domingo, 4 de agosto de 2019

LIMITE É PODER



"O que não me mata, me torna mais forte."
Friedrich Nietzsche


Eu era bastante jovem ainda quando comecei a refletir sobre a existência de uma força interior que era imprescindível adquirir para conseguir sobreviver na vida. É curioso quando faço o exercício de olhar para trás e fazer uma imagem mental que me retrate minha infância, porque é inevitável vir à mente uma paisagem inóspita, onde um garoto que está sozinho procura sobreviver com os poucos recursos que possui ali. Só que isso é uma inverdade, porque nunca vivi sozinho, meus pais sempre estiveram presentes e nunca me maltrataram – pelo menos não fisicamente –. Mas foi exatamente essa imagem que eu captei do ambiente familiar. Isso é o que importa para o nosso cérebro: como fazemos a leitura. E essa percepção significou duas coisas para mim desde então: minha infância teve de fato pouco calor humano (amorosidade, atenção, compreensão por parte deles) e tive uma interpretação disso pondo mais intensidade emocional talvez (distanciamento, exigência, rigor, pressão, responsabilidade). Em miúdos, a minha infância foi sim difícil, mas eu dramatizei ainda mais com a minha percepção. Nem tudo foi como eu captei. E aí me veio a primeira questão crucial: tive uma infância difícil porque li assim ou li assim porque tive uma infância difícil?

Quando constatei esse mecanismo fiquei literalmente fascinado e assustado ao mesmo tempo. Então passei a adquirir em toda oportunidade que tivesse mais e mais musculatura emocional, não só para compreender melhor esse mecanismo que eu tinha, mas para ir lidando melhor com as experiências que vivenciava. Eu sabia, e tinha muito claro isso, que eu precisaria ser forte, em todos os sentidos. Dizia para mim mesmo: - “É isso o que tem pra hoje? Ok, eu topo. E vamos ver até onde eu dou conta.” Estamos falando aqui da percepção de uma criança ainda, mas incrivelmente foi exatamente assim que eu encarei a minha criação – “eu tenho que dar conta”. Procurei encarar as cobranças e os limites como um desafio pessoal onde eu teria que suportar, sobreviver e vencer! E o primeiro oponente no jogo: meu próprio pai! Tive então uma infância difícil recheada de momentos assim, conflitantes; momentos que exigiram muito de mim, emocionalmente falando. Da minha infância até a adolescência fui posto, ou me pus, em situações onde precisei suportar e saber lidar com fortes conteúdos emocionais já dentro de casa. 

Minha educação foi rígida, ficou mais a cabo do meu pai, porque minha mãe era meio ausente, ela tinha dois empregos, trabalhava dia e noite, então quem cuidava mais de mim era o meu pai. Só que ele era severo, ditatorial e tinha uma forma de nos educar (o que para ele era educar) agressiva. Fazia questão de ser respeitado, de ter sua autoridade inquestionável, os seus “nãos” eram altos em bom tom, os seus castigos eram rigorosos e a sua mão bastante pesada! Eu o odiava quando era criança. Era difícil pra mim compreender como um pai podia ser tão general e duro com os próprios filhos. Tinha tanto ódio e tanta raiva dele que às vezes chorava de tanto que esses sentimentos eram intensos. Ele era muito difícil de lidar, some-se a isso seu problema com o uso abusivo de álcool. Só que vamos lembrar que nessa visão aqui eu era uma criança em desenvolvimento, precisava de limites. Hoje sou adulto e consigo ver mais nitidamente que meu pai teve também ótimos atributos. Meu pai nos amava muito, do seu jeito. Demonstrava mais do que a minha mãe até. Ele era mais parceiro, mais companheiro; ele me ensinou a andar de bicicleta; a correr; a desenhar; a cozinhar. Ele foi duro e exigente porque provavelmente foi assim que foi criado (a gente só dá o que tem) e ele sabia que a vida exigiria de nós tanto quanto ele. E ele sofreria demais se nos visse sofrendo na vida na fase adulta. Tanto que ele chorava escondido quando eu parava de conversar com ele por conta desse jeito autoritário. Isso doía muito nele. É como se ele aceitasse pagar o preço de ser odiado pelo filho, por conta da educação que ele julgava ser a melhor para mim. Volto a repetir: não só o meu pai, a sua geração foi criada dessa forma mais rígida e ele só pôde transmitir para mim o que foi passado a ele também. Não o culpo mais. Hoje eu o agradeço na verdade. E aqui  entra o objetivo central desse texto: o desenvolvimento de uma musculatura emocional.   

Existem dois tipos de forças distintas: a externa e a interna. A externa é a força visível; aquela que desenvolvemos quando fazemos atividade física; quando vamos à academia; quando corremos no parque; quando conseguimos erguer mais peso e carregar melhor o nosso próprio peso; quando hipertrofiamos e assim ficamos mais fortes. Ok, mas essa é uma força física! E a “força psicológica”?! Como estaríamos com relação a essa força interior? A força que é advinda dos “nãos” recebidos desde a infância; das vezes que sofremos uma separação pelo falecimento de um ente querido; ou por uma decepção; ou pela pressão advinda de entregar as demandas do trabalho; das expectativas que os outros depositam em nós ou que nós mesmos temos a nosso respeito. Uma força advinda da capacidade que desenvolvemos ao lidar com todos os sentimentos e emoções, especialmente angústia, tristeza, solidão. Como está essa sua força? Qual a musculatura emocional que você possui, já pensou sobre isso? Ou você dá sempre um ‘piti’?!

Não vou fazer aquele discurso batido de que a vida é dura, que ela é difícil, como se fosse um pessimista pondo medo. Não é isso. Mas sinto dizer também que discordo do oposto disso, de uma mentalidade vigente que prega que a vida é abundância, que ela é maravilhosa e apenas mentalizando positivo tudo vai dar certo, ser redondo e perfeito. Isso é utopia pura. Filosofia barata. Perigosa até. Isso é discurso de campanha de marketing. Concordo que a realidade inexiste e o importante de fato é a interpretação que conferimos aos acontecimentos, a nossa leitura feita. Mas isso não muda os eventos! É importante sim nos esforçarmos para construir um modelo mental sadio, ter um mindset que leia a realidade da melhor forma possível e que seja generoso conosco, mas é importante também estarmos preparados para lidar com todos os acontecimentos da vida que nos contrariem e que serão inevitáveis! Gosto daquela frase que diz assim: “espere o melhor, mas se prepare para o pior”. Exemplos são frustrações pessoais e morte de entes queridos, são acontecimentos inevitáveis na vida de qualquer pessoa e precisaremos lidar com isso.  Aquele que tem a mentalidade de “eu vim ao mundo para me servir e me dar bem”, cuidado! Está patinando em gelo fino. Os nossos desejos são ilimitados, mas os recursos disponíveis são – e devem ser – escassos. Então, ou tratamos de controlar nosso id com um bem desenvolvido superego, segundo Freud, ou será o nosso ego que vai pagar essa conta. E aqui entro com o assunto coadjuvante dessa postagem: uma musculatura emocional relacionada às doenças.

A ciência cada dia mais vem se rendendo à Psicossomática. Hoje muitos cientistas de variadas áreas já afirmam categoricamente que as doenças começam na nossa mente! Quando nosso psicoemocional não dá conta de algo e isso não é elaborado, ou seja, quando reprimimos, recalcamos, negligenciamos conteúdos que não damos conta, o corpo somatiza! O corpo vai falar através da doença. “Quando a boca cala, o corpo fala; quando a boca fala, o corpo sara.” É preocupante a sociedade atual nesse sentido. Como estamos lidando com as nossas emoções? Estamos desenvolvendo uma musculatura emocional? Estamos educando os nossos filhos para os “nãos” que certamente serão ditos pelo mundo porta à fora? É muito preocupante isso, principalmente quando leio que a cada ano aumenta o número de pessoas com doenças mentais como depressão e síndrome do pânico e o número de pessoas que tiram a própria vida. Casos de automutilação. Aumento significativo desses quadros em populações jovens. É assustador como quase não falamos sobre isso. Como ainda hoje é algo um tanto quanto velado, negligenciado ou desacreditado. Aumento de cânceres, aumento de doenças autoimunes, tudo advindo – ou agravado – por estado psicoemocional. Ainda hoje muitos não se deram conta da importância de conhecer o seu próprio interior. Pais dando tudo aos filhos por medo de serem rejeitados, não serem “amados”. Pai não é amigo de filho. Pai é pai. Pai é superego. Representa a Lei. Pai é o primeiro limite necessário à criança para no futuro ela não machucar ninguém, nem se machucar. E quando digo pai aqui me refiro a pais de um mundo geral, às figuras de quaisquer cuidadores. É quem diz “não”.

A minha educação foi severa sim, eu não a recomendo a pai algum. O meu pai extrapolou até, foi além do necessário para me educar e obviamente que esse exagero disciplinar também ocasionou mais dores e conflitos desnecessários. Mas ele deu o melhor que podia me dar, que ele sabia fazer. E o mais importante: o fez por amor! Amar também é dar limites. E sou grato de coração a ele por me fazer entender, desde de pequeno, que de ouvir “nãos” ninguém morre. Muito pelo contrário, ouvi-los formou em mim um bom caráter; me ensinou a trabalhar firme pelas coisas almejadas e a compreender que não vou e nem posso ter tudo o que quero na vida; a respeitar as pessoas e a lidar com as decepções que encontrei e que ainda encontrarei pelo caminho. Meu pai me ensinou a ser um homem de palavra. Ele dizia que a palavra era a coisa mais importante na vida de um homem e que se perdê-la, ele se perdeu. 

Esse post contando um pouco da minha história pessoal tenta humildemente trazer a responsabilidade da existência de uma autoridade firme desde a infância na estruturação de uma musculatura emocional. A vida toda precisaremos de limites! Ninguém faz o que quer, quando quer, como quer e está tudo bem, não é assim! A Lei existe primeiro para nos organizar. Em segundo para nos potencializar. Grandes pensadores na História já disseram: limite é poder. O limite é tão importante nesse quesito, porque ele não só é necessário e saudável ao ser humano para civiliza-lo, como da origem à criatividade humana, porque ele propicia o ambiente fértil para que isso aconteça. O limite cerca forças que vão criar um caldeirão! Um caldeirão de material perigoso, mas muito rico em capacidade de criação. Ou você acha que a gente cria na alegria? A gente cria na dor, a gente cresce no sofrimento, quando somos contrariados, quando estamos angustiados, quando nos é negado um desejo, uma vontade. Esse mal estar que fica, essa irritação que é gerada, esse desconforto interno criam arte. Ou podem cria-la. Assim como podem criar uma doença. Aí reside o perigo. É como um rio que corre livremente e vem uma barragem. Nós somos um rio que corre incessantemente. O rio representa o id, nossos desejos incontáveis, nossas vontades intermináveis. A barragem que contém é o superego, é o limite, é a Lei. E a infância é um momento especial para aprendermos a lidar com isso. A barragem limita as águas do rio, mas o potencializa! Quando se põe a barragem no rio, a água retesada ganha força e pode virar energia. Da mesma forma acontece em nossa vida toda vez que encontramos um obstáculo no caminho; nós condensamos força dentro de nós através das emoções e dos sentimentos gerados. Por isso é tão importante adquirirmos musculatura emocional, porque da mesma forma que a água retesada pode chegar um dia a destruir a barragem ou o entorno às margens do rio, o nosso descontrole emocional pode em algum momento machucar os demais ou a nós mesmos. Então, use esse turbilhão de emoções e sentimentos que tem dentro de si como força propulsora criativa. Encare os limites da vida e os momentos de crise como oportunidades para ganhar mais força interior. Mexa esse caldeirão de forma criativa. Faça análise. Psicoterapia. Faça alguma arte. Desenhe. Pinte. Esculpa. Cozinhe. Borde. Costure. Elabore os seus demônios, pois não à toa Lúcifer significa “o que traz a luz”.

2 comentários:

Unknown disse...

Gratidão, Jonas!
Lembrei da minha avó "Meu pai me ensinou a ser um homem de palavra."

Jonas Souza disse...

Eu que agradeço pela sua visita!