domingo, 25 de setembro de 2022

QUEM É VOCÊ

 


     Uma das tarefas mais difíceis quando vamos escrever um texto é justamente começá-lo. Saber sintetizar as experiências e os conhecimentos avolumados interiormente, somados às emoções e expectativas do autor, já é algo complexo, mas conseguir encontrar um ponto de partida que dará vazão a tudo isso é muito mais, é a ponta da flecha a ser disparada. Há muitas coisas que gostaria de trazer aqui e outras tantas que não saberia escrever, que vamos fechar num acordo: começarei simplesmente então, certos de que não é tudo o que gostaria de falar, mas fico na intenção de tentar.

      Atualmente sou graduando em psicologia pelo Centro Universitário de Jaguariúna (UniFAJ), faço parte do primeiro Grupo de Estudos em Psicanálise (GEPSI) da faculdade recentemente criado, sou pós-graduando em teoria psicanalítica pelo Instituto de Pesquisa e Estudos em Psicanálise nos Espaços Públicos (IPEP) e estudo na Confraria Analítica do psicólogo, psicanalista e professor Dr. Lucas Nápoli. Sou amante de psicanálise, de psicologia, do estudo sobre o animal homem. Não sei se clinicarei um dia como psicanalista de fato, certamente que cumprindo o tripé (teoria, análise pessoal e supervisão) nada me impede, contudo me percebo [hoje] mais como um estudioso, um teórico da psicanálise, nesse campo de estudo que muito me fascina. Tenho planos para um dia fazer também mestrado e doutorado nessas áreas, seguir por algumas linhas de pesquisa, ser professor talvez, mas principalmente um pesquisador, ser um cientista. Mas sei também que a psicanálise se faz da prática, a psicanálise foi muito mais a clínica de Freud que alimentou sua teoria. Podemos então dizer que a psicanálise vem da prática clínica, que fortalece a teoria, que dá subsídios à prática novamente. Mas vejo em mim muito mais os arquétipos do sábio, do mago... E aqui entramos no que quero escrever. Arquétipo. Persona. Perfil. Tipo. Título. Identidade. Personalidade de um modo geral. Quem é você? É quem você é?! Sem subjetivar demais, ou como dizem muita “brisa”, vamos pensar objetivamente quem somos...

     Por que comecei pondo esses títulos? Porque isso me representa de algum modo. Ou melhor, o modo que quero me representar aqui, e neste momento. Isso envolve meus anseios, necessidades, vontades. Vaidades! Onde você mora, no que trabalha, o que estudou, onde estudou, seu sobrenome, estado civil, com quem se casou, sua classe social, religião, entre tantos títulos a [poder] representá-lo de algum modo. Mas será que eles dão conta de quem você é? Por outro lado, existiria então uma essência de você? E essa identidade seria única e imutável? Tenho minhas dúvidas... Muitas dúvidas na verdade.

      Há um TED de alguns anos atrás de Chimamanda Adichie sobre o perigo de uma história única. Nele a escritora nigeriana traz como algumas histórias são transmitidas de uma versão única, criando estereótipos, reduzindo e superficializando as experiências, e capacidades, de uma pessoa ou de um povo, roubando sua dignidade, e o quanto isso oculta relações de poder. A autora traz este recorte, histórias que temos acesso ou que nos são contadas, mas eu gostaria de refletir aqui também, pegando esse gancho, sobre as histórias que contamos a nós, sobre nós mesmos, criando identidades fixas que reforçamos, nos colocando ainda mais em caixinhas. Costuro essa temática da palestra de Chimamanda a um livro do britânico-jamaicano Stuart Hall, “Identidade cultural na pós-modernidade”. Nesse livro, o sociólogo traz uma concepção de sujeito pós-moderno. Segundo esse autor, as identidades antes eram fixas, essenciais, permanentes, com o tempo elas foram se “ligando” às estruturais da sociedade, aos grupos, que também eram sólidos, contudo isso hoje vem mudando radicalmente, rapidamente, pois o sujeito pós-moderno é fragmentado, composto de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.

      Na psicanálise existem dois conceitos psicológicos trazidos pelo psicanalista Donald Winnicott chamados de verdadeiro self e falso self. Para Winnicott possuímos desde tenra infância a possibilidade da construção de um verdadeiro self, que está relacionado à expressões espontâneas e autênticas, que nos dá a sensação de estar em contato e vivenciando as nossas reais necessidades. Mas quando não há um ambiente [cuidadores] suficientemente bom, não haverá um sentimento de continuidade do ser, originando uma personalidade a partir de um falso self, com o objetivo de proteger o verdadeiro self! O falso self não é o que o sujeito é, ele surge quando a criança é confrontada pela necessidade de cumprimento dos desejos e expectativas dos pais, não reconhecendo que não são dela tais desejos. Com a análise ocorrerá essa continuidade do ser e uma das tarefas é buscar junto ao paciente esse verdadeiro self, para que ele possa expressar verdadeiramente o que ele pensa e sente. O que na Abordagem Centrada na Pessoa, da psicologia humanista, é similar à Congruência, termo cunhado por Carl Rogers.

      Na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, o arquétipo persona é construído em paralelo ao ego e à sombra, desde o início da vida. O termo “persona” inclusive vem do teatro grego antigo, em que as personagens usavam máscaras para encenar. Isso significa que são os personagens que construímos na vida, por inúmeras razões, e algumas legítimas e necessárias, para a sobrevivência em sociedade. A persona é sim bastante necessária. Todos possuímos um “papel” no trabalho, um “papel” na família, outro na sociedade, no grupo de religião, de amigos etc. Isso não significa necessariamente estar sendo “falso”, pelo contrário, é estar alinhado e de acordo com regras e códigos sociais para se ter uma vida em equilíbrio. E quando dá problema? O ideal é que essas “máscaras sociais” não destoem demais do nosso real ser, chamado também de “Si mesmo” na psicologia junguiana. O conflito interno aparece quando esse indivíduo está excessivamente comprometido às ideias coletivas e demasiadamente IDENTIFICADO com a MÁSCARA, eclipsando sua individualidade mais profunda. O indivíduo precisa, em boa medida, da persona para poder viver bem em sociedade, mas ele também não deve perder a si mesmo de perspectiva nesse processo, devendo ao longo da vida também buscar a sua Individuação, a integração da sua personalidade.

     Apenas para pensarmos aqui... Hoje em dia, um dos grandes diagnósticos psiquiátricos é o Transtorno de Personalidade Borderline, que já existia, mas ouço cada vez mais casos, e segundo os critérios do DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças), há nesses indivíduos, entre outros critérios, um sentimento crônico de vazio e uma perturbação da identidade. O tratamento a essas pessoas demanda médico psiquiatra e em algum momento inclui psicoterapia, e uma das intervenções certamente será auxiliar essas pessoas na construção de uma personalidade própria, numa identidade, na valorização de si mesmas.

      Dei todas essas voltas e trouxe todas essas teorias para pensarmos sobre Identidade(s). Quem nós somos? Quem você acha que é? E você é somente isso? Como você se percebe, se entende e se exerce enquanto indivíduo, dentro de um sistema social? Isso é extremamente importante! O animal humano é social, mas tem capacidades e potencialidades únicas que precisam de expressão também. E é esse o grande dilema da vida humana, trazido por Sigmund Freud na eterna tarefa do ego de equilibrar a maximização do prazer advindo do id, com a minimização do desprazer advindo do superego. O animal humano social tem esse desafio. Existe parte em nós que é selvagem, sim, porque somos animais! Contudo, nós somos seres feitos para viver em sociedade. Coloque um homem numa cela solitária indefinidamente e verá o que acontece, se ele não for um psicopata, ele definha e morre, não fomos feitos para viver sozinhos. Por outro lado, não podemos perder uma individualidade mais profunda em meio ao social, pois isso também empobrece a existência humana, consequentemente nos adoece. Viver dá trabalho! Exige uma operação sobre si mesmo.

Você já iniciou essa operação? Ou nada disso faz sentido para você?

      Para problematizar ainda mais a nossa existência, além de ter consciência e ter que trabalhar todos esses aspectos levantados ao longo desse texto, ainda precisamos lembrar que as regras e os códigos sociais estão invariavelmente ligados à ética e à moral de um povo, numa determina época. Não sei vocês, mas já me indaguei várias vezes na vida, em situações específicas, o que era ético ou moral naquela circunstância. Não falo aqui de princípios que até são mais certos universalmente, como “não matar” ou “não roubar”, porque na vida nem sempre é assim, objetivo e claro. Não mentir” por exemplo, é um princípio ético ou não? Penso que sim. Mas também creio em inconsciente. Posso partir de um ponto em que declaro algo a alguém e estou mentindo. Não objetivamente. Não conscientemente. Mas quantas vezes não mentimos a nós mesmos, sem consciência disso? Este é apenas um exemplo, de uma intrincada e complexa teia, que atrela animais humanos subjetivos e seus valores éticos e morais, num dado período de tempo. Se olharmos culturas antigas e compararmos a nossa perceberemos o quanto essas noções se alteram ao longo da história. E antes que os críticos apressados se munam ao ataque, calma, este texto não é um convite à anarquia, relativizando ética e moral, mas apenas problematizando e levantando algumas questões. Mas fica como sugestão este documentário abaixo, muito bem elaborado sobre este assunto, “Alma Imoral” do rabino Nilton Bonder. Confira!

 

Sinopse: De que forma é possível impulsionar as formas de levar a própria vida? Quais as diferenças entre a interpretação da vida, a partir da concepção científica e da concepção bíblica? A reflexão e o questionamento a respeito do que seriam os conceitos de alma (transcendentalidade) e matéria física (corpo), convenções, e rupturas são pontos abordados pelo diretor Silvio Tendler neste documentário. Baseado na obra homônima de Nilton Bonder, o filme delimita uma conexão entre pessoas de diferentes crenças; desde adeptos da religião e da tradicionalidade até contraventores de diversos segmento.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

TERAPIA É UMA DANÇA DE MÃO DUPLA

 

      Hoje pretendo escrever sobre algo que sempre me chamou a atenção dentro de uma análise, e até hoje não encontrei consenso sobre isso, que é uma medida ideal entre o dar e o receber por parte do analista. Aqui me refiro objetivamente a processos de contratransferência e intervenção. Quando comecei a estudar psicanálise, me lembro que as primeiras coisas que pensei foram: “psicanalista precisa ser neutro, buscar ser uma tela em branco, ele não deve se permitir processos de contratransferência e tomar muito cuidado com suas intervenções e interpretações em análise”. Mas com o passar do tempo, estudando outros psicanalistas, como M. Klein, Winnicott e Ferenczi por exemplo, vi outras perspectivas sobre contratransferência e intervenção em processo analítico. Hoje já não acredito que haja uma resposta certa para essas situações, nem uma medida ideal como escrevi logo acima; penso que cabe mais ao profissional, no manejo da transferência do paciente, estar primeiro consciente da sua possível contratransferência e estar preparado para quando ocorrer, embasado teórica e tecnicamente para prosseguir.

      Talvez a partir daqui já deixei demonstrado que tomo alguns posicionamentos a respeito desse assunto, mas para deixar ainda mais claro declaro que não acredito na neutralidade por parte do profissional numa terapia (em qualquer que seja), não acredito que seja possível inexistir uma contratransferência ao longo do processo e acredito que o excesso de intervir e fazer interpretações pode ser tão prejudicial quanto nunca fazê-lo. Ao ouvir a palavra neutralidade automaticamente me vem à mente um robô, qualquer ente desprovido de subjetividade e quando pensamos em seres humanos vamos entrar no campo das subjetividades. Justamente por essa razão a prática do psicólogo ou do psicanalista é tão difícil, pois ele, enquanto profissional e ser humano, possui uma subjetividade que se confunde com seu objeto de estudo, que é a subjetividade do outro.

      É claro que um profissional estudou e estuda exatamente por isso, e faz terapia inclusive, para ter consciência e competência para discernir o que é seu e o que é do outro no processo terapêutico. Imagino que pensem em refutar isso com comparações do tipo “um cardiologista tem coração e isso não dificulta que cuide do coração do paciente”, “um neurologista tem cérebro e isso não dificulta que cuide do cérebro do paciente”, mas a psicologia é uma ciência humana e aqui entram mente, consciência, inconsciência e uma gama de fatores intangíveis e não quantificáveis da subjetividade de todo ser humano; além de fenômenos psicológicos que surgem nas releções, como transferência e contratransferência por exemplo. Estou falando aqui a partir de uma visão mentalista e existe sim uma linha na psicologia, a behaviorista radical por exemplo, que terá muitas ressalvas quanto a tudo isso. Mas de uma perspectiva psicanalítica, processos como transferência e contratransferência acontecem inconscientemente onde existir pessoas em relação. O que compete aos profissionais, sejam psicólogos ou psicanalistas, é ter consciência disso e estar teoricamente embasado e tecnicamente preparado para como manejar isso a favor do processo terapêutico.

      É comum ouvir profissionais que atendem relatarem que muitos pacientes chegam e falam que o profissional anterior era monossilábico, que nunca fazia pontuações nem interpretações de nada e que a maior parte do tempo pairava um silêncio sepulcral nas sessões, o que deixava a pessoa mais angustiada do que quando buscou tratamento. Também não é incomum pacientes falarem o contrário, que o profissional anterior monopolizava a sessão falando o tempo todo, quando não apenas de si mesmo. Quem nunca ouviu isso? Concordo que o silêncio é uma fala importante e que muitas vezes alguns pacientes buscam profissionais que falem só o que eles querem ou esperam ouvir e obviamente este não é papel de nenhum profissional, porque isso não promove mudança nem melhoria, pelo contrário reforça dinâmicas que já existem, que se não fossem disfuncionais a pessoa não estaria ali. O papel de um profissional é fazer justamente a pessoa refletir, repensar e por vezes questionar o lugar em que ela se coloca. E aqui entra aquilo que chamei à atenção no início desse texto: deve haver uma calibração entre o dar e o receber. Não acho que um analista tenha que corresponder, intervir e interpretar somente, mas não acho que tenha que ser indiferente, neutro e impessoal também. Mas se existe um ponto ótimo, qual seria?!

      O profissional, psicólogo ou psicanalista, não é amigo, não faz papel dos pais, não está ali para responder a toda e qualquer demanda do paciente, mas ele é um outro ser humano que também possui subjetividade e fará contratransferência por mais preparado e consciente que for. Ao estudar a psicanálise observamos um Freud recomendando aos psicanalistas não atenderem pessoas próximas, como familiares por exemplo e o próprio foi analista da filha. Freud era bastante comedido quanto a uma contratransferência por parte dos analistas e em seus escritos de casos clínicos vemos claramente ele fazendo isso. Dentro do movimento psicanalítico encontramos psicanalistas contemporâneos a Freud e pós freudianos também com recomendações díspares entre si; analistas à la Klein fazendo intervenções e interpretações exaustivas; à la Lacan mais silenciosos e dispostos a cortes de sessão decorrente de um tempo lógico; à la Ferenczi fazendo recomendações e eventualmente expondo elementos de si, e por aí vai... Assim como ocorre na psicologia com as várias abordagens, ocorre também na psicanálise com vários posicionamentos distintos entre si, por isso é adequado se falar psicologias, psicanálises, no plural.

      Finalizo esse texto com uma alegoria para nos fazer pensar que o fazer psicoterapia – seja qual abordagem teórica for – é um fazer em conjunto, como uma dança de salão, um humano com outro. Assim como numa dança são dois corpos; aqui são duas subjetividades que afetam e são afetadas, inconscientemente até. Ouço muito sobre um paciente que tem que se implicar no seu processo para fazer dar certo, mas ouço muito pouco – ou melhor nem ouço – sobre a importância do terapeuta também se IMPLICAR neste mesmo processo. Não discuto a RESPONSABILIDADE que de fato é do paciente, sempre será, é ele quem sabe qual será o estilo dessa dança e quem ditará o ritmo do seu aprendizado, mas envolveu desde o início dois corpos, duas subjetividades que se encontram, que se tocam. 

     Jung não era psicanalista, mas nesse ponto foi mais sábio, quando disse: “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Parafraseando Nietzsche, não se olha para o abismo sem que o abismo olhe de volta para você. Da mesma forma que numa dança você está exposto a sentir o suor, o perfume, o hálito da outra pessoa, você também a expõe a ter contato com o teu. Num processo terapêutico você não vai afetar sem ser afetado. Você jamais conhecerá alguém, sem se revelar no caminho. A questão então não é se; é quando, como e quanto.


Seja um profissional tão bom que saiba ser humano.
E seja um humano tão bom, que será ainda melhor profissional.

 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

MEU FALO É MAIOR DO QUE O TEU


Às vezes um charuto é apenas charuto.” Sigmund Freud


        Calma, em psicanálise, especificamente a lacaniana, falo não é exatamente uma parte do corpo humano, é um significante, um símbolo, cuja função imaginária se relaciona às nossas faltas existências. Já deu pra perceber que o texto de hoje é talvez polêmico, talvez reflexivo, talvez instrutivo, talvez provocativo, o que cabe a mim de antemão responder é sim, talvez seja tudo isso e muito mais até, e cada pessoa quem escolhe como será. Se for possível a você, só peço disposição para lê-lo até o fim e alguma abertura para tentar compreender meu ponto de vista – que nada mais é do que a vista de um ponto.

        Como já imaginava ocorrer em algum momento da minha vida, e cheguei a escrever sobre isso aqui, esse ano iniciei a graduação do curso de psicologia. Estou fascinado pelos conhecimentos adquiridos na sala de aula, estudar a subjetividade humana através de disciplinas às vezes aparentemente tão distintas entre si tem sido algo extraordinário, me percebo mergulhado num universo que a cada dia me interessa mais. Os conhecimentos me instigam, me provocam, por vezes me consomem por completo. Acredito que todo conhecimento transforma o ser humano, vejo isso como algo natural, vi isso acontecendo em minha primeira formação e percebo novamente agora, com a diferença de que hoje me sinto mais preparado, maduro, ou pelo menos mais em paz.

       Deve estar se perguntando em que ponto entra a psicanálise hoje que estudo psicologia e a resposta é que continuo estudando simultaneamente. Tendo a oportunidade de perceber agora como a finalidade de ambas não é assim tão distinta, apenas o raciocínio e talvez a linguagem sejam diferentes; é como resolver um mesmo problema matemático de mais de uma forma, concluindo a mesma resposta. Dentro da própria psicologia tenho dificuldade para enxergar diferenças significativas entre as abordagens teóricas, a mim todas tratam dos mesmos fenômenos psicológicos e chegam a resultados parecidos usando meios diferentes para explicá-los ou tratá-los. Sei que concluirei o curso de psicologia na abordagem psicanalítica já que é a que mais conversa comigo, mas confesso que não vejo qualquer invalidação em nenhuma das outras teorias psicológicas, todas são fantásticas e podem auxiliar qualquer pessoa que precisar e se identificar com a abordagem.

        Aqui entro oficialmente ao tema do texto de hoje que é o seguinte. Onde houver pessoas haverá embates, busca de poder, competição. Vejo isso já na sala de aula. Queria pensar diferente, mas confesso que hoje não consigo e acredito que o curso de psicologia me faz enxergar isso. Certa vez a professora nos disse “Psicologia é política” e ela está certa, como acho que tudo na vida; viver é um ato político. E antes que venha com qualquer discurso de senso comum acusatório, tipo “isso é pensamento comunista”, “É de esquerda...”, calma, peço que baixa a guarda e me responda. O que é ser de esquerda?! E de direita?!

        Hoje em dia essas posições podem ser tão porosas e múltiplas que resvala facilmente ao engano. Quando a professora nos disse isso, ela não fez qualquer menção partidária em sua fala, ela apenas trouxe a reflexão que vivenciamos política em tudo que nos cerca, das mais variadas formas e precisamos no mínimo estar conscientes disso, seja você de direta, seja você de esquerda, de centro, seja lá o que essas posições significarem de fato hoje em dia. E antes que isso aqui vire um fla-flu, o texto de hoje não é sobre isso, vai muito além disso. Afirmo a vida como um jogo de forças quer gostemos, esperemos ou concordemos. Vida é duelo, vida é embate, vida é caos. Quisera alguns que fôssemos sempre equilibrados, que a vida fosse harmônica e as relações humanas equânimes, mas nada disso é verdade. O ser humano é caótico, contraditório, complexo e impera jogos de poder em nossas relações, porque a maior parte do tempo somos mais mesquinhos e restritos do que sonhamos. Competimos entre colegas de classe por abordagens teóricas, entre irmãos e primos por sucesso, entre colegas de trabalho por espaço, entre amigos por interesses comuns. E isso nos faz menos?! Não, isso nos faz humanos... Esse é o jogo e viver é se implicar nele.

        Particularmente não sou tão fã do capitalismo, embora não temos algo melhor do que isso. Ele se encaixou perfeitamente e se alimenta de uma falta estrutural que possuímos por sermos neuróticos por natureza, essencialmente faltantes, temos um buraco que caberia o mundo inteiro. Sempre insatisfeitos, estamos em busca do próximo bem, do próximo amor, disso que certamente nos preencherá. E nunca vai... Isso parece pessimista, mas é exatamente isso o que nos movimenta. Sem falta não há desejo, sem desejo não há movimento, ausência de movimento é a morte. Então qual seria a saída desse jogo perigoso?! Consciência. Disposição para pagar o preço que custa jogar esse jogo. Não interessa se quer viver num castelo numa vida em busca de títulos e bens materiais, tampouco se vai viver de forma espiritualizada no alto de uma montanha ignorando o corpo e toda materialidade da existência, apenas saiba o quanto está consciente e preparado para os riscos e as consequências das suas escolhas, porque no fim é só isso o que importa.

       Num extremo, quando estiver num casamento falido, cercado de bens materiais e se sentindo vazio porque isso tudo não te preencheu, você suportará isso se pelo menos teve consciência de suas decisões e aceitou pagar esse preço. Assim como num outro extremo se terminar sozinho nas ruas sem eira nem beira, sentindo-se livre e espiritualizado e passando fome, também dará conta se teve consciência de suas escolhas e aceitou pagar esse preço. Você pode viver seguindo apenas sua vontade, afirmando seu desejo, batendo o falo na mesa. Ou ceder seu espaço ao outro, negando seu desejo, omitindo seu falo, dará no mesmo. Quem avança sozinho desconsiderando o outro paga um preço e quem recua deixando de avançar desconsiderando seu desejo pagará outro. O primeiro passa por cima dos outros, o segundo de si mesmo. Um caminho saudável me parece o do meio, mas ele envolve negociação, envolve embate, passará pelo jogo do poder, que é a política. Não existe certo, nem errado, e cada um paga o preço que pode, ou acha que deve. Mas uma coisa é certa, a pior coisa disso tudo é não ter consciência de tudo isso.


A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.” Sigmund Freud