Reza a
lenda que um vampiro jamais pode adentrar um recinto sem antes
receber do morador um convite. Mesmo dono de muita astúcia e de uma força
física sobrenatural, mesmo com um charme que seduz suas vítimas,
ainda assim necessita de um passe livre para entrar. Quando criança
era fascinado por livros e filmes sobre vampiros e chamava minha
atenção o momento nos contos quando um vampiro, imóvel frente a
uma porta ou janela, aguardava ansiosamente por uma solicitação
para sua entrada. Pensava comigo, “Que bobeira isso! Ele pode
muito bem forçar a passagem, por que precisa ser convidado?”.
Comparo
essa passagem a um hábito que eu tinha de invadir a mente das
pessoas. Hábito esse que confesso que me divertia muito. Via
qualquer oportunidade de conversar com alguém como um momento
destinado à reflexão. Qualquer um que cruzasse meu caminho e
começasse um papo seria involuntariamente posto a pensar sobre suas
falas e eu fazia isso movido muitas vezes por um prazer sádico,
ainda mais quando a pessoa se julgava muito convicta de suas ideias e
isso era posto à prova. É claro que o espaço destinado à reflexão
onde uma conversa vai a um estágio menos superficial, filosófico
até, é interessante, jamais advogaria contra isso. Contudo: 1 –
existem momentos específicos para algumas conversas; 2 – não são
todas as pessoas que estão abertas – sequer preparadas – para
refletir sobre certas questões; 3 – um diálogo mais reflexivo
precisa estar pautado por um interesse genuíno pelo
compartilhamento, pela iluminação e na organização de ideias de
uma pessoa e não para confrontação de suas convicções. Achava
engraçado entrar no psicológico de alguém com perguntas
reflexivas, identitárias, existenciais, para assim inevitavelmente
fazê-lo questionar suas próprias crenças. Tinha comigo que ninguém
deveria viver uma vida sem se questionar o porquê das coisas e me
divertia em extrair isso das pessoas. Achava que se não fizesse bem
a elas, mal também não faria porque estava apenas ajudando a
sair de uma total alienação. E de boas intenções o inferno
está cheio, não é?
Pouco
tempo convivendo com alguém captava uma série de sinais (olhares,
falas, entonações, repetições, silêncios, pausas, trejeitos,
posturas, expressões, a escolha e o encadeamento dos temas das
conversas etc.), ia catalogando mentalmente tudo isso, montando uma
espécie de mosaico, um quebra cabeça sobre a pessoa, até chegar um
determinado momento em que faltavam ali algumas peças para fecha-lo e
era nesse ponto que entrava. Dono de uma curiosidade visceral, tinha
comigo que as pessoas estariam “jogando” comigo, quando me
apresentavam uma realidade cuja qual já intuía faltar fragmentos de
verdade. Quando, por exemplo, um amigo dizia estar muito certo
sobre uma escolha profissional, ou sobre o quanto estava feliz num
emprego, ou o quanto jurava ter achado o grande amor de sua vida, já
me munia de um arsenal de perguntas que o levaria a repensar tudo
isso na expectativa de “validar” essa segurança dita possuir. O
jogo começava. Um jogo mental. E se após pensar e refletir tudo o
que me dizia, essa pessoa permanecesse intacta em suas convicções,
ela teria ganho o jogo e com isso reforçaria sua própria motivação.
Porém, caso titubeasse e se perdesse nas respostas se revelaria um
desconhecimento total de seu real propósito, mostrando assim o seu
estado de inconsciência. Nesse caso eu teria lhe feito ainda um
favor ao trazer isso à tona.
Mas será mesmo? O mais curioso, diria até perverso,
era que nesse momento tinha em mim um gozo ao assistir o desmanchar
em minha frente das certezas e seguranças de uma pessoa. Parecia o
próprio diabo plantando dúvidas na mente e no coração dos
fiéis...
Em
que momento tudo mudou? Quando entendi que jogava sozinho.
Esse
tipo de jogo
nunca é a dois. Nunca é sobre o outro também. É sempre sobre nós
mesmos. E aqui entra o entendimento psicanalítico desse meu
comportamento, já que um dia eu fui obrigado, por circunstâncias
impostas pela própria vida (porque a vida também ensina), a virar o
espelho para mim mesmo e me encarar de frente. Então o feitiço se
voltou contra o feiticeiro. Vi que o inconsciente da história todo
tempo era eu. Me achava maduro, astuto, mas vi em mim insegurança,
indecisão e medo, senti a amargura que eu tinha. Só quem carrega
uma amargura no coração pode se regozijar com a infelicidade
alheia. Eu vestia uma carapaça dura apenas para encobrir um núcleo
frágil, para esconder uma criança interior insegura. Por não
conseguir conviver com essa dura realidade acabei recalcando minhas
próprias inseguranças e indecisões e projetando nas pessoas ao meu
redor, para assim, ao inquiri-las e assistir desmontar suas
convicções, quem sabe me sentir melhor. Talvez menos só. Menos
mau. Menos falso. Só queria não ser o único...
Receber
de volta o olhar do meu próprio abismo me fez encarar alguns
demônios. Descobri que só haveria um caminho de volta e essa
escalada passaria por um longo processo de aceitação. De
autoaceitação. E eu não sabia nem por onde começar... Aceitar que
não era perfeito e jamais seria – então
por que cobrar isso das pessoas?
Aceitar que eu não era tão seguro, tão decidido, tão forte, que
eu não tinha todas as respostas e rotas para a minha própria vida –
então como vasculhar
isso nos outros? A
verdade é que eu seguia a minha vida do jeito que dava, com as
ferramentas que tinha no momento e isso sempre foi suficiente –
então por que cobrar
tanto preparo dos outros?
Precisei aceitar que no fundo estava com medo, com raiva e tinha
tantas dúvidas quando meu pai morreu. Me sentia só. Me sentia
perdido. Sem rumo. Mas não queria dar o braço a torcer. Não queria
recuar, mesmo já dando muita cabeçada (eu nunca soube aceitar quando é hora de
parar). E descobri que hastear a bandeira branca também faz parte.
Isso não é covardia. Não é abandono. Detesto essa sensação...
Fui
me perdoando. Me validando. Acolhendo minha impotência, minha
vulnerabilidade e admitindo certas carências (e eu odeio admitir
isso!). Descobri que o autoconhecimento nunca terá fim, que esse
processo é como descascar uma cebola: há camadas e mais camadas, e
quando acreditamos que chegamos a um estágio final de
autoconsciência percebemos o quanto estamos inconscientes ainda em
vários outros aspectos. E está tudo bem. O importante é continuar
o processo. Hoje me sinto melhor. Não alcancei uma categoria de
“finalizado”. Mas de “Integrando”... Em algum momento tive
que abraçar a criança interior insegura que vivia aqui. Toca-la.
Tangenciar suas dores. Me assenhorar do que é meu. Compreendi que
posso ganhar um presente da vida, por exemplo, mas se vou gostar ou
não, se vou jogar fora ou guarda-lo, primeiro preciso segura-lo em
minhas mãos. Então só tem como trabalhar aquilo que tocamos.
Precisamos nos apossar do que é nosso. E cada um tem o seu próprio
tempo, não se deve apressar os processos, nem os nossos, nem os dos
outros.
Aqui
entra uma conversa que tive certa vez com uma psicanalista e na
época em questão não tive maturidade psíquica suficiente para compreender a magnitude dessa conversa,
mas hoje me parece mais clara. Estava fazendo MBA e um dia na
sala de aula comecei a conversar sobre psicanálise com uma
psicóloga que era também psicanalista. Não sei se ela notou, mas
no decorrer da nossa conversa fui ficando bastante incomodado, até
irritado, com algumas de suas falas e respostas, conforme se percebe abaixo.
- Por quê? – perguntou ela com curiosidade.
- A psicanálise me parece muito passiva – respondi.
Com uma expressão plácida, ela
me pediu que falasse mais sobre isso.
- Você é psicanalista, se
você perceber que a pessoa está muito calada ou não está falando
o bastante, o que você faz?
– perguntei a ela.
- Nada
– respondeu decididamente.
- Mas você não acha que
deveria fazer a pessoa falar?
– indaguei.
- Não.
E antes que eu pudesse abrir a
boca, ela me perguntou:
- Quem procurou a análise?
- Mas a pessoa está precisando
de ajuda – disse já incomodado.
- Será mesmo?
– perguntou ela me fitando nos olhos.
- Óbvio que está! E às vezes
é preciso cutucar a pessoa para ela soltar aquilo que você precisa
saber – respondi já
num tom mais elevado.
- Eu não preciso
saber nada, quem precisa é ela
– disse ela com um leve sorriso.
Já estava bastante desconfortável
com suas respostas e imaginava se eu fosse um de seus pacientes. Então fiz uma última
pergunta a ela:
- Mas se a pessoa não se
pronunciar ou ficar “monossílaba”, como ficará essa situação?!
- Talvez ainda não seja o
momento certo para ela. Quando esse momento chegar, e ela de fato
quiser, ela voltará mais aberta a isso.
Nesse
dia fiquei muito inconformado! Eu não conseguia imaginar essa psicanalista
de fato auxiliando outra pessoa com essa sua postura. Fiquei imaginando-a
num consultório fazendo isso. E na minha cabeça ela estaria jogando
toda a responsabilidade do processo à pessoa. E a pessoa nem sabia o que fazer... Ela teria que intervir, interferir naquela situação e de fato ajudar a pessoa!
Os
anos foram passando, muita coisa aconteceu na minha vida e hoje
compreendo o quanto estava errado, não só nessa conversa, mas na
minha postura ao tentar salvar as pessoas.
Hoje percebo, nessa conversa com a psicanalista também, que ela não
estava jogando a responsabilidade à pessoa, a
responsabilidade é e sempre será da própria pessoa!
Não tem como ajudar quem não pediu a nossa ajuda. Assim como é
impossível fazer aquilo que somente cabe à pessoa. Só que isso
exige – de quem ajuda – humildade! A confusão que ocorre na
grande maioria das vezes nos nossos relacionamentos é que nos
colocamos numa posição egoica de “salvadores
do outro”.
Nos dando um poder ilusório. Ficando numa posição protegida de
quem detém o caminho e o conhecimento da jornada. Revela muito mais
uma necessidade – de quem ajuda – de ser essencial e
imprescindível na vida do outro, já que “o
que seria dessa pessoa sem mim?”.
Esse pensamento é carente, arrogante, falso, ineficaz e potencialmente tóxico. Ninguém muda ninguém. Ninguém pode saber o
que é melhor para outra pessoa. É impossível viver pelo outro,
aquilo que só cabe ao outro vivenciar. Mesmo numa análise, o
psicanalista não é o protagonista do processo, ele é um mero
facilitador. E ele nunca poderá resolver a vida de ninguém. Esse é
talvez o maior equívoco que uma pessoa pode ter – que eu também
tinha. Que podemos salvar as pessoas. Salvo casos de doenças mentais, principalmente em estágios mais graves, que aí sim de fato necessitará de uma intervenção externa, principalmente da família. Mas não é disso que estou falando aqui, já que esses casos nem vão a um psicanalista, e caso ocorra o próprio já percebe a demanda e encaminha ao médico psiquiatra. Agora, quando uma pessoa está em pleno gozo de suas faculdades mentais, entenda que cabe a ela, as rédeas de sua própria vida.
Precisei
passar por alguns processos dolorosos e difíceis de elaborar, para
compreender minimamente tudo isso que relatei nessa postagem.
Portanto, se conselho fosse bom, eu te diria:
Não
entre nesse jogo, ainda mais sem ser convidado. O papel de Salvador é gostoso,
mas o preço também, é bem alto!
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