quarta-feira, 5 de julho de 2017

COISIFICAÇÃO


A imagem escolhida para esse texto representa bem o tema, ela foi retirada de uma animação que encontrei no YouTube e colocarei ao final desse texto para quem quiser assistir. Recomendo bastante, é uma animação forte, pra fazer pensar.

As pessoas no geral estão tão ocupadas com tarefas a fazer, andando pra lá e pra cá, no corre corre do dia a dia, que estão passando despercebidas umas das outras e até de si mesmas. É tanta coisa para fazer: trabalhar; cuidar da casa; se preocupar com o que comer; se preocupar em estudar ou se manter atualizado; em fazer supermercado; pagar conta; e tem o trânsito do dia a dia, as filas, o estresse constante. Vamos fazendo todas essas coisas com um senso de urgência, com a sensação de que está ficando algo para trás que no fim não vai dar tempo de fazer. Eu me observo assim. Eu observo as pessoas assim. Estamos vidrados em nossa rotina, ocupados com a nossa vida, que transitamos não nos vendo, não nos ouvindo, não nos percebendo. Perguntamos como estamos por educação, porque duvido muito que importa sinceramente a resposta que virá logo após essa pergunta. As relações estão superficiais e os contatos breves, com pouco ou nenhum aprofundamento reflexivo ou sincero. Esse senso de urgência com as nossas coisas, somado a um excesso de importância e valorização só com a nossa vida tem nos feito individualistas, menos conectados uns com os outros. Quase como se fôssemos perfeitos estranhos, seres maravilhosamente invisíveis. Estranhos que se veem e se relacionam constantemente, mas ao final dos encontros permanecem estranhos.

Desafio você a se questionar com quantas pessoas você tem um relacionamento, seja ele de que natureza for, realmente com conexão. Conexão que eu digo é quando você realmente “está” com uma pessoa e “sente” que ela também “está” inteiramente com você. Falo aqui de presença; de profundidade; de identificação com o outro. Confesse, são raros esses momentos. Assim como são raras as pessoas com quem você se sente assim dessa maneira. Você não deve se sentir assim nem consigo mesmo. No geral, somos apenas gentis, protocolares nos “bom dias”, superficiais nas relações diárias e, sem perceber, estamos ausentes, porque ouvir não é a mesma coisa que escutar; ver não é o mesmo que enxergar. A capacidade mais empática e natural dos humanos é sentir uns aos outros, conectar, mas estamos perdendo essa capacidade. Existem pesquisas que tentam mostrar uma espécie de “coisificação” acontecendo. Esses estudos defendem uma tese de que há um processo de “coisificação” no mundo contemporâneo, onde estaríamos perdendo a capacidade empática e transformando quem não é importante para nós em uma “coisa”. As mesmas pesquisas foram feitas com crianças e os resultados impressionaram pela incapacidade que elas tinham de reconhecer e identificar expressões faciais básicas. Característica típica de psicopatas. Isso se explicaria por que você passa hoje por um mendigo deitado na calçada com um cobertor fino, nessas noites que você sabe o quanto está frio, e você quase não sente nada. Não é consciente, mas você “naturaliza” essa cena; você olha e não vê uma pessoa ali deitada e isso não te afeta mais. Poderia se dizer que você não mais percebe, quiçá se importará, se sob aquele pedaço de pano estaria de fato uma pessoa, porque ela não lhe é importante.

Será que não deveria nos afetar, muito, numa noite fria como essa de inverno em que estamos, nos deparar com um morador de rua? Será que não deveria nos afetar, muito, aquela criança pequena pedindo que vemos no farol pelos vidros erguidos do carro? Por que será que a gente não pensa se ela estaria com fome? Se almoçou ontem; se teria onde dormir hoje; se sofreria algum tipo de abuso ali nas ruas. A resposta é assustadoramente simples: a gente não pensa porque essa criança foi “coisificada”, como ela não nos é familiar, ela não nos é importante, assim não é vista, literalmente; é como se ela se mesclasse à paisagem. Assim como o mendigo. São tristes exemplos de como estamos insensíveis ao outro. Embora não admitimos, a nossa filosofia básica de vida é a seguinte: “primeiro eu, depois os meus, o que sobrar aos outros”. O mundo atual é confeccionado sob uma filosofia tão superficial e imediatista, com valores por vezes psicopáticos, onde estamos tão atarefados, bitolados e super valorizando nossa própria individualidade (“minha vida, minhas coisas, meus problemas”), que estamos não só perdendo a noção da existência do outro, como não legitimando a sua importância, a sua dor. E isso não é só triste e preocupante, isso é perigoso até. A sociedade só chegou onde chegou, como sociedade, pela nossa capacidade altruísta e empática de nos colocarmos uns no lugar dos outros, sem essa capacidade é impossível pensar sociedade. É difícil imaginar qual seria uma resposta para esse movimento, mas arriscaria pensar que, se estamos seguindo um fluxo como rebanhos num processo quase automático, foi por que aprendemos assim, e talvez a solução fosse parar em alguns momentos e tentar trazer consciência às nossas ações. E sempre que possível reavaliar nosso comportamento e revalidar a nossa visão de mundo dando mais atenção e importância às necessidade daqueles que estão ao redor, seja esse outro quem for, já que o outro nunca deixou de ser uma extensão de nós mesmos. É uma questão de se permitir.


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