"Um homem pode sobreviver a todos os seus amigos e parentes, enterrar aqueles que ele mais ama e levar uma existência solitária como um estrangeiro numa época estranha; mas não pode sobreviver a si mesmo e aos fatores internos de sua vida, e não pode enterrá-los, pois eles são seu verdadeiro eu e, assim, são inalienáveis." C. G. JUNG.
A vida é feita de movimentos cíclicos, de processos circulares, nem sempre lineares, mas de avançar e recuar, de expandir e contrair, de gestar e de parir, parafraseando o ilustre escritor colombiano Gabriel García Márquez: os seres humanos não nascem de suas mães, a vida os obriga a dar à luz a si mesmo várias vezes. E talvez seja isso uma das grandes dificuldades que temos de interpretar aquilo que nos acontece e de insistir num desenvolvimento pessoal, pois esse processo escapa a uma compreensão mais imediata. Farei um esforço descomunal para não “escrever difícil” esse texto e expressá-lo objetivamente, mas confesso que muito do que encontrará aqui está baseado num pensamento junguiano. Embora a meu ver o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung tenha sido um gênio assim como foi Sigmund Freud, ele é o pai de uma das linhas da psicologia mais mal compreendida, talvez a mais injustiçada, a Psicologia Analítica.
A título de curiosidade, não é comum no curso de psicologia os estudantes conhecerem essa linha teórica; isso se deve em parte porque são diversas teorias psicológicas de fato, então por uma questão de tempo se foca nas “principais”, mas em parte também porque existe de um modo geral um “ranço” com a psicologia analítica, considerada por vezes esotérica, mística ou “menos científica” do que as outras abordagens, o que não é uma verdade. Assim como Freud, pai da psicanálise, sofreu sendo julgado como um “pervertido” na sua época por falar sobre um desenvolvimento psicossexual infantil, o Jung, pai da psicologia analítica, também sofreu na época ao ser julgado como “místico” por falar sobre alquimia, por exemplo. Mas assim como é injusto tudo isso o que se diz sobre Freud, pois a psicanálise não tem esse caráter genital, é injusto também isso o que se diz sobre o Jung, pois a psicologia analítica apenas emprestou a base de uma simbologia que foi extraída de textos alquímicos antigos.
Gosto da psicologia analítica justamente porque ela trabalha muito bem com simbologia. Alegoria. Metáfora. Jung bebeu de muitas fontes para desenvolver esse seu pensamento psicológico, fosse da filosofia, da literatura, como Pitágoras, Platão, Kant, Goethe, Schopenhauer, Hartmann, Nietzsche, bebeu dos gnósticos, mas o que mais me chama a atenção vem do filósofo pré-socrático, o Heráclito, pois o pensamento junguiano trabalha com a noção de autorregulação dos contrários, de forças antagônicas que se complementam, síntese dos opostos, a interação entre consciência e inconsciência sempre em busca de compensação, de equilíbrio, conteúdos que se chocam e dessa amálgama criam novos elementos.
Quantas pessoas passam pelo nosso caminho, ficam um determinado tempo em nossas vidas, deixam-nos uma marca e nos transformam para sempre de alguma maneira?
Assim é a vida, ela também é feita dessas fusões. Nem melhor nem pior (isso é julgamento de valor), mas certamente saímos transformados. E imprimimos também uma marca nessas pessoas que as transformaram de algum modo para sempre. Ninguém sai ileso: nem nós, nem o outro, nem a Vida! Embora isso soa um pouco metafísico, leia de maneira metafórica. Simbólica. Alegórica. Foi com esse intuito que Carl G. Jung escreveu Psicologia e Alquimia, após ter contato com textos alquímicos antigos e ter se aprofundado durante anos nesse conhecimento circunscrito até então a ordens secretas, como a Maçonaria, os Rosacruzes. Jung percebeu que os textos possuíam uma linguagem simbólica, já que o artífice (alquimista) ao escrever projetava os seus conteúdos psicológicos no material manipulado (o mercúrio - considerado a substância transformadora; o enxofre - a força impulsionadora da consciência; o chumbo - as sombras e os aspectos mais baixos etc.), então Jung tomou emprestado a simbologia desse opus alquímico, fazendo um paralelo a sua psicologia analítica que busca o desenvolvimento da psique, justamente através de criação e desenvolvimento de consciência.
Escrevi no primeiro parágrafo que a vida é composta de movimentos circulares que não compreendemos e assim como o oroboros (a serpente que morde a própria calda), todo processo vivido é cíclico e retorna a si mesmo iniciando um novo movimento. Um dos conceitos mais bonitos a meu ver na filosofia é o devir de Heráclito. Um continuum movimento que transforma a si mesmo. A perfeita representação gráfica disso é o círculo, a elipse. Segundo Jung, a mandala, a mandorla. Quero dizer que muitas vezes na vida retornaremos aparentemente a um mesmo ponto, mas jamais será com o mesmo grau de consciência inicial. O Jung teve a genialidade de constatar e postular que o desenvolvimento da consciência humana é circular, não-linear, cartesiano. O desenvolvimento da consciência mais se assemelha à subida em uma grande escada em caracol; em qualquer ponto dessa escada, ao olhar para baixo sempre se terá a mesma perspectiva, contudo será sempre distinta a altura em que se está.
Existe uma fábula que é muito propícia como alegoria para esse texto. Vou resumir. Havia três leões numa floresta e os animais precisavam saber qual seria o rei da selva, então foi dado aos três a mesma missão: escalar a montanha mais alta. Os três falharam. Diante do impasse, os animais ficaram então sem saber a quem eleger, porém a águia que os assistiu subir, interviu e disse que deveria ser o terceiro leão. Todos questionaram o motivo e ela respondeu o seguinte: “O primeiro e o segundo não conseguiram escalar e ao descer os ouvi esbravejando à montanha que ela havia vencido. O terceiro leão também não conseguiu escalar, porém sua postura me surpreendeu, quando o ouvi dizer, 'Montanha, você me venceu hoje, mas você já atingiu seu nível máximo, mas eu ainda estou crescendo'. Essa é a atitude de um verdadeiro rei, concluiu a águia.” Na simbologia, o leão é análogo ao Sol e ao ego, que por sua vez é análogo à consciência humana, o que significa que ela está sempre em expansão. Lembre-se disto: muitas vezes uma situação ou um problema na sua vida já atingiu o clímax, o ponto máximo, mas você não, você ainda está crescendo. Essa é a postura daquele que busca pela Individuação.
O Opus Magnum (A Grande Obra) do alquimista passava pelas operações calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio/putrefatio, separatio, coniunctio, partindo da prima-matéria para se chegar ao ouro não vulgar, o ouro filosófico. A Pedra Filosofal. Tudo alegoria... Cada uma dessas operações alquímicas – que não são necessariamente nessa ordem – possuem uma correspondência psicológica. Na mortificatio/putrefatio por exemplo, fala-se de morte e decomposição, é a fase Melanosis, também conhecida com a Nigredo, que acontece em qualquer momento da vida – várias vezes inclusive - ao longo do nosso desenvolvimento da consciência. É a descida ao inferno. A noite escura da alma. É o choque que a consciência recebe no encontro com os conteúdos do inconsciente por exemplo e nesse momento o nosso ego (enquanto representante da consciência) sempre sai fragilizado, pois é quando nos percebemos falíveis, frágeis, imperfeitos e isso sinaliza para algo interior que precisa “morrer”. Uma idealização de si mesmo, uma fantasia, uma relação; é sempre um processo de luto, mas que concluirá abrindo para a um novo começo, para uma nova possibilidade. Para Jung, as quatro fases alquímicas tem relação com a psique: Melanosis (Nigredo), Leukosis (Albedo), Xanthosis (Citredo) e Iosis (Rubedo).
Jung encontrou na alquimia a simbologia e o fundamento histórico da sua teoria psicológica, visando representar um processo de desenvolvimento de consciência que todo ser humano passa. Tenha em mente então que todas as nossas relações (seja familiar, afetiva, profissional, pessoal), todas as circunstâncias da vida (boas, ruins), todos os acontecimentos, sentimentos e afetos que experienciamos propiciam a nossa transformação. Viver é alquímico! É um processo às vezes difícil, às vezes doloroso, porque ganhar consciência nunca é fácil, como disse anteriormente nosso ego sempre sairá comprometido de alguma forma. No entanto, não existe obra mais grandiosa do que àquela a qual submetemos a nós mesmos, numa perspectiva de lapidação do caráter, na criação e no desenvolvimento de uma consciência que se harmoniza com os nossos aspectos sombrios e inconscientes, na capacidade do indivíduo de tornar-se a si mesmo e sair uma pessoa melhor do que aquela que um dia chegou. Segundo a psicologia analítica, esse é o Opus Magnum (A Grande Obra) de um ser humano, a qual ele se empenhará do início da vida até o dia de sua morte, sem contudo conseguir concluí-la. Mas a grande missão não está no destino, estará sempre na jornada. Então continue...
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LENDA HINDU: A Divindade do Ser Humano
Houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram tanto de sua divindade que Brahma, o Mestre dos Deuses, tomou a decisão de lhes retirar o poder divino: resolveu escondê-lo em um lugar onde seria absolutamente impossível reencontrá-lo. Mas o grande problema era encontrar um esconderijo. Brahma convocou, então, um conselho dos deuses menores para resolver o problema:
“Enterremos a divindade do homem na terra”, foi a primeira ideia dos deuses.
“Não, isso não basta, pois o homem vai cavar e encontrá-la”, respondeu Brahma.
Então os deuses retrucaram:
“Então, joguemos a divindade no fundo dos oceanos”.
Mas Brahma não aceitou a proposta, pois achou que o homem, um dia iria explorar as profundezas dos mares e recuperaria.
Então os deuses menores concluíram:
“Não sabemos onde escondê-la, pois não existe na terra ou no mar lugar que o homem não possa alcançar um dia”.
Então Brahma, sem saber mais o que fazer, recorreu à sabedoria do Grande Deus Mahadeva, o Senhor Shiva.
“Eis o que vamos fazer com a divindade do homem, falou Mahadeva: vamos escondê-la nas profundezas dele mesmo, pois é o único lugar onde ele jamais pensará em procurá-la. O único caminho que o tornará capaz de reencontrar este poder, será através de Jñana (Conhecimento). Mas não será tão fácil, ele terá que driblar o poder de Maya (Ilusão) e de Anava (Egoísmo), e para isso, terá que reaprender a controlar a mente e os sentidos, observando a Lei Divina do Karma (Causa e Efeito).
Então Brahma ordenou que fossem criados os primeiros ashrams e as primeiras escolas de yoga e meditação. Mas mesmo assim, conclui a lenda, o homem continua dando voltas na terra, voando, explorando, escalando, mergulhando e cavando, em busca de algo que se encontra dentro dele mesmo.
(Autor Desconhecido)