse espaço estava com dezenove anos e meu pai tinha acabado de falecer. Quando uma pessoa bastante debilitada chega a falecer, você até “entende”, é mais possível de assimilar isso. Mas quando um homem aparentemente saudável entra andando num hospital apenas reclamando de fortes dores no peito, mas sai de lá, no mesmo dia, dentro de um caixão é duro de aceitar. Você se pergunta como(?), quando(?), onde(?), em que momento não foi capaz de notar o que estava crítico. Meu pai bebia muito, ele fumava bastante, não se alimentava direito nem praticava atividade física, mas nenhum filho deveria enterrar seu pai tão jovem de infarto, tendo ele apenas cinquenta anos! Levei semanas para acreditar que num dia meu pai estava vivo e no outro estava enterrando-o. Aquilo mexeu muito comigo e não quis admitir que sentiria muito a sua falta; ele podia ser difícil, podíamos brigar, ter nossas desavenças (normais até entre pais e filhos), mas sempre fomos amigos! Me lembro de sair do meu quarto no dia seguinte a sua morte e olhar para aquela mulher sentada na mesa da cozinha me olhando e pensar o seguinte: “por que não foi você?! Pelo menos ele eu conhecia...”.

        Sim, precisei me autorizar a pensar e a falar sobre isso em análise. Não sabia muitas coisas sobre a minha mãe; sabia que ela era uma mulher extraordinária que sempre trabalhou e... E eu não sabia muitas coisas mais! Não sabia a sua cor favorita, como sabia qual era a do meu pai, porque ele me ensinou a pintar. Não sabia onde ela tinha nascido; com o que brincava quando criança; o que ela gostava mais; ou quais eram os seus sonhos e medos. Sabia muito pouco sobre ela. Tinha apenas um profundo respeito e uma grande admiração por uma mulher que trabalhava em dois empregos, dia e noite, para cuidar financeiramente da nossa casa. Meu pai podia ter todos os defeitos do mundo, ele podia me bater, podíamos brigar o tempo todo, mas ele tinha também boas qualidades: ele era presente, amigo, não media esforços para demonstrar amor pela família, vivia para os filhos.

        Então me sentei ao seu lado na mesa, pus um café e começamos o que sempre fazia com meu pai: conversar. Daquele dia em diante, acredito que passei a conhecer realmente a minha mãe e pude comprovar aquilo que já imaginava, ela é uma mulher tão fantástica quanto o meu pai e eles fizeram uma ótima dupla; ela quem dava o suporte a ele, se meu pai era sinônimo de Intensidade, a minha mãe é de Força!

        Estou escrevendo sobre tudo isso, porque hoje está mais fácil olhar para isso, mas aos dezoito anos não era! Tinha parado de estudar, estava desempregado, entrei num quadro depressivo após a morte do meu pai, minha mãe adoeceu e se afastou do trabalho no INSS, tínhamos muitas dívidas, não podia contar com meu irmão, chegamos até a passar fome nessa época e saber que é você quem está segurando o leme de um barco que está afundando no meio de uma tempestade é muito assustador! Esse foi um dos principais motivos que me levou a criar o blog, escrever era uma forma de dar vazão a tudo isso. Não tinha a menor noção sobre o que escrever, da mesma forma de quando estamos numa análise e não temos a menor ideia sobre o falar, mas da mesma forma que falar sobre, escrever me ajudou. Foi quando entendi que escrever sobre esses temas, e falar sobre eles na minha análise, era uma decisão de olhar para “aquele ponto escuro” da minha vida e isso me ajudou a continuar.

        Muitos textos aqui escrevi chorando, porque era assustador, dolorido, pesado e custoso pensar e escrever sobre algumas experiências, mas eu não desistia! Muitos professores meus de psicologia me parabenizavam pela coragem de me expor desta forma nos meus textos, mas nunca fiz isso para os outros, fazia por mim primeiramente. Tinha a necessidade de escrever sobre a minha história, de pertencer a ela; de aceitar e de integrar cada parte sendo boa ou nem tanto. Aos poucos fui compreendendo que aquilo que chamava de ferida era na verdade a chama que iluminava o caminho! O bom de escrever, principalmente de fazer análise, ou mesmo uma psicoterapia, é a chance de se permitir olhar para o passado, sem julgamento, e poder ressignificar antigas experiências. De repente, aquilo que parecia tão assustador, se tornou até engraçado agora; aquilo que um dia foi motivo de dor, se tornou um motivo de orgulho e de superação; o peso diminuiu dos meus ombros e a vida se tornou mais leve; comecei a ver a beleza do cenário todo, ao invés de me fixar em detalhes e falhas. Hoje procuro pensar na vida como um fenômeno fascinante e isso muda tudo. Isso mudou a mim!

       Às vezes tudo o que a gente procura é um caminho de volta para casa, para dentro de nós mesmos e nos sentir seguros ao passar por processos de dor e angústia, e de luto; mas isso envolve um encontro com as nossas raízes mais profundas que nos conectam com o nosso passado e com a criança que fomos um dia, que de alguma forma habita cada um de nós na fase adulta. Nesse ponto todos somos iguais, parafraseando Sigmund Freud, sofremos de reminiscências (de um passado não digerido) que se atualiza constantemente no presente,  até que possamos integrar esse passado e ressignificar as vivências. 

Assista o filme abaixo, é muito bonito, fala de processos de luto e os caminhos que todos nós fazemos para nos encontrar. Viver é passar por contínuos lutos, dos mais simbólicos aos mais literais.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

QUANDO A ALQUIMIA ENTRA NA PSICOLOGIA


            "Um homem pode sobreviver a todos os seus amigos e parentes, enterrar aqueles que ele mais ama e levar uma existência solitária como um estrangeiro numa época estranha; mas não pode sobreviver a si mesmo e aos fatores internos de sua vida, e não pode enterrá-los, pois eles são seu verdadeiro eu e, assim, são inalienáveis." C. G. JUNG.


            A vida é feita de movimentos cíclicos, de processos circulares, nem sempre lineares, mas de avançar e recuar, de expandir e contrair, de gestar e de parir, parafraseando o ilustre escritor colombiano Gabriel García Márquez: os seres humanos não nascem de suas mães, a vida os obriga a dar à luz a si mesmo várias vezes. E talvez seja isso uma das grandes dificuldades que temos de interpretar aquilo que nos acontece e de insistir num desenvolvimento pessoal, pois esse processo escapa a uma compreensão mais imediata. Farei um esforço descomunal para não “escrever difícil” esse texto e expressá-lo objetivamente, mas confesso que muito do que encontrará aqui está baseado num pensamento junguiano. Embora a meu ver o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung tenha sido um gênio assim como foi Sigmund Freud, ele é o pai de uma das linhas da psicologia mais mal compreendida, talvez a mais injustiçada, a Psicologia Analítica.

            A título de curiosidade, não é comum no curso de psicologia os estudantes conhecerem essa linha teórica; isso se deve em parte porque são diversas teorias psicológicas de fato, então por uma questão de tempo se foca nas “principais”, mas em parte também porque existe de um modo geral um “ranço” com a psicologia analítica, considerada por vezes esotérica, mística ou “menos científica” do que as outras abordagens, o que não é uma verdade. Assim como Freud, pai da psicanálise, sofreu sendo julgado como um “pervertido” na sua época por falar sobre um desenvolvimento psicossexual infantil, o Jung, pai da psicologia analítica, também sofreu na época ao ser julgado como “místico” por falar sobre alquimia, por exemplo. Mas assim como é injusto tudo isso o que se diz sobre Freud, pois a psicanálise não tem esse caráter genital, é injusto também isso o que se diz sobre o Jung, pois a psicologia analítica apenas emprestou a base de uma simbologia que foi extraída de textos alquímicos antigos.

            Gosto da psicologia analítica justamente porque ela trabalha muito bem com simbologia. Alegoria. Metáfora. Jung bebeu de muitas fontes para desenvolver esse seu pensamento psicológico, fosse da filosofia, da literatura, como Pitágoras, Platão, Kant, Goethe, Schopenhauer, Hartmann, Nietzsche, bebeu dos gnósticos, mas o que mais me chama a atenção vem do filósofo pré-socrático, o Heráclito, pois o pensamento junguiano trabalha com a noção de autorregulação dos contrários, de forças antagônicas que se complementam, síntese dos opostos, a interação entre consciência e inconsciência sempre em busca de compensação, de equilíbrio, conteúdos que se chocam e dessa amálgama criam novos elementos.

 

Quantas pessoas passam pelo nosso caminho, ficam um determinado tempo em nossas vidas, deixam-nos uma marca e nos transformam para sempre de alguma maneira?

 

            Assim é a vida, ela também é feita dessas fusões. Nem melhor nem pior (isso é julgamento de valor), mas certamente saímos transformados. E imprimimos também uma marca nessas pessoas que as transformaram de algum modo para sempre. Ninguém sai ileso: nem nós, nem o outro, nem a Vida! Embora isso soa um pouco metafísico, leia de maneira metafórica. Simbólica. Alegórica. Foi com esse intuito que Carl G. Jung escreveu Psicologia e Alquimia, após ter contato com textos alquímicos antigos e ter se aprofundado durante anos nesse conhecimento circunscrito até então a ordens secretas, como a Maçonaria, os Rosacruzes. Jung percebeu que os textos possuíam uma linguagem simbólica, já que o artífice (alquimista) ao escrever projetava os seus conteúdos psicológicos no material manipulado (o mercúrio - considerado a substância transformadora; o enxofre - a força impulsionadora da consciência; o chumbo - as sombras e os aspectos mais baixos etc.), então Jung tomou emprestado a simbologia desse opus alquímico, fazendo um paralelo a sua psicologia analítica que busca o desenvolvimento da psique, justamente através de criação e desenvolvimento de consciência.

            Escrevi no primeiro parágrafo que a vida é composta de movimentos circulares que não compreendemos e assim como o oroboros (a serpente que morde a própria calda), todo processo vivido é cíclico e retorna a si mesmo iniciando um novo movimento. Um dos conceitos mais bonitos a meu ver na filosofia é o devir de Heráclito. Um continuum movimento que transforma a si mesmo. A perfeita representação gráfica disso é o círculo, a elipse. Segundo Jung, a mandala, a mandorla. Quero dizer que muitas vezes na vida retornaremos aparentemente a um mesmo ponto, mas jamais será com o mesmo grau de consciência inicial. O Jung teve a genialidade de constatar e postular que o desenvolvimento da consciência humana é circular, não-linear, cartesiano. O desenvolvimento da consciência mais se assemelha à subida em uma grande escada em caracol; em qualquer ponto dessa escada, ao olhar para baixo sempre se terá a mesma perspectiva, contudo será sempre distinta a altura em que se está.

            Existe uma fábula que é muito propícia como alegoria para esse texto. Vou resumir. Havia três leões numa floresta e os animais precisavam saber qual seria o rei da selva, então foi dado aos três a mesma missão: escalar a montanha mais alta. Os três falharam. Diante do impasse, os animais ficaram então sem saber a quem eleger, porém a águia que os assistiu subir, interviu e disse que deveria ser o terceiro leão. Todos questionaram o motivo e ela respondeu o seguinte: “O primeiro e o segundo não conseguiram escalar e ao descer os ouvi esbravejando à montanha que ela havia vencido. O terceiro leão também não conseguiu escalar, porém sua postura me surpreendeu, quando o ouvi dizer, 'Montanha, você me venceu hoje, mas você já atingiu seu nível máximo, mas eu ainda estou crescendo'. Essa é a atitude de um verdadeiro rei, concluiu a águia.” Na simbologia, o leão é análogo ao Sol e ao ego, que por sua vez é análogo à consciência humana, o que significa que ela está sempre em expansão. Lembre-se disto: muitas vezes uma situação ou um problema na sua vida já atingiu o clímax, o ponto máximo, mas você não, você ainda está crescendo. Essa é a postura daquele que busca pela Individuação.

            O Opus Magnum (A Grande Obra) do alquimista passava pelas operações calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio/putrefatio, separatio, coniunctio, partindo da prima-matéria para se chegar ao ouro não vulgar, o ouro filosófico. A Pedra Filosofal. Tudo alegoria... Cada uma dessas operações alquímicas – que não são necessariamente nessa ordem – possuem uma correspondência psicológica. Na mortificatio/putrefatio por exemplo, fala-se de morte e decomposição, é a fase Melanosis, também conhecida com a Nigredo, que acontece em qualquer momento da vida – várias vezes inclusive - ao longo do nosso desenvolvimento da consciência. É a descida ao inferno. A noite escura da alma. É o choque que a consciência recebe no encontro com os conteúdos do inconsciente por exemplo e nesse momento o nosso ego (enquanto representante da consciência) sempre sai fragilizado, pois é quando nos percebemos falíveis, frágeis, imperfeitos e isso sinaliza para algo interior que precisa “morrer”. Uma idealização de si mesmo, uma fantasia, uma relação; é sempre um processo de luto, mas que concluirá abrindo para a um novo começo, para uma nova possibilidade. Para Jung, as quatro fases alquímicas tem relação com a psique: Melanosis (Nigredo), Leukosis (Albedo), Xanthosis (Citredo) e Iosis (Rubedo).

            Jung encontrou na alquimia a simbologia e o fundamento histórico da sua teoria psicológica, visando representar um processo de desenvolvimento de consciência que todo ser humano passa. Tenha em mente então que todas as nossas relações (seja familiar, afetiva, profissional, pessoal), todas as circunstâncias da vida (boas, ruins), todos os acontecimentos, sentimentos e afetos que experienciamos propiciam a nossa transformação. Viver é alquímico! É um processo às vezes difícil, às vezes doloroso, porque ganhar consciência nunca é fácil, como disse anteriormente nosso ego sempre sairá comprometido de alguma forma. No entanto, não existe obra mais grandiosa do que àquela a qual submetemos a nós mesmos, numa perspectiva de lapidação do caráter, na criação e no desenvolvimento de uma consciência que se harmoniza com os nossos aspectos sombrios e inconscientes, na capacidade do indivíduo de tornar-se a si mesmo e sair uma pessoa melhor do que aquela que um dia chegou. Segundo a psicologia analítica, esse é o Opus Magnum (A Grande Obra) de um ser humano, a qual ele se empenhará do início da vida até o dia de sua morte, sem contudo conseguir concluí-la. Mas a grande missão não está no destino, estará sempre na jornada. Então continue...



***

LENDA HINDU: A Divindade do Ser Humano


Houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram tanto de sua divindade que Brahma, o Mestre dos Deuses, tomou a decisão de lhes retirar o poder divino: resolveu escondê-lo em um lugar onde seria absolutamente impossível reencontrá-lo. Mas o grande problema era encontrar um esconderijo. Brahma convocou, então, um conselho dos deuses menores para resolver o problema:

“Enterremos a divindade do homem na terra”, foi a primeira ideia dos deuses.

Não, isso não basta, pois o homem vai cavar e encontrá-la”, respondeu Brahma.

Então os deuses retrucaram:

Então, joguemos a divindade no fundo dos oceanos”.

Mas Brahma não aceitou a proposta, pois achou que o homem, um dia iria explorar as profundezas dos mares e recuperaria.

Então os deuses menores concluíram:

Não sabemos onde escondê-la, pois não existe na terra ou no mar lugar que o homem não possa alcançar um dia”.

Então Brahma, sem saber mais o que fazer, recorreu à sabedoria do Grande Deus Mahadeva, o Senhor Shiva.

Eis o que vamos fazer com a divindade do homem, falou Mahadeva: vamos escondê-la nas profundezas dele mesmo, pois é o único lugar onde ele jamais pensará em procurá-la. O único caminho que o tornará capaz de reencontrar este poder, será através de Jñana (Conhecimento). Mas não será tão fácil, ele terá que driblar o poder de Maya (Ilusão) e de Anava (Egoísmo), e para isso, terá que reaprender a controlar a mente e os sentidos, observando a Lei Divina do Karma (Causa e Efeito).

Então Brahma ordenou que fossem criados os primeiros ashrams e as primeiras escolas de yoga e meditação. Mas mesmo assim, conclui a lenda, o homem continua dando voltas na terra, voando, explorando, escalando, mergulhando e cavando, em busca de algo que se encontra dentro dele mesmo.

 (Autor Desconhecido)

terça-feira, 15 de novembro de 2022

QUANDO SE ANALISA O DESTINO


O inconsciente familiar forma uma rede invisível, que encerra de forma vertical a todos os membros de uma família, e desde gerações os envolve num nível inconsciente de destino. Da mesma forma age de forma horizontal, com todos os membros vivos da família em uma rede afetiva muito profunda. Assim, a análise do destino considera o homem não como um indivíduo isolado, mas enraizado no contexto visível e invisível que o acompanha por toda a vida, no seu futuro e no daqueles que virão”. (L. Szondi)


      Sempre fui fascinado pela ideia de “Destino”. Durante toda a minha vida, a medida em que ia tomando as minhas decisões, volta e meia me percebia orbitando nessa ideia. O homem estaria livre para construir a própria vida – o que significaria sem determinantes – ou estaria ele predestinado ou condicionado em alguma medida? Essa é uma das reflexões mais célebres – talvez ainda sem resposta – dentro da filosofia, e mesmo dentro da própria psicologia que se pretende a estudar a subjetividade e o comportamento humano. Podemos tentar respondê-la a partir de determinadas perspectivas, sejam filosóficas, biológicas, psicológicas, religiosas, por vezes esotéricas ou místicas, mas a meu entender, no “frigir dos ovos” como dito antigo, essa questão não fecha. Ela é em si polêmica – pois envolve crenças de toda ordem e de toda sorte – e é complexa – como tudo o que envolve o homem e o seu agir no mundo. O objetivo então do texto de hoje é promover a reflexão – ainda que breve – sobre esse tema que me fascina. Destino. E trazer alguns posicionamentos teóricos para cruzarmos com os nossos pensamentos. Gostaria que ficasse com essa reflexão em mente e, caso nunca a tenha feito, tentasse agora se responder:


Você é livre para construir o seu destino?

Se sim, até que ponto?


      Na Grécia Antiga, acreditava-se que o destino dos deuses e dos homens era tecido pelas Moiras. Essas entidades sinistras eram conhecidas como três irmãs, filhas de Nix a deusa da noite, que teriam a capacidade de fabricar, tecer e cortar o fio da vida, sendo então as responsáveis pelo nascimento, crescimento e morte de todos os seres.

      Segundo a bíblia, ao profeta Jonas foi dada por Deus uma missão; deveria ele ir à cidade de Nínive e alertar os que lá viviam do iminente castigo divino, devido ao comportamento das pessoas. Mas, contrariando a vontade do Senhor, Jonas se nega e pega intencionalmente um outro destino. Durante seu trajeto em alto mar, surge uma enorme tempestade e os marinheiros, percebendo que aquilo não era comum, clamam aos seus deuses, até desconfiarem de Jonas, que admite ser por sua causa a ira de Deus e pede que o atirem ao mar que a tempestade cessará. Sem outra alternativa já que a tempestade não cessava, os marinheiros o lançam ao mar. A tempestade se acalma e Jonas é milagrosamente engolido por um peixe grande. Dentro do peixe três dias e três noites, o profeta se arrepende, ora e clama a Deus prometendo cumprir a sua tarefa. Deus ordena ao peixe que vomite Jonas em terra firme e novamente o manda ir a Nínive cumprir a sua missão.

      Vou fazer agora a abertura de um parênteses aqui. O meu nome foi extraído justamente desta passagem bíblica, em homenagem a esse profeta. Não sei se Jung diria que haveria aqui uma força arquetípica operando sobre em mim, mas posso afirmar que, estranhamente, tenho a mesma “personalidade” dessa personagem – ora sábio, maduro, ora infantil, queixoso e reclamão. E durante a minha vida inteira embora sentisse certa “inclinação” para alguns caminhos, intencionalmente peguei outros – como se para afirmar que na minha vida mando eu. Quis escrever esse parágrafo agora para já antecipar mais ou menos a minha opinião quanto a nossa pergunta inicial (lembra?), mas prometo que deixarei mais claro o meu posicionamento até o final desse texto.

      Como sabem (já mencionei em textos anteriores) estou me graduando em psicologia. Neste semestre a professora de Behaviorismo nos trouxe um texto que ilustra bem o assunto de hoje, que se chama "O conceito de liberdade e suas implicações para a clínica", de Alexandre Dittrich (encontra-se no livro Clínica analítico-comportamental. Aspectos teóricos e práticos). Esse texto é interessante porque aborda justamente este embate: o livre arbítrio e o determinismo. Recomendo a leitura para complexificar a nossa análise. Como já dei a dica então, essa nossa professora é uma psicóloga behaviorista – e radical. Então ela tem uma visão de homem que está consonante com esse referencial teórico. Estou tendo a oportunidade agora na graduação de conhecer melhor o que de fato é o behaviorismo, confesso que estou gostando bastante. Da perspectiva do modo causal de seleção por consequência, todos os nossos comportamentos envolvem níveis filogenético, ontogenético e cultural. Como disse lá no primeiro parágrafo, para responder aquela pergunta inicial então, depende da perspectiva.

      Como podem observar em meus textos aqui no blog, gosto bastante da teoria psicanalítica e assim como o behaviorismo, a psicanálise é até hoje considerada por muitos bastante determinista. E existe um teórico, pouco conhecido aqui no Brasil nesse universo, chamado Lipót Szondi. Szondi foi um médico, psiquiatra e psicanalista húngaro que buscou desenvolver uma Psicologia Profunda, criando o que seria uma terceira dimensão do inconsciente; Sigmund Freud (o inconsciente pessoal), Carl G. Jung (o inconsciente coletivo) e Szondi (o inconsciente familiar). Cabe ressaltar que as ideias de Szondi não foram amplamente aceitas e o seu teste projetivo que ficou conhecido como “Teste de Szondi” não foi validado em todos os países (como o Brasil por exemplo).

      Particularmente achei o teste Szondi bastante interessante quando o fiz. Em todo o caso, faço menção a esse psicanalista porque ele desenvolveu o que chamou de Análise do Destino. Como no texto de hoje estou trabalhando – ainda que breve – as ideias de destino, livre-arbítrio, determinismo e psicologia, achei bastante oportuno trazê-lo. Szondi desenvolveu uma teoria biopsíquica e segundo ele, a demanda pulsional reprimida de uma pessoa constitui o fator desencadeador de questões muito mais profundas, que seriam hereditárias geneticamente. O ser humano não teria somente um único destino, mas tantas possibilidades de destino quantos ascendentes marcantes ele trouxer em seu patrimônio hereditário; e essas possibilidades genéticas de destino moldarão desde a escolha de seu parceiro amoroso, até a sua profissão ou uma doença que venha a desenvolver ao longo da vida.

      Após ler o parágrafo anterior, a mim é inevitável chegar nele, o alemão Bert Hellinger, desenvolvedor da Constelação Familiar – prática que até o momento não é reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia. Contudo, o objetivo aqui é fazer apenas um paralelo com a teoria de Bert Hellinger. Leia apenas essa frase dele, "Destino é aquilo que alguém segue e, na verdade, frequentemente sem saber por quê. Quando se olha com exatidão, pode-se ver que o destino é determinado por uma consciência coletiva inconsciente que atua nas famílias. Essa consciência só pode ser reconhecida em seus efeitos." E aí, espero que continue refletindo a nossa pergunta inicial.

      Vamos sair de perspectivas “inconscientes”. No semestre passado li um livro sobre TE (Terapia do Esquema), ela é um modelo de psicoterapia cognitiva que foca no tratamento de diversos transtornos de personalidade. Não conhecia muito sobre psicoterapias cognitivas, em especial esta – ainda sei superficialmente –, mas, dentro da perspectiva cognitivista, pelo pouco que pude entender, a partir da infância o ser humano desenvolve esquemas (padrões de pensamentos e comportamentos) e modos esquemáticos (“estados” que são ativados em determinadas situações) que levará até a vida adulta, e alguns podem ser desadaptativos, disfuncionais, autodestrutivos etc.

      Segundo essa perspectiva cognitivista, o ser humano enxergará o mundo e se comportará nele utilizando esses esquemas cognitivos (chamados também de crenças). Trago esse parágrafo para dizer que, antes de sabermos se de fato um ser humano é ou não livre, talvez precisaríamos, ou faria mais sentido, entender o que uma pessoa acredita. Se para ela o seu destino é definido pelos deuses, assim poderá ser. Mas se ela acredita que constrói o seu destino a partir do seu querer e das próprias ações – como tão propagado hoje em dia no mundo corporativo pelo coaching – assim será também. Por isso é inútil discutir com quem acredita em astrologia, porque a pessoa “enxerga” razão nisso; da mesma forma que é inútil discutir com quem fala no poder do indivíduo de mudar a própria história a partir de forças individuais, pois se essa pessoa acredita nisso, é o que vai (conseguir) enxergar.

      Bem, e qual é a minha visão? Todas estão corretas. Não estou querendo dar uma “ensaboada” aqui. Mas assim como tenho minha fé e acredito em Deus, faz sentido – para mim – que determinadas circunstâncias na minha vida deverei passar, mesmo sendo me dado o livre arbítrio. De um ponto de vista behaviorista, pensando que liberdade não é um estado absoluto, mas que existiria “graus de liberdade”, posso entender que a partir das minhas escolhas obtenho certa liberdade – mesmo ainda condicionado. Sinceramente acredito que todo ser humano carrega uma herança genética de seus antepassados que se traduzirá, em maior ou menor grau, em seu destino – e o melhor a se fazer é ter consciência e olhar para essa ancestralidade o quanto antes possível. Por fim, concordo ainda que o destino do homem pode começar com seu pensamento, e finalizo com a célebre frase atribuída a Margaret Thatcher que diz isto, Cuidado com seus pensamentos, pois eles se tornam palavras. Cuidado com suas palavras, pois elas se tornam ações. Cuidado com suas ações, pois elas se tornam hábitos. Cuidado com seus hábitos, pois eles se tornam o seu caráter. E cuidado com seu caráter, pois ele se torna o seu destino.

 

Destino é uma decisão autêntica do homem. Destino é a decisão de retornar a si mesmo, de transmitir-se a si mesmo e de assumir a herança das possibilidades passadas.” (Heidegger)

 

E aí, você sabe qual é o seu destino?