Viver e sobreviver são coisas muito diferentes na minha opinião e isso aprendi desde muito cedo na minha vida. Essa diferença, entre viver e sobreviver, para mim sempre esteve diretamente relacionada a duas palavras: contenção e transgressão. Durante toda a minha vida sempre prestei atenção a todos os limites e sempre fui – o máximo possível – respeitoso com eles. Nunca fui um filho desobediente, embora em alguns momentos – muito específicos – agi com profunda desobediência. Na escola fui um aluno comportado – pelo menos a maior parte dos anos –, tirava excelentes notas, fui um dos melhores, mas isso não significa também que não cheguei a agir com muita rebeldia afrontando normas e professores. O mesmo vale para as empresas onde trabalhei, instituições em que estudei mais tarde, pois em algum momento transgredi determinadas normas.
Quando eu era criança, em minha casa tinha regras como em todos os lares tem as suas. E eu tinha prazer em respeitar essas regras. Como um filho que “queria ser perfeito”, eu tinha um profundo prazer em fazer tudo como era esperado pelos meus pais. Só tinha um porém: eu queria seguir as regras por ter consciência que era importante isso, não por uma imposição externa. Utilizo essa palavra externa, pois já havia em mim nessa época uma imposição interna. Sou um perfeccionista por excelência. Meu pai era perfeccionista também, logo herdei isso. Eu trouxe isso na genética e fui educado num ambiente marcado por regras rígidas e punições severas. Dessa forma, foi desenvolvido em mim desde muito novo um crítico interno, um superego bem introjetado. Então eu já me cobrava muito internamente. O resultado dessa autocobrança também me gerava um gozo. Eu me sentia bem comigo mesmo. Me sentia digno da confiança dos meus pais, pois fazia o que precisava ser feito. Minha parte para a contribuição no todo era dada. Então eu tinha uma sensação de dever cumprido, gostava disso. Gosto até hoje.
Só que o meu pai tinha uma característica que era a sua pior: ele gostava de provocação. Várias vezes, quando todos na casa estavam quietos, calmos, cada um em seu canto, parecia que esse clima harmônico, essa homeostase o incomodava, principalmente quando ele já estava bêbado. Então ele mirava alguém e começa a cutucar essa pessoa verbalmente; fosse através de brincadeiras de mau gosto; algum comentário ácido; num conselho que ninguém havia pedido; ou no meu caso: crítica e ordem desnecessárias. Para ele não bastava que eu conhecesse e respeitasse as regras da casa, ele ainda fazia questão de ordenar a mim que elas fossem cumpridas. “Eu mandei você fazer isso!” – sendo que eu já estava fazendo. “Não é para fazer aquilo!” – quando eu já não fazia. Isso me gerava raiva, porque eu não achava certo provocar quem estava quieto; cobrar aquilo que já estava sendo feito; ser autoritário e não saber conversar com as pessoas. Eu respeitava as regras e os limites de todos, mas os meus próprios eram constantemente ultrapassados. Se tem algo que até hoje não admito é invadirem o meu espaço, pois procuro respeitar e entender o espaço das pessoas. Então soma-se uma pressão externa que eu sentia, àquela que eu já me impunha diariamente, eu vivia no limite. Continha os meus impulsos e procurava descarregar toda a raiva reprimida, velada, ouvindo música (geralmente rock); fazendo flexões e abdominais no meu quarto; saindo para correr; nas aulas de Artes; nos desabafos com os amigos; nos episódios de compulsão alimentar; nas redações na escola. Me lembro que aos dez anos uma professora me disse: “Minha língua até coça para ler as suas redações, guarde todas elas, porque um dia ainda vou ler um livro seu.” Isso me motivava bastante, porque escrever sempre foi a principal forma de sublimar a angústia que eu sentia.
Através da contenção dos meus impulsos e da sublimação, de primeiro momento sentia desprazer, mas aos poucos a raiva passava e eu voltava ao meu estado normal, e a longo prazo sentia algum prazer no autocontrole. Havia entendido esse mecanismo. Só que não me sentia plenamente feliz também. Me sentia me enganando. Conformado. Castrado. Traído. Como se fosse obrigado a dizer sempre não a mim mesmo, por respeito à Lei e para não gerar um desconforto no meio. Me perguntava até onde isso é viver ou sobreviver?
Só que um dia eu entrei na adolescência e na puberdade com os hormônios à flor da pele, um dia foi o estopim – eu já vinha pressentindo isso, pois estava no limite do meu limite e de certa forma desejava também isto que viria a acontecer: a transgressão. Foi nesse dia em que eu gritei mais alto do que o meu pai. Eu me levantei da mesa. Eu virei a mesa. A partir desse dia transgredi todas as regras da casa e nunca senti tanto prazer na vida até então! Havia muito gozo na transgressão. Mas era um gozo mortífero também. E mais tarde eu entenderia bem o porquê... Ao longo do tempo, o prazer que eu sentia em transgredir só diminuía, não me sentia mais bem em quebrar as regras, enquanto uma sensação de depressão que eu sentia após a transgressão só aumentava. Na maior parte do tempo só sentia vergonha, uma sensação de inadequação, como se estivesse indo ladeira abaixo. (Fiz um gráfico para retratar essa minha relação de (des)prazer na contenção e na transgressão).
Se viver com a contenção dos meus impulsos para mim não era viver, era sobreviver; descobri que viver transgredindo também não era vida, era buscar a morte. Nietzsche tinha razão quando disse que “o homem é uma corda estendida entre o animal e o Super-homem”. Tenho particular atração e repulsão pelo limite. Mas hoje entendo que o limite é sim aquilo que nos castra, mas também nos organiza e mantém a nossa existência. Limite é poder. Mas também compreendo que transgredir faz parte, ainda que não seja esperado. A transgressão deve ser a exceção, jamais a regra. Mas o gozo da transgressão existe e às vezes ela é necessária até para a manutenção do limite.
Muitos podem analisar essa minha história pessoal de transgressão, principalmente os amantes da psicanálise, com o desenvolvimento de uma estrutura perversa. Será? Sou suspeito para falar, porque dessa tríade freudiana sempre foi a que mais me despertou a atenção, ainda mais hoje que sou estudante de psicanálise. Resolvi escrever sobre esse tema com um propósito. Nos lembrar que a psicanálise ainda deve muito a essa estrutura. A psicanálise freudiana se concentrou na neurose e os pós-freudianos até se ocuparam da psicose, mas a perversão mesmo, carregada de estigmas e estereótipos morais, confundida com perversidade, ficou relegada a uma má compreensão ao longo da história. Se a neurose é o negativo da perversão e o perverso é aquele que faz o que neurótico morre de vontade, de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, não seríamos todos perversos? Talvez hoje em dia – e daqui em diante cada vez mais – essa poderá ser a estrutura psíquica mais predominante nas pessoas. Preparem-se, psicanalistas! Talvez seja o momento da psicanálise atualizar o olhar e os estudos sobre essa estrutura, pois só deem uma olhada na geração atual, nas gerações que estão vindo aí, prestem atenção ao que está surgindo na clínica...
Para finalizar essa postagem, um trecho do livro “A parte obscura de nós mesmos. Uma história dos Perversos", da Elisabeth Roudinesco.
A perversão, portanto, é um fenômeno sexual, político, social, psíquico, trans-histórico, estrutural, presente em todas as sociedades humanas. E se todas as culturas partilham atitudes coerentes — proibição do incesto, delimitação da loucura, designação do monstruoso ou do anormal —, a perversão naturalmente tem seu lugar nessa combinatória. Porém, pelo seu status psíquico, que remete à essência de uma clivagem, ela é igualmente uma necessidade social. Ao mesmo tempo em que preserva a norma, assegura à espécie humana a subsistência de seus prazeres e transgressões. (…) Que faríamos se não pudéssemos apontar como bodes expiatórios — isto é, perversos — aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos?
(...) os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos.
2 comentários:
Lendo esse texto vi uma parte da minha infância principalmente na parte onde um pai alcoólatra faz cobrança de provocações e com tom de humilhar filho e como texto conta eu aos 13 anos confrontei meu pai não tive escolha enfrentei ele para poder ter paz .
Parabéns pela história 👏👏👏👏
Boa noite! Tudo bem?
Obrigado por compartilhar sua história! Espero que hoje esteja bem. Um abraço.
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