terça-feira, 13 de setembro de 2022

TERAPIA É UMA DANÇA DE MÃO DUPLA

 

      Hoje pretendo escrever sobre algo que sempre me chamou a atenção dentro de uma análise, e até hoje não encontrei consenso sobre isso, que é uma medida ideal entre o dar e o receber por parte do analista. Aqui me refiro objetivamente a processos de contratransferência e intervenção. Quando comecei a estudar psicanálise, me lembro que as primeiras coisas que pensei foram: “psicanalista precisa ser neutro, buscar ser uma tela em branco, ele não deve se permitir processos de contratransferência e tomar muito cuidado com suas intervenções e interpretações em análise”. Mas com o passar do tempo, estudando outros psicanalistas, como M. Klein, Winnicott e Ferenczi por exemplo, vi outras perspectivas sobre contratransferência e intervenção em processo analítico. Hoje já não acredito que haja uma resposta certa para essas situações, nem uma medida ideal como escrevi logo acima; penso que cabe mais ao profissional, no manejo da transferência do paciente, estar primeiro consciente da sua possível contratransferência e estar preparado para quando ocorrer, embasado teórica e tecnicamente para prosseguir.

      Talvez a partir daqui já deixei demonstrado que tomo alguns posicionamentos a respeito desse assunto, mas para deixar ainda mais claro declaro que não acredito na neutralidade por parte do profissional numa terapia (em qualquer que seja), não acredito que seja possível inexistir uma contratransferência ao longo do processo e acredito que o excesso de intervir e fazer interpretações pode ser tão prejudicial quanto nunca fazê-lo. Ao ouvir a palavra neutralidade automaticamente me vem à mente um robô, qualquer ente desprovido de subjetividade e quando pensamos em seres humanos vamos entrar no campo das subjetividades. Justamente por essa razão a prática do psicólogo ou do psicanalista é tão difícil, pois ele, enquanto profissional e ser humano, possui uma subjetividade que se confunde com seu objeto de estudo, que é a subjetividade do outro.

      É claro que um profissional estudou e estuda exatamente por isso, e faz terapia inclusive, para ter consciência e competência para discernir o que é seu e o que é do outro no processo terapêutico. Imagino que pensem em refutar isso com comparações do tipo “um cardiologista tem coração e isso não dificulta que cuide do coração do paciente”, “um neurologista tem cérebro e isso não dificulta que cuide do cérebro do paciente”, mas a psicologia é uma ciência humana e aqui entram mente, consciência, inconsciência e uma gama de fatores intangíveis e não quantificáveis da subjetividade de todo ser humano; além de fenômenos psicológicos que surgem nas releções, como transferência e contratransferência por exemplo. Estou falando aqui a partir de uma visão mentalista e existe sim uma linha na psicologia, a behaviorista radical por exemplo, que terá muitas ressalvas quanto a tudo isso. Mas de uma perspectiva psicanalítica, processos como transferência e contratransferência acontecem inconscientemente onde existir pessoas em relação. O que compete aos profissionais, sejam psicólogos ou psicanalistas, é ter consciência disso e estar teoricamente embasado e tecnicamente preparado para como manejar isso a favor do processo terapêutico.

      É comum ouvir profissionais que atendem relatarem que muitos pacientes chegam e falam que o profissional anterior era monossilábico, que nunca fazia pontuações nem interpretações de nada e que a maior parte do tempo pairava um silêncio sepulcral nas sessões, o que deixava a pessoa mais angustiada do que quando buscou tratamento. Também não é incomum pacientes falarem o contrário, que o profissional anterior monopolizava a sessão falando o tempo todo, quando não apenas de si mesmo. Quem nunca ouviu isso? Concordo que o silêncio é uma fala importante e que muitas vezes alguns pacientes buscam profissionais que falem só o que eles querem ou esperam ouvir e obviamente este não é papel de nenhum profissional, porque isso não promove mudança nem melhoria, pelo contrário reforça dinâmicas que já existem, que se não fossem disfuncionais a pessoa não estaria ali. O papel de um profissional é fazer justamente a pessoa refletir, repensar e por vezes questionar o lugar em que ela se coloca. E aqui entra aquilo que chamei à atenção no início desse texto: deve haver uma calibração entre o dar e o receber. Não acho que um analista tenha que corresponder, intervir e interpretar somente, mas não acho que tenha que ser indiferente, neutro e impessoal também. Mas se existe um ponto ótimo, qual seria?!

      O profissional, psicólogo ou psicanalista, não é amigo, não faz papel dos pais, não está ali para responder a toda e qualquer demanda do paciente, mas ele é um outro ser humano que também possui subjetividade e fará contratransferência por mais preparado e consciente que for. Ao estudar a psicanálise observamos um Freud recomendando aos psicanalistas não atenderem pessoas próximas, como familiares por exemplo e o próprio foi analista da filha. Freud era bastante comedido quanto a uma contratransferência por parte dos analistas e em seus escritos de casos clínicos vemos claramente ele fazendo isso. Dentro do movimento psicanalítico encontramos psicanalistas contemporâneos a Freud e pós freudianos também com recomendações díspares entre si; analistas à la Klein fazendo intervenções e interpretações exaustivas; à la Lacan mais silenciosos e dispostos a cortes de sessão decorrente de um tempo lógico; à la Ferenczi fazendo recomendações e eventualmente expondo elementos de si, e por aí vai... Assim como ocorre na psicologia com as várias abordagens, ocorre também na psicanálise com vários posicionamentos distintos entre si, por isso é adequado se falar psicologias, psicanálises, no plural.

      Finalizo esse texto com uma alegoria para nos fazer pensar que o fazer psicoterapia – seja qual abordagem teórica for – é um fazer em conjunto, como uma dança de salão, um humano com outro. Assim como numa dança são dois corpos; aqui são duas subjetividades que afetam e são afetadas, inconscientemente até. Ouço muito sobre um paciente que tem que se implicar no seu processo para fazer dar certo, mas ouço muito pouco – ou melhor nem ouço – sobre a importância do terapeuta também se IMPLICAR neste mesmo processo. Não discuto a RESPONSABILIDADE que de fato é do paciente, sempre será, é ele quem sabe qual será o estilo dessa dança e quem ditará o ritmo do seu aprendizado, mas envolveu desde o início dois corpos, duas subjetividades que se encontram, que se tocam. 

     Jung não era psicanalista, mas nesse ponto foi mais sábio, quando disse: “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Parafraseando Nietzsche, não se olha para o abismo sem que o abismo olhe de volta para você. Da mesma forma que numa dança você está exposto a sentir o suor, o perfume, o hálito da outra pessoa, você também a expõe a ter contato com o teu. Num processo terapêutico você não vai afetar sem ser afetado. Você jamais conhecerá alguém, sem se revelar no caminho. A questão então não é se; é quando, como e quanto.


Seja um profissional tão bom que saiba ser humano.
E seja um humano tão bom, que será ainda melhor profissional.

 

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