segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

QUANDO A ALQUIMIA ENTRA NA PSICOLOGIA


            "Um homem pode sobreviver a todos os seus amigos e parentes, enterrar aqueles que ele mais ama e levar uma existência solitária como um estrangeiro numa época estranha; mas não pode sobreviver a si mesmo e aos fatores internos de sua vida, e não pode enterrá-los, pois eles são seu verdadeiro eu e, assim, são inalienáveis." C. G. JUNG.


            A vida é feita de movimentos cíclicos, de processos circulares, nem sempre lineares, mas de avançar e recuar, de expandir e contrair, de gestar e de parir, parafraseando o ilustre escritor colombiano Gabriel García Márquez: os seres humanos não nascem de suas mães, a vida os obriga a dar à luz a si mesmo várias vezes. E talvez seja isso uma das grandes dificuldades que temos de interpretar aquilo que nos acontece e de insistir num desenvolvimento pessoal, pois esse processo escapa a uma compreensão mais imediata. Farei um esforço descomunal para não “escrever difícil” esse texto e expressá-lo objetivamente, mas confesso que muito do que encontrará aqui está baseado num pensamento junguiano. Embora a meu ver o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung tenha sido um gênio assim como foi Sigmund Freud, ele é o pai de uma das linhas da psicologia mais mal compreendida, talvez a mais injustiçada, a Psicologia Analítica.

            A título de curiosidade, não é comum no curso de psicologia os estudantes conhecerem essa linha teórica; isso se deve em parte porque são diversas teorias psicológicas de fato, então por uma questão de tempo se foca nas “principais”, mas em parte também porque existe de um modo geral um “ranço” com a psicologia analítica, considerada por vezes esotérica, mística ou “menos científica” do que as outras abordagens, o que não é uma verdade. Assim como Freud, pai da psicanálise, sofreu sendo julgado como um “pervertido” na sua época por falar sobre um desenvolvimento psicossexual infantil, o Jung, pai da psicologia analítica, também sofreu na época ao ser julgado como “místico” por falar sobre alquimia, por exemplo. Mas assim como é injusto tudo isso o que se diz sobre Freud, pois a psicanálise não tem esse caráter genital, é injusto também isso o que se diz sobre o Jung, pois a psicologia analítica apenas emprestou a base de uma simbologia que foi extraída de textos alquímicos antigos.

            Gosto da psicologia analítica justamente porque ela trabalha muito bem com simbologia. Alegoria. Metáfora. Jung bebeu de muitas fontes para desenvolver esse seu pensamento psicológico, fosse da filosofia, da literatura, como Pitágoras, Platão, Kant, Goethe, Schopenhauer, Hartmann, Nietzsche, bebeu dos gnósticos, mas o que mais me chama a atenção vem do filósofo pré-socrático, o Heráclito, pois o pensamento junguiano trabalha com a noção de autorregulação dos contrários, de forças antagônicas que se complementam, síntese dos opostos, a interação entre consciência e inconsciência sempre em busca de compensação, de equilíbrio, conteúdos que se chocam e dessa amálgama criam novos elementos.

 

Quantas pessoas passam pelo nosso caminho, ficam um determinado tempo em nossas vidas, deixam-nos uma marca e nos transformam para sempre de alguma maneira?

 

            Assim é a vida, ela também é feita dessas fusões. Nem melhor nem pior (isso é julgamento de valor), mas certamente saímos transformados. E imprimimos também uma marca nessas pessoas que as transformaram de algum modo para sempre. Ninguém sai ileso: nem nós, nem o outro, nem a Vida! Embora isso soa um pouco metafísico, leia de maneira metafórica. Simbólica. Alegórica. Foi com esse intuito que Carl G. Jung escreveu Psicologia e Alquimia, após ter contato com textos alquímicos antigos e ter se aprofundado durante anos nesse conhecimento circunscrito até então a ordens secretas, como a Maçonaria, os Rosacruzes. Jung percebeu que os textos possuíam uma linguagem simbólica, já que o artífice (alquimista) ao escrever projetava os seus conteúdos psicológicos no material manipulado (o mercúrio - considerado a substância transformadora; o enxofre - a força impulsionadora da consciência; o chumbo - as sombras e os aspectos mais baixos etc.), então Jung tomou emprestado a simbologia desse opus alquímico, fazendo um paralelo a sua psicologia analítica que busca o desenvolvimento da psique, justamente através de criação e desenvolvimento de consciência.

            Escrevi no primeiro parágrafo que a vida é composta de movimentos circulares que não compreendemos e assim como o oroboros (a serpente que morde a própria calda), todo processo vivido é cíclico e retorna a si mesmo iniciando um novo movimento. Um dos conceitos mais bonitos a meu ver na filosofia é o devir de Heráclito. Um continuum movimento que transforma a si mesmo. A perfeita representação gráfica disso é o círculo, a elipse. Segundo Jung, a mandala, a mandorla. Quero dizer que muitas vezes na vida retornaremos aparentemente a um mesmo ponto, mas jamais será com o mesmo grau de consciência inicial. O Jung teve a genialidade de constatar e postular que o desenvolvimento da consciência humana é circular, não-linear, cartesiano. O desenvolvimento da consciência mais se assemelha à subida em uma grande escada em caracol; em qualquer ponto dessa escada, ao olhar para baixo sempre se terá a mesma perspectiva, contudo será sempre distinta a altura em que se está.

            Existe uma fábula que é muito propícia como alegoria para esse texto. Vou resumir. Havia três leões numa floresta e os animais precisavam saber qual seria o rei da selva, então foi dado aos três a mesma missão: escalar a montanha mais alta. Os três falharam. Diante do impasse, os animais ficaram então sem saber a quem eleger, porém a águia que os assistiu subir, interviu e disse que deveria ser o terceiro leão. Todos questionaram o motivo e ela respondeu o seguinte: “O primeiro e o segundo não conseguiram escalar e ao descer os ouvi esbravejando à montanha que ela havia vencido. O terceiro leão também não conseguiu escalar, porém sua postura me surpreendeu, quando o ouvi dizer, 'Montanha, você me venceu hoje, mas você já atingiu seu nível máximo, mas eu ainda estou crescendo'. Essa é a atitude de um verdadeiro rei, concluiu a águia.” Na simbologia, o leão é análogo ao Sol e ao ego, que por sua vez é análogo à consciência humana, o que significa que ela está sempre em expansão. Lembre-se disto: muitas vezes uma situação ou um problema na sua vida já atingiu o clímax, o ponto máximo, mas você não, você ainda está crescendo. Essa é a postura daquele que busca pela Individuação.

            O Opus Magnum (A Grande Obra) do alquimista passava pelas operações calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio/putrefatio, separatio, coniunctio, partindo da prima-matéria para se chegar ao ouro não vulgar, o ouro filosófico. A Pedra Filosofal. Tudo alegoria... Cada uma dessas operações alquímicas – que não são necessariamente nessa ordem – possuem uma correspondência psicológica. Na mortificatio/putrefatio por exemplo, fala-se de morte e decomposição, é a fase Melanosis, também conhecida com a Nigredo, que acontece em qualquer momento da vida – várias vezes inclusive - ao longo do nosso desenvolvimento da consciência. É a descida ao inferno. A noite escura da alma. É o choque que a consciência recebe no encontro com os conteúdos do inconsciente por exemplo e nesse momento o nosso ego (enquanto representante da consciência) sempre sai fragilizado, pois é quando nos percebemos falíveis, frágeis, imperfeitos e isso sinaliza para algo interior que precisa “morrer”. Uma idealização de si mesmo, uma fantasia, uma relação; é sempre um processo de luto, mas que concluirá abrindo para a um novo começo, para uma nova possibilidade. Para Jung, as quatro fases alquímicas tem relação com a psique: Melanosis (Nigredo), Leukosis (Albedo), Xanthosis (Citredo) e Iosis (Rubedo).

            Jung encontrou na alquimia a simbologia e o fundamento histórico da sua teoria psicológica, visando representar um processo de desenvolvimento de consciência que todo ser humano passa. Tenha em mente então que todas as nossas relações (seja familiar, afetiva, profissional, pessoal), todas as circunstâncias da vida (boas, ruins), todos os acontecimentos, sentimentos e afetos que experienciamos propiciam a nossa transformação. Viver é alquímico! É um processo às vezes difícil, às vezes doloroso, porque ganhar consciência nunca é fácil, como disse anteriormente nosso ego sempre sairá comprometido de alguma forma. No entanto, não existe obra mais grandiosa do que àquela a qual submetemos a nós mesmos, numa perspectiva de lapidação do caráter, na criação e no desenvolvimento de uma consciência que se harmoniza com os nossos aspectos sombrios e inconscientes, na capacidade do indivíduo de tornar-se a si mesmo e sair uma pessoa melhor do que aquela que um dia chegou. Segundo a psicologia analítica, esse é o Opus Magnum (A Grande Obra) de um ser humano, a qual ele se empenhará do início da vida até o dia de sua morte, sem contudo conseguir concluí-la. Mas a grande missão não está no destino, estará sempre na jornada. Então continue...



***

LENDA HINDU: A Divindade do Ser Humano


Houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram tanto de sua divindade que Brahma, o Mestre dos Deuses, tomou a decisão de lhes retirar o poder divino: resolveu escondê-lo em um lugar onde seria absolutamente impossível reencontrá-lo. Mas o grande problema era encontrar um esconderijo. Brahma convocou, então, um conselho dos deuses menores para resolver o problema:

“Enterremos a divindade do homem na terra”, foi a primeira ideia dos deuses.

Não, isso não basta, pois o homem vai cavar e encontrá-la”, respondeu Brahma.

Então os deuses retrucaram:

Então, joguemos a divindade no fundo dos oceanos”.

Mas Brahma não aceitou a proposta, pois achou que o homem, um dia iria explorar as profundezas dos mares e recuperaria.

Então os deuses menores concluíram:

Não sabemos onde escondê-la, pois não existe na terra ou no mar lugar que o homem não possa alcançar um dia”.

Então Brahma, sem saber mais o que fazer, recorreu à sabedoria do Grande Deus Mahadeva, o Senhor Shiva.

Eis o que vamos fazer com a divindade do homem, falou Mahadeva: vamos escondê-la nas profundezas dele mesmo, pois é o único lugar onde ele jamais pensará em procurá-la. O único caminho que o tornará capaz de reencontrar este poder, será através de Jñana (Conhecimento). Mas não será tão fácil, ele terá que driblar o poder de Maya (Ilusão) e de Anava (Egoísmo), e para isso, terá que reaprender a controlar a mente e os sentidos, observando a Lei Divina do Karma (Causa e Efeito).

Então Brahma ordenou que fossem criados os primeiros ashrams e as primeiras escolas de yoga e meditação. Mas mesmo assim, conclui a lenda, o homem continua dando voltas na terra, voando, explorando, escalando, mergulhando e cavando, em busca de algo que se encontra dentro dele mesmo.

 (Autor Desconhecido)

terça-feira, 15 de novembro de 2022

QUANDO SE ANALISA O DESTINO


O inconsciente familiar forma uma rede invisível, que encerra de forma vertical a todos os membros de uma família, e desde gerações os envolve num nível inconsciente de destino. Da mesma forma age de forma horizontal, com todos os membros vivos da família em uma rede afetiva muito profunda. Assim, a análise do destino considera o homem não como um indivíduo isolado, mas enraizado no contexto visível e invisível que o acompanha por toda a vida, no seu futuro e no daqueles que virão”. (L. Szondi)


      Sempre fui fascinado pela ideia de “Destino”. Durante toda a minha vida, a medida em que ia tomando as minhas decisões, volta e meia me percebia orbitando nessa ideia. O homem estaria livre para construir a própria vida – o que significaria sem determinantes – ou estaria ele predestinado ou condicionado em alguma medida? Essa é uma das reflexões mais célebres – talvez ainda sem resposta – dentro da filosofia, e mesmo dentro da própria psicologia que se pretende a estudar a subjetividade e o comportamento humano. Podemos tentar respondê-la a partir de determinadas perspectivas, sejam filosóficas, biológicas, psicológicas, religiosas, por vezes esotéricas ou místicas, mas a meu entender, no “frigir dos ovos” como dito antigo, essa questão não fecha. Ela é em si polêmica – pois envolve crenças de toda ordem e de toda sorte – e é complexa – como tudo o que envolve o homem e o seu agir no mundo. O objetivo então do texto de hoje é promover a reflexão – ainda que breve – sobre esse tema que me fascina. Destino. E trazer alguns posicionamentos teóricos para cruzarmos com os nossos pensamentos. Gostaria que ficasse com essa reflexão em mente e, caso nunca a tenha feito, tentasse agora se responder:


Você é livre para construir o seu destino?

Se sim, até que ponto?


      Na Grécia Antiga, acreditava-se que o destino dos deuses e dos homens era tecido pelas Moiras. Essas entidades sinistras eram conhecidas como três irmãs, filhas de Nix a deusa da noite, que teriam a capacidade de fabricar, tecer e cortar o fio da vida, sendo então as responsáveis pelo nascimento, crescimento e morte de todos os seres.

      Segundo a bíblia, ao profeta Jonas foi dada por Deus uma missão; deveria ele ir à cidade de Nínive e alertar os que lá viviam do iminente castigo divino, devido ao comportamento das pessoas. Mas, contrariando a vontade do Senhor, Jonas se nega e pega intencionalmente um outro destino. Durante seu trajeto em alto mar, surge uma enorme tempestade e os marinheiros, percebendo que aquilo não era comum, clamam aos seus deuses, até desconfiarem de Jonas, que admite ser por sua causa a ira de Deus e pede que o atirem ao mar que a tempestade cessará. Sem outra alternativa já que a tempestade não cessava, os marinheiros o lançam ao mar. A tempestade se acalma e Jonas é milagrosamente engolido por um peixe grande. Dentro do peixe três dias e três noites, o profeta se arrepende, ora e clama a Deus prometendo cumprir a sua tarefa. Deus ordena ao peixe que vomite Jonas em terra firme e novamente o manda ir a Nínive cumprir a sua missão.

      Vou fazer agora a abertura de um parênteses aqui. O meu nome foi extraído justamente desta passagem bíblica, em homenagem a esse profeta. Não sei se Jung diria que haveria aqui uma força arquetípica operando sobre em mim, mas posso afirmar que, estranhamente, tenho a mesma “personalidade” dessa personagem – ora sábio, maduro, ora infantil, queixoso e reclamão. E durante a minha vida inteira embora sentisse certa “inclinação” para alguns caminhos, intencionalmente peguei outros – como se para afirmar que na minha vida mando eu. Quis escrever esse parágrafo agora para já antecipar mais ou menos a minha opinião quanto a nossa pergunta inicial (lembra?), mas prometo que deixarei mais claro o meu posicionamento até o final desse texto.

      Como sabem (já mencionei em textos anteriores) estou me graduando em psicologia. Neste semestre a professora de Behaviorismo nos trouxe um texto que ilustra bem o assunto de hoje, que se chama "O conceito de liberdade e suas implicações para a clínica", de Alexandre Dittrich (encontra-se no livro Clínica analítico-comportamental. Aspectos teóricos e práticos). Esse texto é interessante porque aborda justamente este embate: o livre arbítrio e o determinismo. Recomendo a leitura para complexificar a nossa análise. Como já dei a dica então, essa nossa professora é uma psicóloga behaviorista – e radical. Então ela tem uma visão de homem que está consonante com esse referencial teórico. Estou tendo a oportunidade agora na graduação de conhecer melhor o que de fato é o behaviorismo, confesso que estou gostando bastante. Da perspectiva do modo causal de seleção por consequência, todos os nossos comportamentos envolvem níveis filogenético, ontogenético e cultural. Como disse lá no primeiro parágrafo, para responder aquela pergunta inicial então, depende da perspectiva.

      Como podem observar em meus textos aqui no blog, gosto bastante da teoria psicanalítica e assim como o behaviorismo, a psicanálise é até hoje considerada por muitos bastante determinista. E existe um teórico, pouco conhecido aqui no Brasil nesse universo, chamado Lipót Szondi. Szondi foi um médico, psiquiatra e psicanalista húngaro que buscou desenvolver uma Psicologia Profunda, criando o que seria uma terceira dimensão do inconsciente; Sigmund Freud (o inconsciente pessoal), Carl G. Jung (o inconsciente coletivo) e Szondi (o inconsciente familiar). Cabe ressaltar que as ideias de Szondi não foram amplamente aceitas e o seu teste projetivo que ficou conhecido como “Teste de Szondi” não foi validado em todos os países (como o Brasil por exemplo).

      Particularmente achei o teste Szondi bastante interessante quando o fiz. Em todo o caso, faço menção a esse psicanalista porque ele desenvolveu o que chamou de Análise do Destino. Como no texto de hoje estou trabalhando – ainda que breve – as ideias de destino, livre-arbítrio, determinismo e psicologia, achei bastante oportuno trazê-lo. Szondi desenvolveu uma teoria biopsíquica e segundo ele, a demanda pulsional reprimida de uma pessoa constitui o fator desencadeador de questões muito mais profundas, que seriam hereditárias geneticamente. O ser humano não teria somente um único destino, mas tantas possibilidades de destino quantos ascendentes marcantes ele trouxer em seu patrimônio hereditário; e essas possibilidades genéticas de destino moldarão desde a escolha de seu parceiro amoroso, até a sua profissão ou uma doença que venha a desenvolver ao longo da vida.

      Após ler o parágrafo anterior, a mim é inevitável chegar nele, o alemão Bert Hellinger, desenvolvedor da Constelação Familiar – prática que até o momento não é reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia. Contudo, o objetivo aqui é fazer apenas um paralelo com a teoria de Bert Hellinger. Leia apenas essa frase dele, "Destino é aquilo que alguém segue e, na verdade, frequentemente sem saber por quê. Quando se olha com exatidão, pode-se ver que o destino é determinado por uma consciência coletiva inconsciente que atua nas famílias. Essa consciência só pode ser reconhecida em seus efeitos." E aí, espero que continue refletindo a nossa pergunta inicial.

      Vamos sair de perspectivas “inconscientes”. No semestre passado li um livro sobre TE (Terapia do Esquema), ela é um modelo de psicoterapia cognitiva que foca no tratamento de diversos transtornos de personalidade. Não conhecia muito sobre psicoterapias cognitivas, em especial esta – ainda sei superficialmente –, mas, dentro da perspectiva cognitivista, pelo pouco que pude entender, a partir da infância o ser humano desenvolve esquemas (padrões de pensamentos e comportamentos) e modos esquemáticos (“estados” que são ativados em determinadas situações) que levará até a vida adulta, e alguns podem ser desadaptativos, disfuncionais, autodestrutivos etc.

      Segundo essa perspectiva cognitivista, o ser humano enxergará o mundo e se comportará nele utilizando esses esquemas cognitivos (chamados também de crenças). Trago esse parágrafo para dizer que, antes de sabermos se de fato um ser humano é ou não livre, talvez precisaríamos, ou faria mais sentido, entender o que uma pessoa acredita. Se para ela o seu destino é definido pelos deuses, assim poderá ser. Mas se ela acredita que constrói o seu destino a partir do seu querer e das próprias ações – como tão propagado hoje em dia no mundo corporativo pelo coaching – assim será também. Por isso é inútil discutir com quem acredita em astrologia, porque a pessoa “enxerga” razão nisso; da mesma forma que é inútil discutir com quem fala no poder do indivíduo de mudar a própria história a partir de forças individuais, pois se essa pessoa acredita nisso, é o que vai (conseguir) enxergar.

      Bem, e qual é a minha visão? Todas estão corretas. Não estou querendo dar uma “ensaboada” aqui. Mas assim como tenho minha fé e acredito em Deus, faz sentido – para mim – que determinadas circunstâncias na minha vida deverei passar, mesmo sendo me dado o livre arbítrio. De um ponto de vista behaviorista, pensando que liberdade não é um estado absoluto, mas que existiria “graus de liberdade”, posso entender que a partir das minhas escolhas obtenho certa liberdade – mesmo ainda condicionado. Sinceramente acredito que todo ser humano carrega uma herança genética de seus antepassados que se traduzirá, em maior ou menor grau, em seu destino – e o melhor a se fazer é ter consciência e olhar para essa ancestralidade o quanto antes possível. Por fim, concordo ainda que o destino do homem pode começar com seu pensamento, e finalizo com a célebre frase atribuída a Margaret Thatcher que diz isto, Cuidado com seus pensamentos, pois eles se tornam palavras. Cuidado com suas palavras, pois elas se tornam ações. Cuidado com suas ações, pois elas se tornam hábitos. Cuidado com seus hábitos, pois eles se tornam o seu caráter. E cuidado com seu caráter, pois ele se torna o seu destino.

 

Destino é uma decisão autêntica do homem. Destino é a decisão de retornar a si mesmo, de transmitir-se a si mesmo e de assumir a herança das possibilidades passadas.” (Heidegger)

 

E aí, você sabe qual é o seu destino?

domingo, 16 de outubro de 2022

ENANTIODROMIA


      Um dos filósofos mais interessantes da humanidade para mim foi o pré-socrático Heráclito, que entre muitas contribuições nos trouxe o fantástico entendimento do devir, mas principalmente um outro termo chamado Enantiodromia, que significa que toda força dispendida numa direção gera uma força no sentido contrário. A meu ver esse é um conhecimento muito poderoso. E mais fascinante ainda quando Jung toma emprestado esse termo para explicar o funcionamento dos processos energéticos da mente humana, num movimento compensatório entre consciente e inconsciente, visando alcance de equilíbrio. Isso faz todo o sentido...

      Quando estava na adolescência, tive sérios problemas de comportamento, era indisciplinado, agressivo, bastante rebelde, principalmente dentro de casa e na escola. Tudo começou por volta dos quatorze anos. Dentro de casa só ficava no meu quarto ouvindo rock, me lembro que montei lá um bar e ficava com meus amigos bebendo. Dava festas em casa que eram “As festas”. Quando meu pai ia conversar comigo para chamar minha atenção, ele estava sempre bêbado, então o enfrentava e as consequências eram brigas. Todo dia briga... Não sabia porque agia daquela forma, hoje vejo que só queria chamar a atenção. Na escola ia com correntes, calça rasgada (um dos primeiros a usar) e quase fui expulso, era aquele aluno com altíssimo potencial jogando a vida no lixo; discutia à toa com os professores, brigava com os colegas, era um rebelde sem causa que tinha prazer em entregar as provas em branco – mesmo sabendo todas as respostas!

      Os professores que entravam na minha, quando se via já estávamos brigando, com exceção de um ou outro. Mas um em particular me incomodava, o de História. Ele era impassível, não entrava no meu jogo. Quando entregava sua prova em branco, ele corrigia, não falava nada, só me dava nota vermelha e ficava em silêncio. Mas eu tinha que cutucá-lo, aquilo era demais para mim. Só que toda vez ele, placidamente, me dizia: “Sei quem é você. Assim como sei que, o dia que quiser, mudará esse jogo”. Ele não acreditava no meu fracasso. Não entendia isso, mas estranhamente ele parecia ter alguma razão já que na sua frente me sentia infantil, pequeno. Me sentia uma farsa descoberta. Como não tinha maturidade para compreender suas filosofias naquele momento, prossegui reprovando o terceiro ano do Ensino Médio e parando de estudar.

      Nessa época, me lembro de um dos colegas de classe que falava que queria ser padre. Seguiu isso por anos. Não suportava esse rapaz. Quando ele começava com aqueles sermões religiosos e lições de moral para cima de mim e dos meus amigos porque levávamos revistas de “conteúdo adulto” e ficávamos folheando e falando besteiras na sala, começava a discussão! Podia ver claramente que aquilo nele era recalque, no sentido freudiano mesmo, pois ele reprimia o desejo de ter contato com aquele conteúdo e nos atacava naquela forma de puritanismo religioso. Mas olha que engraçado, me achava muito sabichão ao enxergar e julgar esse movimento nele, mas não estava eu fazendo o mesmo?! Quero dizer que eu também estava projetando! Hoje tenho consciência disso, mas naquela época não. Da mesma forma penso que ele também não tinha. Não suportava sua perfeição de ser aluno exemplar, nota 10, obediente, bom filho, ser o queridinho dos professores, aquele puritanismo todo, enquanto me via como um devasso, um perdido completo. Não conseguia ter a menor perspectiva de vida e de futuro bom para mim, me achava uma aposta que deu errado.

      Resumindo a ópera, reprovei no último ano do Ensino Médio. Juro que parecia profecia autorrealizável porque sabia que não concluiria. Sabia... Tratei a contra gosto de me conformar com minha incompetência e me afoguei num trabalho que já não suportava mais também. Quando de repente, quem esperaria... Ao completar dezoito anos, um dia chego do trabalho e recebo a informação que meu pai estava internado, falecendo naquela mesma noite. Do nada. Ele não tinha nada. Infartou. O choque que levei foi tão forte que naquele momento não reunia forças nem para chorar. Embotei. Era um bololô de sentimentos que não conseguia sentir nenhum, só tinha clareza enquanto seu caixão descia à cova que eu jamais seria o mesmo. Segundo Sigmund Freud, ao contrário do luto, na melancolia a sombra do objeto perdido recai sobre o ego. Até aquele momento meu pai era tudo o que eu tinha. Apesar de ter minha mãe, ela trabalhava bastante, então sua ausência sempre foi preenchida pelo meu pai. E então ele partia, me fazendo ouvir o barulho das ruínas aqui dentro despencando... Fechei para balanço. Chorei por meses. Hibernei sem data para acordar.

      Quando finalmente reuni forças novamente, algo impressionante aconteceu. Tenho a impressão que adentrei um rio por uma das margens e sai uma pessoa diferente quando surgi na outra. Voltei a estudar, fiz EJA (Educação de Jovens e Adultos). Prestei vestibular. Fiz ENEM, quase gabaritei a redação, ganhando assim uma bolsa de estudos na faculdade de 100%. No trabalho fui ganhando promoções atrás de promoções. Fiz especializações. MBA. Estava namorando sério. De repente me percebi correto, correspondendo expectativas. Perfeccionista. Sério. Íntegro. E qualquer semelhança com o meu antigo arqui-inimigo é uma mera coincidência... (rs) Ah! E ele que iria ser padre né, se casou após a escola e hoje é pai de família.

      Agora vou chegar ao ponto que quero. Precisei relatar toda essa história pessoal – verídica – para dizer que apesar de nem nos meus delírios mais insanos, imaginar que adentraria uma faculdade com aquela vida que levava, inconscientemente isso sempre esteve aqui. Enquanto mantinha na consciência e expunha à sociedade uma persona libertina e agressiva, força diametralmente contrária jazia inconscientemente, que cedo ou tarde buscaria compensação para equilíbrio. Segundo Carl Gustav Jung, pai da psicologia analítica, “Se a vida por algum motivo toma uma direção unilateral, produz-se no inconsciente, por razão de autorregulação do organismo, um acúmulo de todos aqueles fatores que na vida consciente não tiveram voz, nem vez”.

      Como na adolescência estava passando por problemas familiares complexos e crises de identidade, e como não tinha maturidade nem suporte para lidar com tudo isso, tudo o que conseguia fazer era externar uma imagem única de afronta e rebeldia, que também fazia parte de quem era, mas não unicamente. Por algum motivo recalquei exatamente o oposto disso, o jovem inteligente, educado e disciplinado (que existia quando eu era criança!) e quando enxergava isso no meu colega de classe (mas não conseguia mais ver isso em mim), a inveja que sentia dele me fazia atacá-lo! Porque ele continha tudo aquilo que eu queria ser, mas não sabia que queria, nem me imaginava ser capaz, já que por defesa criei uma persona oposta a essa.

O que gostaria que você refletisse a partir desse estudo de caso?

      Quantas histórias, quantos casos não conhecemos assim? É claro que podemos observar as pessoas ao nosso redor que estão “polarizadas”, expressando apenas um perfil estereotipado, mas o objetivo é olhar para si, já que muito pouco, ou nada, podemos fazer pelo outro. O objetivo aqui é sermos mais compreensivos e julgarmos menos as pessoas, porque ninguém é uma única coisa. Hoje quando me perguntam se não acho que fulano é isso ou fulano é aquilo, sinceramente quase sempre não faço ideia da resposta, porque quem diz da pessoa é ela, e como vimos muitas vezes podemos estar projetando conteúdos nossos nessa avaliação. As pessoas mudam, se transformam, elas podem estar passando por algum problema pessoal, mas ninguém é uma coisa só, então cabe respeito.

     Ao invés de fechar numa única forma de enxergar tudo isso, o melhor é integrar todas as partes como recomenda o Jung. Acho engraçado a surpresa que as pessoas têm quando enxergam as minhas tatuagens – e tenho algumas grandes e bem visíveis. A primeira coisa que falam, “Você não tem cara de quem tem tatuagem”. Minha resposta é sempre, “E qual é a cara de quem tem tatuagem?”. A pessoa insiste, “É que você é uma pessoa séria”. E eu continuo, “Uma pessoa séria não tem tatuagem?”. Silêncio. Da mesma forma que creio que alguns leitores aqui – não os mais antigos – ficaram chocados ao ler e imaginar esse período da minha adolescência. O que posso dizer é revejam os seus conceitos, porque os meus estão bem resolvidos.

      Você tem um perfil estereotipado? Você tem perspectivas “fechadas” de vida e sobre as pessoas, possui padrões obsoletos, esquemas psíquicos limitados, tem dificuldade de enxergar nuances na personalidade e no comportamento das pessoas e até em si mesmo? Se a resposta for sim, tenha certeza que tudo aquilo que você exibe com força na consciência ou através da persona, há uma força igualmente oposta no inconsciente, que em algum momento buscará por equilíbrio através de compensação. E será percebível esse movimento, quando você adotar um comportamento contrário ao esperado pelo meio – fazendo isso inconscientemente.

      Segundo o filósofo Heráclito, assim como na natureza, Tudo se faz por contrastes, da luta de contrários, nasce a mais bela harmonia”. Esse é o entendimento do termo Enantiodromia, e podemos observá-lo em dinâmicas individuais ou coletivas. E pensando em dinâmicas coletivas, isso nos faz refletir bastante não? Todas as vezes em que vemos uma pessoa caminhando para um determinado extremo de comportamento, tenha certeza que em dado momento isso vai virar, ela vai polarizar no oposto. Para Jung, "A única pessoa que escapa da lei implacável de enantiodromia é o homem que sabe separar-se do inconsciente, não reprimindo-o, pois assim ele simplesmente o ataca por trás, mas colocando-se claramente diante dele como aquilo que ele é."

      O que isso significa? Temos que buscar no nosso inconsciente todas as informações, os desejos, os aspectos da nossa personalidade que foram banidos da consciência por algum motivo. Para expressá-los?! Não necessariamente. Só se você quiser. Mas sublimá-los quando possível. Colocando-se claramente diante disso como aquilo que é. Um padre por exemplo nunca tem desejos carnais ou fantasias sexuais? Claro que tem, ele é homem, não é anjo. Ele se faz padre enquanto nega a prática, não o desejo! Isso significa que um padre que quer manter sua castidade, precisa ter consciência de que ele reprime a luxúria e precisa encarar e assumir que isso é parte de si, ainda que decida por seguir seus votos. Ele recusa o ato. Mas não pode negar o desejo! E assim ambas energias psíquicas coadunam, de alguma forma possível, no campo da consciência.

Excesso de pranto ri. Excesso de riso chora.” (Autor desconhecido)

domingo, 25 de setembro de 2022

QUEM É VOCÊ

 


     Uma das tarefas mais difíceis quando vamos escrever um texto é justamente começá-lo. Saber sintetizar as experiências e os conhecimentos avolumados interiormente, somados às emoções e expectativas do autor, já é algo complexo, mas conseguir encontrar um ponto de partida que dará vazão a tudo isso é muito mais, é a ponta da flecha a ser disparada. Há muitas coisas que gostaria de trazer aqui e outras tantas que não saberia escrever, que vamos fechar num acordo: começarei simplesmente então, certos de que não é tudo o que gostaria de falar, mas fico na intenção de tentar.

      Atualmente sou graduando em psicologia pelo Centro Universitário de Jaguariúna (UniFAJ), faço parte do primeiro Grupo de Estudos em Psicanálise (GEPSI) da faculdade recentemente criado, sou pós-graduando em teoria psicanalítica pelo Instituto de Pesquisa e Estudos em Psicanálise nos Espaços Públicos (IPEP) e estudo na Confraria Analítica do psicólogo, psicanalista e professor Dr. Lucas Nápoli. Sou amante de psicanálise, de psicologia, do estudo sobre o animal homem. Não sei se clinicarei um dia como psicanalista de fato, certamente que cumprindo o tripé (teoria, análise pessoal e supervisão) nada me impede, contudo me percebo [hoje] mais como um estudioso, um teórico da psicanálise, nesse campo de estudo que muito me fascina. Tenho planos para um dia fazer também mestrado e doutorado nessas áreas, seguir por algumas linhas de pesquisa, ser professor talvez, mas principalmente um pesquisador, ser um cientista. Mas sei também que a psicanálise se faz da prática, a psicanálise foi muito mais a clínica de Freud que alimentou sua teoria. Podemos então dizer que a psicanálise vem da prática clínica, que fortalece a teoria, que dá subsídios à prática novamente. Mas vejo em mim muito mais os arquétipos do sábio, do mago... E aqui entramos no que quero escrever. Arquétipo. Persona. Perfil. Tipo. Título. Identidade. Personalidade de um modo geral. Quem é você? É quem você é?! Sem subjetivar demais, ou como dizem muita “brisa”, vamos pensar objetivamente quem somos...

     Por que comecei pondo esses títulos? Porque isso me representa de algum modo. Ou melhor, o modo que quero me representar aqui, e neste momento. Isso envolve meus anseios, necessidades, vontades. Vaidades! Onde você mora, no que trabalha, o que estudou, onde estudou, seu sobrenome, estado civil, com quem se casou, sua classe social, religião, entre tantos títulos a [poder] representá-lo de algum modo. Mas será que eles dão conta de quem você é? Por outro lado, existiria então uma essência de você? E essa identidade seria única e imutável? Tenho minhas dúvidas... Muitas dúvidas na verdade.

      Há um TED de alguns anos atrás de Chimamanda Adichie sobre o perigo de uma história única. Nele a escritora nigeriana traz como algumas histórias são transmitidas de uma versão única, criando estereótipos, reduzindo e superficializando as experiências, e capacidades, de uma pessoa ou de um povo, roubando sua dignidade, e o quanto isso oculta relações de poder. A autora traz este recorte, histórias que temos acesso ou que nos são contadas, mas eu gostaria de refletir aqui também, pegando esse gancho, sobre as histórias que contamos a nós, sobre nós mesmos, criando identidades fixas que reforçamos, nos colocando ainda mais em caixinhas. Costuro essa temática da palestra de Chimamanda a um livro do britânico-jamaicano Stuart Hall, “Identidade cultural na pós-modernidade”. Nesse livro, o sociólogo traz uma concepção de sujeito pós-moderno. Segundo esse autor, as identidades antes eram fixas, essenciais, permanentes, com o tempo elas foram se “ligando” às estruturais da sociedade, aos grupos, que também eram sólidos, contudo isso hoje vem mudando radicalmente, rapidamente, pois o sujeito pós-moderno é fragmentado, composto de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.

      Na psicanálise existem dois conceitos psicológicos trazidos pelo psicanalista Donald Winnicott chamados de verdadeiro self e falso self. Para Winnicott possuímos desde tenra infância a possibilidade da construção de um verdadeiro self, que está relacionado à expressões espontâneas e autênticas, que nos dá a sensação de estar em contato e vivenciando as nossas reais necessidades. Mas quando não há um ambiente [cuidadores] suficientemente bom, não haverá um sentimento de continuidade do ser, originando uma personalidade a partir de um falso self, com o objetivo de proteger o verdadeiro self! O falso self não é o que o sujeito é, ele surge quando a criança é confrontada pela necessidade de cumprimento dos desejos e expectativas dos pais, não reconhecendo que não são dela tais desejos. Com a análise ocorrerá essa continuidade do ser e uma das tarefas é buscar junto ao paciente esse verdadeiro self, para que ele possa expressar verdadeiramente o que ele pensa e sente. O que na Abordagem Centrada na Pessoa, da psicologia humanista, é similar à Congruência, termo cunhado por Carl Rogers.

      Na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, o arquétipo persona é construído em paralelo ao ego e à sombra, desde o início da vida. O termo “persona” inclusive vem do teatro grego antigo, em que as personagens usavam máscaras para encenar. Isso significa que são os personagens que construímos na vida, por inúmeras razões, e algumas legítimas e necessárias, para a sobrevivência em sociedade. A persona é sim bastante necessária. Todos possuímos um “papel” no trabalho, um “papel” na família, outro na sociedade, no grupo de religião, de amigos etc. Isso não significa necessariamente estar sendo “falso”, pelo contrário, é estar alinhado e de acordo com regras e códigos sociais para se ter uma vida em equilíbrio. E quando dá problema? O ideal é que essas “máscaras sociais” não destoem demais do nosso real ser, chamado também de “Si mesmo” na psicologia junguiana. O conflito interno aparece quando esse indivíduo está excessivamente comprometido às ideias coletivas e demasiadamente IDENTIFICADO com a MÁSCARA, eclipsando sua individualidade mais profunda. O indivíduo precisa, em boa medida, da persona para poder viver bem em sociedade, mas ele também não deve perder a si mesmo de perspectiva nesse processo, devendo ao longo da vida também buscar a sua Individuação, a integração da sua personalidade.

     Apenas para pensarmos aqui... Hoje em dia, um dos grandes diagnósticos psiquiátricos é o Transtorno de Personalidade Borderline, que já existia, mas ouço cada vez mais casos, e segundo os critérios do DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças), há nesses indivíduos, entre outros critérios, um sentimento crônico de vazio e uma perturbação da identidade. O tratamento a essas pessoas demanda médico psiquiatra e em algum momento inclui psicoterapia, e uma das intervenções certamente será auxiliar essas pessoas na construção de uma personalidade própria, numa identidade, na valorização de si mesmas.

      Dei todas essas voltas e trouxe todas essas teorias para pensarmos sobre Identidade(s). Quem nós somos? Quem você acha que é? E você é somente isso? Como você se percebe, se entende e se exerce enquanto indivíduo, dentro de um sistema social? Isso é extremamente importante! O animal humano é social, mas tem capacidades e potencialidades únicas que precisam de expressão também. E é esse o grande dilema da vida humana, trazido por Sigmund Freud na eterna tarefa do ego de equilibrar a maximização do prazer advindo do id, com a minimização do desprazer advindo do superego. O animal humano social tem esse desafio. Existe parte em nós que é selvagem, sim, porque somos animais! Contudo, nós somos seres feitos para viver em sociedade. Coloque um homem numa cela solitária indefinidamente e verá o que acontece, se ele não for um psicopata, ele definha e morre, não fomos feitos para viver sozinhos. Por outro lado, não podemos perder uma individualidade mais profunda em meio ao social, pois isso também empobrece a existência humana, consequentemente nos adoece. Viver dá trabalho! Exige uma operação sobre si mesmo.

Você já iniciou essa operação? Ou nada disso faz sentido para você?

      Para problematizar ainda mais a nossa existência, além de ter consciência e ter que trabalhar todos esses aspectos levantados ao longo desse texto, ainda precisamos lembrar que as regras e os códigos sociais estão invariavelmente ligados à ética e à moral de um povo, numa determina época. Não sei vocês, mas já me indaguei várias vezes na vida, em situações específicas, o que era ético ou moral naquela circunstância. Não falo aqui de princípios que até são mais certos universalmente, como “não matar” ou “não roubar”, porque na vida nem sempre é assim, objetivo e claro. Não mentir” por exemplo, é um princípio ético ou não? Penso que sim. Mas também creio em inconsciente. Posso partir de um ponto em que declaro algo a alguém e estou mentindo. Não objetivamente. Não conscientemente. Mas quantas vezes não mentimos a nós mesmos, sem consciência disso? Este é apenas um exemplo, de uma intrincada e complexa teia, que atrela animais humanos subjetivos e seus valores éticos e morais, num dado período de tempo. Se olharmos culturas antigas e compararmos a nossa perceberemos o quanto essas noções se alteram ao longo da história. E antes que os críticos apressados se munam ao ataque, calma, este texto não é um convite à anarquia, relativizando ética e moral, mas apenas problematizando e levantando algumas questões. Mas fica como sugestão este documentário abaixo, muito bem elaborado sobre este assunto, “Alma Imoral” do rabino Nilton Bonder. Confira!

 

Sinopse: De que forma é possível impulsionar as formas de levar a própria vida? Quais as diferenças entre a interpretação da vida, a partir da concepção científica e da concepção bíblica? A reflexão e o questionamento a respeito do que seriam os conceitos de alma (transcendentalidade) e matéria física (corpo), convenções, e rupturas são pontos abordados pelo diretor Silvio Tendler neste documentário. Baseado na obra homônima de Nilton Bonder, o filme delimita uma conexão entre pessoas de diferentes crenças; desde adeptos da religião e da tradicionalidade até contraventores de diversos segmento.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

TERAPIA É UMA DANÇA DE MÃO DUPLA

 

      Hoje pretendo escrever sobre algo que sempre me chamou a atenção dentro de uma análise, e até hoje não encontrei consenso sobre isso, que é uma medida ideal entre o dar e o receber por parte do analista. Aqui me refiro objetivamente a processos de contratransferência e intervenção. Quando comecei a estudar psicanálise, me lembro que as primeiras coisas que pensei foram: “psicanalista precisa ser neutro, buscar ser uma tela em branco, ele não deve se permitir processos de contratransferência e tomar muito cuidado com suas intervenções e interpretações em análise”. Mas com o passar do tempo, estudando outros psicanalistas, como M. Klein, Winnicott e Ferenczi por exemplo, vi outras perspectivas sobre contratransferência e intervenção em processo analítico. Hoje já não acredito que haja uma resposta certa para essas situações, nem uma medida ideal como escrevi logo acima; penso que cabe mais ao profissional, no manejo da transferência do paciente, estar primeiro consciente da sua possível contratransferência e estar preparado para quando ocorrer, embasado teórica e tecnicamente para prosseguir.

      Talvez a partir daqui já deixei demonstrado que tomo alguns posicionamentos a respeito desse assunto, mas para deixar ainda mais claro declaro que não acredito na neutralidade por parte do profissional numa terapia (em qualquer que seja), não acredito que seja possível inexistir uma contratransferência ao longo do processo e acredito que o excesso de intervir e fazer interpretações pode ser tão prejudicial quanto nunca fazê-lo. Ao ouvir a palavra neutralidade automaticamente me vem à mente um robô, qualquer ente desprovido de subjetividade e quando pensamos em seres humanos vamos entrar no campo das subjetividades. Justamente por essa razão a prática do psicólogo ou do psicanalista é tão difícil, pois ele, enquanto profissional e ser humano, possui uma subjetividade que se confunde com seu objeto de estudo, que é a subjetividade do outro.

      É claro que um profissional estudou e estuda exatamente por isso, e faz terapia inclusive, para ter consciência e competência para discernir o que é seu e o que é do outro no processo terapêutico. Imagino que pensem em refutar isso com comparações do tipo “um cardiologista tem coração e isso não dificulta que cuide do coração do paciente”, “um neurologista tem cérebro e isso não dificulta que cuide do cérebro do paciente”, mas a psicologia é uma ciência humana e aqui entram mente, consciência, inconsciência e uma gama de fatores intangíveis e não quantificáveis da subjetividade de todo ser humano; além de fenômenos psicológicos que surgem nas releções, como transferência e contratransferência por exemplo. Estou falando aqui a partir de uma visão mentalista e existe sim uma linha na psicologia, a behaviorista radical por exemplo, que terá muitas ressalvas quanto a tudo isso. Mas de uma perspectiva psicanalítica, processos como transferência e contratransferência acontecem inconscientemente onde existir pessoas em relação. O que compete aos profissionais, sejam psicólogos ou psicanalistas, é ter consciência disso e estar teoricamente embasado e tecnicamente preparado para como manejar isso a favor do processo terapêutico.

      É comum ouvir profissionais que atendem relatarem que muitos pacientes chegam e falam que o profissional anterior era monossilábico, que nunca fazia pontuações nem interpretações de nada e que a maior parte do tempo pairava um silêncio sepulcral nas sessões, o que deixava a pessoa mais angustiada do que quando buscou tratamento. Também não é incomum pacientes falarem o contrário, que o profissional anterior monopolizava a sessão falando o tempo todo, quando não apenas de si mesmo. Quem nunca ouviu isso? Concordo que o silêncio é uma fala importante e que muitas vezes alguns pacientes buscam profissionais que falem só o que eles querem ou esperam ouvir e obviamente este não é papel de nenhum profissional, porque isso não promove mudança nem melhoria, pelo contrário reforça dinâmicas que já existem, que se não fossem disfuncionais a pessoa não estaria ali. O papel de um profissional é fazer justamente a pessoa refletir, repensar e por vezes questionar o lugar em que ela se coloca. E aqui entra aquilo que chamei à atenção no início desse texto: deve haver uma calibração entre o dar e o receber. Não acho que um analista tenha que corresponder, intervir e interpretar somente, mas não acho que tenha que ser indiferente, neutro e impessoal também. Mas se existe um ponto ótimo, qual seria?!

      O profissional, psicólogo ou psicanalista, não é amigo, não faz papel dos pais, não está ali para responder a toda e qualquer demanda do paciente, mas ele é um outro ser humano que também possui subjetividade e fará contratransferência por mais preparado e consciente que for. Ao estudar a psicanálise observamos um Freud recomendando aos psicanalistas não atenderem pessoas próximas, como familiares por exemplo e o próprio foi analista da filha. Freud era bastante comedido quanto a uma contratransferência por parte dos analistas e em seus escritos de casos clínicos vemos claramente ele fazendo isso. Dentro do movimento psicanalítico encontramos psicanalistas contemporâneos a Freud e pós freudianos também com recomendações díspares entre si; analistas à la Klein fazendo intervenções e interpretações exaustivas; à la Lacan mais silenciosos e dispostos a cortes de sessão decorrente de um tempo lógico; à la Ferenczi fazendo recomendações e eventualmente expondo elementos de si, e por aí vai... Assim como ocorre na psicologia com as várias abordagens, ocorre também na psicanálise com vários posicionamentos distintos entre si, por isso é adequado se falar psicologias, psicanálises, no plural.

      Finalizo esse texto com uma alegoria para nos fazer pensar que o fazer psicoterapia – seja qual abordagem teórica for – é um fazer em conjunto, como uma dança de salão, um humano com outro. Assim como numa dança são dois corpos; aqui são duas subjetividades que afetam e são afetadas, inconscientemente até. Ouço muito sobre um paciente que tem que se implicar no seu processo para fazer dar certo, mas ouço muito pouco – ou melhor nem ouço – sobre a importância do terapeuta também se IMPLICAR neste mesmo processo. Não discuto a RESPONSABILIDADE que de fato é do paciente, sempre será, é ele quem sabe qual será o estilo dessa dança e quem ditará o ritmo do seu aprendizado, mas envolveu desde o início dois corpos, duas subjetividades que se encontram, que se tocam. 

     Jung não era psicanalista, mas nesse ponto foi mais sábio, quando disse: “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Parafraseando Nietzsche, não se olha para o abismo sem que o abismo olhe de volta para você. Da mesma forma que numa dança você está exposto a sentir o suor, o perfume, o hálito da outra pessoa, você também a expõe a ter contato com o teu. Num processo terapêutico você não vai afetar sem ser afetado. Você jamais conhecerá alguém, sem se revelar no caminho. A questão então não é se; é quando, como e quanto.


Seja um profissional tão bom que saiba ser humano.
E seja um humano tão bom, que será ainda melhor profissional.

 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

MEU FALO É MAIOR DO QUE O TEU


Às vezes um charuto é apenas charuto.” Sigmund Freud


        Calma, em psicanálise, especificamente a lacaniana, falo não é exatamente uma parte do corpo humano, é um significante, um símbolo, cuja função imaginária se relaciona às nossas faltas existências. Já deu pra perceber que o texto de hoje é talvez polêmico, talvez reflexivo, talvez instrutivo, talvez provocativo, o que cabe a mim de antemão responder é sim, talvez seja tudo isso e muito mais até, e cada pessoa quem escolhe como será. Se for possível a você, só peço disposição para lê-lo até o fim e alguma abertura para tentar compreender meu ponto de vista – que nada mais é do que a vista de um ponto.

        Como já imaginava ocorrer em algum momento da minha vida, e cheguei a escrever sobre isso aqui, esse ano iniciei a graduação do curso de psicologia. Estou fascinado pelos conhecimentos adquiridos na sala de aula, estudar a subjetividade humana através de disciplinas às vezes aparentemente tão distintas entre si tem sido algo extraordinário, me percebo mergulhado num universo que a cada dia me interessa mais. Os conhecimentos me instigam, me provocam, por vezes me consomem por completo. Acredito que todo conhecimento transforma o ser humano, vejo isso como algo natural, vi isso acontecendo em minha primeira formação e percebo novamente agora, com a diferença de que hoje me sinto mais preparado, maduro, ou pelo menos mais em paz.

       Deve estar se perguntando em que ponto entra a psicanálise hoje que estudo psicologia e a resposta é que continuo estudando simultaneamente. Tendo a oportunidade de perceber agora como a finalidade de ambas não é assim tão distinta, apenas o raciocínio e talvez a linguagem sejam diferentes; é como resolver um mesmo problema matemático de mais de uma forma, concluindo a mesma resposta. Dentro da própria psicologia tenho dificuldade para enxergar diferenças significativas entre as abordagens teóricas, a mim todas tratam dos mesmos fenômenos psicológicos e chegam a resultados parecidos usando meios diferentes para explicá-los ou tratá-los. Sei que concluirei o curso de psicologia na abordagem psicanalítica já que é a que mais conversa comigo, mas confesso que não vejo qualquer invalidação em nenhuma das outras teorias psicológicas, todas são fantásticas e podem auxiliar qualquer pessoa que precisar e se identificar com a abordagem.

        Aqui entro oficialmente ao tema do texto de hoje que é o seguinte. Onde houver pessoas haverá embates, busca de poder, competição. Vejo isso já na sala de aula. Queria pensar diferente, mas confesso que hoje não consigo e acredito que o curso de psicologia me faz enxergar isso. Certa vez a professora nos disse “Psicologia é política” e ela está certa, como acho que tudo na vida; viver é um ato político. E antes que venha com qualquer discurso de senso comum acusatório, tipo “isso é pensamento comunista”, “É de esquerda...”, calma, peço que baixa a guarda e me responda. O que é ser de esquerda?! E de direita?!

        Hoje em dia essas posições podem ser tão porosas e múltiplas que resvala facilmente ao engano. Quando a professora nos disse isso, ela não fez qualquer menção partidária em sua fala, ela apenas trouxe a reflexão que vivenciamos política em tudo que nos cerca, das mais variadas formas e precisamos no mínimo estar conscientes disso, seja você de direta, seja você de esquerda, de centro, seja lá o que essas posições significarem de fato hoje em dia. E antes que isso aqui vire um fla-flu, o texto de hoje não é sobre isso, vai muito além disso. Afirmo a vida como um jogo de forças quer gostemos, esperemos ou concordemos. Vida é duelo, vida é embate, vida é caos. Quisera alguns que fôssemos sempre equilibrados, que a vida fosse harmônica e as relações humanas equânimes, mas nada disso é verdade. O ser humano é caótico, contraditório, complexo e impera jogos de poder em nossas relações, porque a maior parte do tempo somos mais mesquinhos e restritos do que sonhamos. Competimos entre colegas de classe por abordagens teóricas, entre irmãos e primos por sucesso, entre colegas de trabalho por espaço, entre amigos por interesses comuns. E isso nos faz menos?! Não, isso nos faz humanos... Esse é o jogo e viver é se implicar nele.

        Particularmente não sou tão fã do capitalismo, embora não temos algo melhor do que isso. Ele se encaixou perfeitamente e se alimenta de uma falta estrutural que possuímos por sermos neuróticos por natureza, essencialmente faltantes, temos um buraco que caberia o mundo inteiro. Sempre insatisfeitos, estamos em busca do próximo bem, do próximo amor, disso que certamente nos preencherá. E nunca vai... Isso parece pessimista, mas é exatamente isso o que nos movimenta. Sem falta não há desejo, sem desejo não há movimento, ausência de movimento é a morte. Então qual seria a saída desse jogo perigoso?! Consciência. Disposição para pagar o preço que custa jogar esse jogo. Não interessa se quer viver num castelo numa vida em busca de títulos e bens materiais, tampouco se vai viver de forma espiritualizada no alto de uma montanha ignorando o corpo e toda materialidade da existência, apenas saiba o quanto está consciente e preparado para os riscos e as consequências das suas escolhas, porque no fim é só isso o que importa.

       Num extremo, quando estiver num casamento falido, cercado de bens materiais e se sentindo vazio porque isso tudo não te preencheu, você suportará isso se pelo menos teve consciência de suas decisões e aceitou pagar esse preço. Assim como num outro extremo se terminar sozinho nas ruas sem eira nem beira, sentindo-se livre e espiritualizado e passando fome, também dará conta se teve consciência de suas escolhas e aceitou pagar esse preço. Você pode viver seguindo apenas sua vontade, afirmando seu desejo, batendo o falo na mesa. Ou ceder seu espaço ao outro, negando seu desejo, omitindo seu falo, dará no mesmo. Quem avança sozinho desconsiderando o outro paga um preço e quem recua deixando de avançar desconsiderando seu desejo pagará outro. O primeiro passa por cima dos outros, o segundo de si mesmo. Um caminho saudável me parece o do meio, mas ele envolve negociação, envolve embate, passará pelo jogo do poder, que é a política. Não existe certo, nem errado, e cada um paga o preço que pode, ou acha que deve. Mas uma coisa é certa, a pior coisa disso tudo é não ter consciência de tudo isso.


A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.” Sigmund Freud

 

domingo, 24 de julho de 2022

QUANDO ENXERGAMOS PARCIALMENTE

Quem come do fruto do conhecimento, é sempre expulso de algum paraíso”. Melanie Klein

     O texto que apresentarei hoje acredito que ficará um pouco longo, então já peço um pouco de paciência para lê-lo até o fim porque ele será bastante interessante. Como sempre procurarei ser transparente e sincero ao relatar alguns episódios da minha vida e características minhas, até porque esse é um blog pessoal e um dos motivos ao qual ele se propõem é justamente dividir experiências e aprendizados que em algum momento adquiri, na pretensão de que isso desperte em vocês reflexões ou motivos para refletirem a própria vida. Não sou mestre nem exemplo de nada para ninguém, nem costumo ir por essa linha, só gostaria que acreditassem sinceramente quando escrevo isto: pessoas mais inteligentes buscam aprender com os erros dos outros. Não que vocês não possam errar, fiquem à vontade para isso, o erro é até bem democrático nesse ponto (rs), mas procurem pensar o próprio comportamento, isso ajuda muito. Espero também não ter aqui uma escrita técnica ou teórica demais, o objetivo não é esse, mas talvez em alguns momentos precisarei referir aqui em que me baseio para escrever o que penso. Mas procurarei fazê-lo didaticamente.

      Não sei se vocês já repararam que temos uma tendência a idealizar a vida e as nossas relações e no quanto isso é nefasto não só aos nossos relacionamentos mas principalmente para a nossa saúde mental de um modo geral, porque inevitavelmente ao agir assim parece que ficamos cindidos, distantes da realidade, quase paranoicos mesmo. Esta será a tese central para este texto: não nos relacionamos com a vida, mas com a ideia que temos da vida e nas nossas relações sofremos – além do necessário! – porque também não nos relacionamos com as pessoas com quem convivemos, mas com a ideia que fazemos dessas pessoas; e quanto mais próximos de uma ideia, mais distantes ficamos de enxergar a totalidade dos objetos. Quem conhece um pouco da obra de Melanie Klein já sentiu aqui o cheiro do seu pensamento e sim, são as ideias dessa psicanalista das relações objetais que tomarei aqui de referencial teórico.

      Em dado momento da minha vida reparei que na minha história pessoal sempre me decepcionava com as pessoas; de familiares, amigos, a colegas de trabalho; até com determinadas coisas, como trabalhos, cursos etc. Havia na minha vida então muito forte uma espécie de padrão que havia notado: me aproximava de algo, ou de alguém, construía uma relação idealizada, até em algum momento me frustrar com isso, me sentindo perseguido, traído ou decepcionado. Então quando isso acontecia rompia o contato, responsabilizava os outros e seguia com a minha vida, mas sempre nesse enredo de decepção em cima de decepção. Só que a medida que passei a estudar sobre psicologia, psicanálise e principalmente começar a minha própria análise fui ganhando mais consciência desse mecanismo. Fui me dando conta desse modus operandi nas minhas relações, percebendo que ele seguia o mesmo script: Aproximação-Idealização-Frustração. Decidi prestar mais atenção nisso, passei a olhar de perto essas dinâmicas relacionais e comecei a me indagar. Será que todas as vezes que me sinto frustrado com algo é de fato responsabilidade da outra parte isso acontecer? Vou responsabilizar sempre aquilo que está fora de mim, em todas as vezes que sentir algo que só esteve em meu controle sentir?!

      Concordo aqui que não somos responsáveis por aquilo que os outros nos fazem, mas decidir qual resposta emocional daremos a isso é responsabilidade nossa. Não controlamos nossas emoções, mas podemos escolher – conscientemente ou não! – alimentar esse processo natural. Quero dizer que quando uma pessoa nos faz algo que nos faz sentir raiva por exemplo, não temos como evitar o surgimento da raiva porque as emoções brotam naturalmente; agora o que fazemos com essa raiva, se alimentamos a emoção ou se prestamos atenção aos sentimentos para fornecer uma resposta inteligente é conosco, não podemos colocar isso na conta do outro. Aquilo que fazemos com o que sentimos é de responsabilidade nossa e isso tem um nome: Inteligência Emocional.

      Então, o primeiro ponto nesse padrão notado no meu comportamento que busquei compreender foi a inteligência emocional. Entender que não tenho o controle de não me decepcionar, aceitando que frustrações fazem parte das nossas relações, mas assumindo que o meu comportamento a partir de qualquer frustração é minha responsabilidade. Pôr isso na conta do outro não só é improdutivo, como denota imaturidade. E não foi nada fácil ao meu ego admitir isso... Queremos estar sempre certos. No entanto, pensa bem, quem está cem por cento certo, em cem por cento das situações?! Quando nos desentendemos com uma única pessoa, de fato a responsabilidade pode ser desta pessoa; agora quando sempre nos desentendemos, e com várias pessoas, serão elas sempre as responsáveis por isso?!

      Aqui entrou o segundo ponto observado nesse meu padrão de comportamento que me levou a uma reflexão ainda mais profunda sobre mim mesmo que é o seguinte: o porquê da frustração? Será que de fato são as pessoas e situações que nos decepcionam ou são as idealizações e expectativas que temos que fazem isso conosco?! Novamente vamos colocar na conta do outro idealizações e expectativas que são nossas e que estavam somente sob o nosso controle cultivar?! Isso não parece justo, nem maduro, nem lógico. E novamente constatar e admitir isso foi um golpe forte no ego... Como disse, queremos estar sempre certos. Aos poucos fui percebendo como as vezes agimos – até inconscientemente! – sem maturidade, de forma mesmo infantil. Segundo a psicanalista Melanie Klein, essa dinâmica dicotômica que temos em nossas relações se origina nos primeiros estágios de vida e ela deu o nome de posição esquizoparanoide. “Esquizo” de dividido e “paranoide” de se colocar numa posição persecutória (de perseguido). Ela então traz em sua obra uma impressão que o bebê sente de persecutoriedade pelo seio da mãe, o objeto com o qual ele tem o primeiro contato.

      Como disse, não pretendo professorar teorias aqui, o objetivo não é esse, contudo acredito que se faz necessário trazer, de forma breve, como se origina esse fenômeno na nossa personalidade, segundo M. Klein. De acordo com a psicanalista, o primeiro contato que o bebê tem é parcial, ou seja, é com o seio da mãe, não com a mãe inteira. Isso significa que o bebê se relaciona com o seio que ora o alimenta, saciando-o completamente (“seio bom”), ora o frustra quando não dá o que ele quer (“seio mau”). Os medos persecutórios da criança são impulsos oral e anal-sádicos projetados (“identificação projetiva”) ao seio da mãe. Daí o nome dado a essa posição de esquizoparanoide. O que isso significa? Como a criança não dá conta de perceber a sua própria destrutividade – que já existe! – ela então projeta seus impulsos agressivos ao seio da mãe, passando assim a acreditar que este a persegue e a quer destruir. Esse é um processo natural que toda criança passa até que consiga integrar o ego (o eu) e o objeto externo (a mãe).

      Quando no avanço do desenvolvimento da criança, ela entende que o mesmo seio que a frustra também a gratifica e ela se torna consciente dos próprios impulsivos agressivos em relação à mãe, ela agora percebe a inteireza do objeto externo (mãe/seio) e pode introjetar “seio bom e seio mau”, evoluindo a idealização do objeto. A idealização é o mecanismo que o bebê desenvolve em defesa contra a percepção que ele tem de sua própria agressão à mãe; processo que vem acompanhado de sentimentos de culpa e medo (ansiedade depressiva) de vir a perder o objeto amado. Melanie Klein denominou esse período do desenvolvimento humano de posição depressiva. O que isso significa? Quando o bebê já se dá conta que a mesma mãe que o alimenta também o frustra e compreende que ele dirige afetos distintos (amor e ódio) ao mesmo objeto, isso proporciona à criança passar de uma posição "fragmentada" para uma posição "integrada", desenvolvendo a capacidade de amar e de reparar os objetos externos.

Agora, qual a relação dessa teoria psicanalítica com o texto de hoje?

     Total. Segundo a psicanalista Melanie Klein, ela denominou esses estados do nosso comportamento em sua obra de posições justamente porque não se trataria de fases, pois fase dá a entender algo que acontece em dado período que tende a passar; quando nosso psiquismo possui um funcionamento dinâmico, assim essas posições continuam presentes em diversos momentos pelo resto da nossa vida! Ora ou outra transitamos de uma posição esquizoparanoide para uma posição depressiva, embora predomine esta última quanto melhor foi um desenvolvimento saudável, quando criança nesse período.

      Estamos na posição esquizoparanoide quando negamos a própria raiva e projetamos [nos outros] aspectos que consideramos ruins e destrutivos – mas que são nossos; quando somos incapazes de enxergar e validar o outro; ou quando idealizamos o outro, porque nesse caso também não estamos enxergando-o – estamos enxergando somente aquilo que queremos ver; quando somos punitivos; quando temos dificuldade de suportar a própria angústia; quando não aceitamos ser excluídos ou reagimos movidos por inveja e ciúmes – por vezes inconscientes; quando adotamos uma postura de que podemos tudo – movidos por um sentimento de onipotência. Conseguem perceber o quanto é fácil estarmos nessa posição esquizoparanoide? Como dizem: quem nunca?! Quando estamos nessa posição adotamos um comportamento infantil e uma percepção dicotômica, polarizada e reducionista sobre as coisas. Bem ou mal; bom ou ruim; certo ou errado; verdade ou mentira. Nunca tem meio termo. É 8 ou 80. Preto ou branco, não existe o cinza. Ou melhor: cinzas! – já que entre o preto e o branco há uma gama de tonalidades. Quando escolhemos – inconscientemente até – estar nessa posição é difícil conviver conosco, porque ora adotamos uma postura de vítima que é perseguida pelos outros (lembra da persecutoriedade?) e introjetamos só o “seio bom” e o “seio mau” fica para o objeto externo: somos perfeitos, o outro imperfeito; ora fazemos justamente o contrário, introjetamos só o "seio mau" e o "seio bom" fica para o objeto externo: somos imperfeitos, o outro idealizado.

      Durante muito tempo da minha vida escolhi – inconscientemente – viver nessa posição, mesmo recebendo ora ou outra alguns feedbacks externos. “Você se acha perfeito”. “É muito moralista”. “Gosta de dar lição de moral”. “Da sua boca só críticas”. “E cadê o elogio?”. Isso quando o feedback não era velado e eu podia ler nas entrelinhas. Por mais que os feedbacks externos me ajudassem a ganhar maior consciência desse padrão de comportamento, sabe o que mais me ajudou a mudar? Quando comecei a desconstruir [processo iniciado em análise] a imagem que criei, a duras penas, de alguém que tinha que ser perfeito; encarei o medo que sentia de não o ser e a raiva – inconsciente – que tinha, mas negava, por ter que manter essa imagem de perfeição. Melanie Klein defende em sua psicanálise que não adianta trabalhar um sintoma sem trabalhar ansiedades e medos que levaram ao seu surgimento. Precisamos entrar em contato com os nossos afetos mais destrutivos, como a agressividade, o ódio, a raiva, o ciúme, a inveja etc. Todas as pessoas que colocamos num pedestal e idealizamos precisamos estar conscientes de suas falhas, de suas fraquezas, de seus defeitos isso é respeito conosco. E aquelas pessoas que odiamos e apenas criticamos precisamos estar conscientes também de suas virtudes, de suas potencialidades e validarmos isso isso é respeito com o outro. Somos todos objetos inteiros, não partes! Assim como tudo na vida; os nossos problemas e dificuldades também contém lições e nos permitem superações. Nada é uma coisa só e a vida se torna mais rica e complexa quando aprendemos a perceber e a validar todas as suas partes como já dizia os princípios da Psicologia da Gestalt: "O todo é maior do que a soma das partes".

      Alcançamos então a posição depressiva* [*apesar do nome ter uma conotação negativa, na obra de Klein esse significado é diferente] quando superamos uma postura maniqueísta – de enquadrar tudo em polaridades de modo absoluto, sem restrições – e conseguimos enxergar e validar o outro. Estamos nessa posição quando aceitamos a dependência desse outro em nossa vida; quando aceitamos ser excluídos, perder e não sermos perfeitos; quando somos menos punitivos; quando nos sentimos potentes – ao invés de onipotentes; quando adquirimos a capacidade de fazer lutos – reais e simbólicos (isso é muito importante na vida!); quando aceitamos o ódio e a agressividade, assim como toda a gama de afetos existentes dentro de nós – alcançando assim condições de utilização saudável desses afetos (mecanismo de sublimação). Conseguem perceber o quanto é mais difícil estarmos nessa posição depressiva? Quando estamos nessa posição adotamos um comportamento maduro e uma percepção complexa e integrada dos objetos externos. Hoje me percebo mais nessa posição – mas isso faz parte de um longo processo. E um processo que recomendo a você ganhar também mais consciência.

"Quando, através da análise, chegamos aos conflitos mais profundos de onde surgem o ódio e a ansiedade, também encontramos lá o amor." Melanie Klein