Uma das tarefas mais difíceis quando vamos escrever um texto é justamente começá-lo. Saber sintetizar as experiências e os conhecimentos avolumados interiormente, somados às emoções e expectativas do autor, já é algo complexo, mas conseguir encontrar um ponto de partida que dará vazão a tudo isso é muito mais, é a ponta da flecha a ser disparada. Há muitas coisas que gostaria de trazer aqui e outras tantas que não saberia escrever, que vamos fechar num acordo: começarei simplesmente então, certos de que não é tudo o que gostaria de falar, mas fico na intenção de tentar.
Atualmente sou graduando em psicologia pelo Centro Universitário de Jaguariúna (UniFAJ), faço parte do primeiro Grupo de Estudos em Psicanálise (GEPSI) da faculdade recentemente criado, sou pós-graduando em teoria psicanalítica pelo Instituto de Pesquisa e Estudos em Psicanálise nos Espaços Públicos (IPEP) e estudo na Confraria Analítica do psicólogo, psicanalista e professor Dr. Lucas Nápoli. Sou amante de psicanálise, de psicologia, do estudo sobre o animal homem. Não sei se clinicarei um dia como psicanalista de fato, certamente que cumprindo o tripé (teoria, análise pessoal e supervisão) nada me impede, contudo me percebo [hoje] mais como um estudioso, um teórico da psicanálise, nesse campo de estudo que muito me fascina. Tenho planos para um dia fazer também mestrado e doutorado nessas áreas, seguir por algumas linhas de pesquisa, ser professor talvez, mas principalmente um pesquisador, ser um cientista. Mas sei também que a psicanálise se faz da prática, a psicanálise foi muito mais a clínica de Freud que alimentou sua teoria. Podemos então dizer que a psicanálise vem da prática clínica, que fortalece a teoria, que dá subsídios à prática novamente. Mas vejo em mim muito mais os arquétipos do sábio, do mago... E aqui entramos no que quero escrever. Arquétipo. Persona. Perfil. Tipo. Título. Identidade. Personalidade de um modo geral. Quem é você? É quem você é?! Sem subjetivar demais, ou como dizem muita “brisa”, vamos pensar objetivamente quem somos...
Por que comecei pondo esses títulos? Porque isso me representa de
algum modo. Ou melhor, o modo que quero me representar aqui, e
neste momento. Isso envolve meus anseios, necessidades, vontades.
Vaidades! Onde você mora, no que trabalha, o que estudou, onde
estudou, seu sobrenome, estado civil, com quem se casou, sua classe
social, religião, entre tantos títulos a [poder]
representá-lo de algum modo. Mas será que eles dão conta de quem
você é? Por outro lado, existiria então uma essência
de você? E essa identidade seria única e imutável?
Tenho minhas dúvidas... Muitas dúvidas na verdade.
Há um TED de alguns anos atrás de Chimamanda Adichie sobre o perigo de uma história única. Nele a escritora nigeriana traz como algumas histórias são transmitidas de uma versão única, criando estereótipos, reduzindo e superficializando as experiências, e capacidades, de uma pessoa ou de um povo, roubando sua dignidade, e o quanto isso oculta relações de poder. A autora traz este recorte, histórias que temos acesso ou que nos são contadas, mas eu gostaria de refletir aqui também, pegando esse gancho, sobre as histórias que contamos a nós, sobre nós mesmos, criando identidades fixas que reforçamos, nos colocando ainda mais em caixinhas. Costuro essa temática da palestra de Chimamanda a um livro do britânico-jamaicano Stuart Hall, “Identidade cultural na pós-modernidade”. Nesse livro, o sociólogo traz uma concepção de sujeito pós-moderno. Segundo esse autor, as identidades antes eram fixas, essenciais, permanentes, com o tempo elas foram se “ligando” às estruturais da sociedade, aos grupos, que também eram sólidos, contudo isso hoje vem mudando radicalmente, rapidamente, pois o sujeito pós-moderno é fragmentado, composto de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.
Na psicanálise existem dois conceitos psicológicos trazidos pelo psicanalista Donald Winnicott chamados de verdadeiro self e falso self. Para Winnicott possuímos desde tenra infância a possibilidade da construção de um verdadeiro self, que está relacionado à expressões espontâneas e autênticas, que nos dá a sensação de estar em contato e vivenciando as nossas reais necessidades. Mas quando não há um ambiente [cuidadores] suficientemente bom, não haverá um sentimento de continuidade do ser, originando uma personalidade a partir de um falso self, com o objetivo de proteger o verdadeiro self! O falso self não é o que o sujeito é, ele surge quando a criança é confrontada pela necessidade de cumprimento dos desejos e expectativas dos pais, não reconhecendo que não são dela tais desejos. Com a análise ocorrerá essa continuidade do ser e uma das tarefas é buscar junto ao paciente esse verdadeiro self, para que ele possa expressar verdadeiramente o que ele pensa e sente. O que na Abordagem Centrada na Pessoa, da psicologia humanista, é similar à Congruência, termo cunhado por Carl Rogers.
Na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, o arquétipo persona é construído em paralelo ao ego e à sombra, desde o início da vida. O termo “persona” inclusive vem do teatro grego antigo, em que as personagens usavam máscaras para encenar. Isso significa que são os personagens que construímos na vida, por inúmeras razões, e algumas legítimas e necessárias, para a sobrevivência em sociedade. A persona é sim bastante necessária. Todos possuímos um “papel” no trabalho, um “papel” na família, outro na sociedade, no grupo de religião, de amigos etc. Isso não significa necessariamente estar sendo “falso”, pelo contrário, é estar alinhado e de acordo com regras e códigos sociais para se ter uma vida em equilíbrio. E quando dá problema? O ideal é que essas “máscaras sociais” não destoem demais do nosso real ser, chamado também de “Si mesmo” na psicologia junguiana. O conflito interno aparece quando esse indivíduo está excessivamente comprometido às ideias coletivas e demasiadamente IDENTIFICADO com a MÁSCARA, eclipsando sua individualidade mais profunda. O indivíduo precisa, em boa medida, da persona para poder viver bem em sociedade, mas ele também não deve perder a si mesmo de perspectiva nesse processo, devendo ao longo da vida também buscar a sua Individuação, a integração da sua personalidade.
Apenas para pensarmos aqui... Hoje em dia, um dos grandes diagnósticos psiquiátricos é o Transtorno de Personalidade Borderline, que já existia, mas ouço cada vez mais casos, e segundo os critérios do DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças), há nesses indivíduos, entre outros critérios, um sentimento crônico de vazio e uma perturbação da identidade. O tratamento a essas pessoas demanda médico psiquiatra e em algum momento inclui psicoterapia, e uma das intervenções certamente será auxiliar essas pessoas na construção de uma personalidade própria, numa identidade, na valorização de si mesmas.
Dei todas essas voltas e trouxe todas essas teorias para pensarmos sobre Identidade(s). Quem nós somos? Quem você acha que é? E você é somente isso? Como você se percebe, se entende e se exerce enquanto indivíduo, dentro de um sistema social? Isso é extremamente importante! O animal humano é social, mas tem capacidades e potencialidades únicas que precisam de expressão também. E é esse o grande dilema da vida humana, trazido por Sigmund Freud na eterna tarefa do ego de equilibrar a maximização do prazer advindo do id, com a minimização do desprazer advindo do superego. O animal humano social tem esse desafio. Existe parte em nós que é selvagem, sim, porque somos animais! Contudo, nós somos seres feitos para viver em sociedade. Coloque um homem numa cela solitária indefinidamente e verá o que acontece, se ele não for um psicopata, ele definha e morre, não fomos feitos para viver sozinhos. Por outro lado, não podemos perder uma individualidade mais profunda em meio ao social, pois isso também empobrece a existência humana, consequentemente nos adoece. Viver dá trabalho! Exige uma operação sobre si mesmo.
Você já iniciou essa operação? Ou nada disso faz sentido para você?
Para problematizar ainda mais a nossa existência, além de ter
consciência e ter que trabalhar todos esses aspectos levantados ao
longo desse texto, ainda precisamos lembrar que as regras e os
códigos sociais estão invariavelmente ligados à ética e à moral
de um povo, numa determina época. Não sei vocês, mas já me
indaguei várias vezes na vida, em situações específicas, o que
era ético ou moral naquela circunstância. Não falo aqui de
princípios que até são mais certos universalmente, como “não
matar” ou “não roubar”, porque na vida nem sempre é assim,
objetivo e claro. “Não mentir” por exemplo, é um princípio
ético ou não? Penso que sim. Mas também creio em inconsciente.
Posso partir de um ponto em que declaro algo a alguém e estou
mentindo. Não objetivamente. Não conscientemente. Mas quantas vezes não
mentimos a nós mesmos, sem consciência disso? Este é
apenas um exemplo, de uma intrincada e complexa teia, que atrela animais humanos subjetivos e seus valores éticos
e morais, num dado período de tempo. Se
olharmos culturas antigas e compararmos a nossa perceberemos o
quanto essas noções se alteram ao longo da história. E antes que os
críticos apressados se munam ao ataque, calma, este texto não
é um convite à anarquia, relativizando ética e moral, mas apenas problematizando e levantando algumas questões. Mas fica como sugestão este documentário abaixo, muito bem
elaborado sobre este assunto, “Alma Imoral” do
rabino Nilton Bonder. Confira!
Sinopse: De que forma é possível impulsionar as formas de levar a própria vida? Quais as diferenças entre a interpretação da vida, a partir da concepção científica e da concepção bíblica? A reflexão e o questionamento a respeito do que seriam os conceitos de alma (transcendentalidade) e matéria física (corpo), convenções, e rupturas são pontos abordados pelo diretor Silvio Tendler neste documentário. Baseado na obra homônima de Nilton Bonder, o filme delimita uma conexão entre pessoas de diferentes crenças; desde adeptos da religião e da tradicionalidade até contraventores de diversos segmento.