domingo, 27 de dezembro de 2020

INTUIÇÃO: UMA ARMA CONTRA NARCISISTAS E PSICOPATAS?


     A maioria das pessoas se utiliza predominantemente dos cinco sentidos principais para avaliar a realidade e tomar as suas decisões, e eles são: visão, audição, olfato, paladar e tato. E a maioria das pessoas segue vivendo praticamente ignorando uma outra percepção, igualmente importante – às vezes eu consideraria até mais importante – que é a Intuição. Nos relacionamentos afetivos, por exemplo, quantos não são os relatos de pessoas que viveram com parceiros abusivos, às vezes psicopatas ou narcisistas, só que desde o começo a vítima tinha uma percepção estranha; ela tinha uma sensação que embora não soubesse explicar bem, sentia que havia algo que não se encaixava nessa relação, havia especificamente algo de errado com a pessoa com quem ela convivia. O fato é que a vítima ignora essa percepção. E essa percepção ignorada é a sua intuição.

Mas o que é a intuição? Por que ela é tão importante? E como podemos desenvolvê-la?

     Existem muitas formas de explicar o que é a intuição, tentarei ser o mais didático possível. Primeiramente, a intuição não tem nada a ver com misticismo. Segundo Carl Gustav Jung, a intuição é uma função psíquica que está intimamente atrelada a processos inconscientes. Quando você tem de repente uma percepção, uma resposta afirmativa ou negativa à determinada circunstância e você não sabe explicar a origem e o porquê disso, provavelmente essa sinalização veio do seu inconsciente à consciência e você sente que isso faz sentido porque na verdade tem sentido! Esse conteúdo estava armazenado no seu inconsciente, não sendo reconhecível até esse momento.

     Para explicar de uma outra forma. É comum, por exemplo, os pacientes numa análise relatarem ao analista o seguinte: “Agora eu me lembro disso! É estranho, mas essa lembrança parece que sempre esteve aqui, eu só não tinha pensado sobre isso até esse momento.” Óbvio que nunca tinha pensado, pois esse conteúdo estava recalcado no seu inconsciente e durante o processo analítico ele veio à tona num campo de consciência, então a pessoa se recordou. Podemos se utilizar desse exemplo para explicar o que é a intuição: uma informação do inconsciente que em dado momento vem à consciência.

     No caso de relacionamentos abusivos, por exemplo, é muito comum o abusador se apresentar, pelo menos no início da relação, como “o par perfeito”. Ele vai falar o que você gostaria de ouvir. Ela vai te tocar e beijar de uma forma que gostaria que alguém fizesse. Ele terá um estilo de se vestir, usará um perfume e terá gostos musicais, artísticos, alimentares, que você gosta – porque ele já sabe de tudo isso. O abusador é uma espécie de predador social, ele age como um camaleão se moldando a você, está usando a sua função sensorial para isso. Os seus principais sentidos estão fortemente excitados e se encaixando perfeitamente a ele, porque é assim que ele fisga as suas vítimas.

     Mas vamos supor que numa noite vocês estão jantando, vocês já estão saindo há algumas semanas, então num determinado momento você pergunta algo sobre a vida dele e quando ele responde imediatamente dispara algo dentro de você: “Isso é mentira!”. O que você faz nesse momento? Eu vou te responder. Mentalmente você fala para si mesma o seguinte: “Por que ele estaria mentindo? Eu mal o conheço e até agora ele nunca mentiu para mim, por qual razão vou duvidar dele? Aliás, eu estou curtindo tanto, ele e eu combinamos perfeitamente...” Ou seja, você ignora a sua intuição e toca o barco adiante, até a próxima vez quando essa dinâmica certamente se repetirá e você novamente confiará cegamente nos seus sentidos sensoriais, ignorando por completo a sua intuição.

     Se você tivesse prestado mais atenção a sua intuição, você saberia que ela está ligada ao seu inconsciente que detém 95% pelo menos da sua mente. Assim, muito provavelmente conversas que você já teve ou que ouviu de outras pessoas, filmes, novelas, livros que você teve acesso sobre relacionamentos abusivos, transtorno de personalidade antissocial, transtorno de personalidade narcisista, todo esse conteúdo está armazenado no seu inconsciente sem poder ser acessado facilmente, porém naquela noite, no momento em que o abusador respondeu a sua pergunta, talvez o que ele falou, ou a forma como ele respondeu, ou até a expressão facial e postural que ele teve geraram um gatilho em você que ativou um conteúdo inconsciente seu. E a resposta foi automática, específica e clara: “Isso é mentira!”. Conscientemente você não sabe como você sabe, mas inconscientemente você sabia que ele estava mentindo.

     Precisamos nos lembrar que, segundo Sigmund Freud, nossa mente é dividida entre consciente, pré-consciente e inconsciente. Sendo que este último, segundo os estudos mais recentes de neurociência, poderia corresponder a 95% pelo menos do nosso psiquismo. Sabendo que a intuição está atrelada ao inconsciente, é inegável que essa função psíquica seja fonte de substancial conteúdo de conhecimentos e experiências anteriores armazenados (segundo Jung, coletivamente até). O fato é que isso não estaria armazenado à toa. A intuição tem natureza instintiva e faz parte de um processamento do tipo 1 ou sistema 1 (que envolve estruturas cerebrais como às amígdalas, entre outras). E ao contrário da nossa mente consciente que capta conforme a atenção é dirigida ou direcionada, o inconsciente tem registrado tudo.

     Vamos supor que você entre num museu. As obras que você dirigiu a sua atenção, que você fez algumas reflexões e raciocinou sobre elas e que você poderia dividir posteriormente esse conhecimento com outra pessoa se fosse preciso, você utilizou o seu sistema 2 ou processamento do tipo 2 (que envolve estruturas cerebrais como o córtex pré-frontal, entre outras). Mas isso não significa que você não recebeu nem arquivou também vários outros estímulos sensoriais, auditivos, olfativos, táteis etc., mesmo sem prestar atenção consciente desde o momento que adentrou o prédio.

     Não há um julgamento de valor entre qual seja melhor ou pior: a função intuitiva ou a função sensorial; o sistema 1 (mais automático) ou o sistema 2 (mais reflexivo). Nós utilizamos ambas as funções e ambos os sistemas. A questão é prestar mais atenção a nossa intuição quando ela vem e duvidar um pouco dos nossos sentidos. As pessoas que são muito sensoriais costumam dizer que “fatos falam por si”; já aquelas que tendem a ser mais intuitivas alegam que “fatos sugerem análise”. As primeiras se conformam com a realidade conforme a registram pelos seus sentidos e elas se fixam predominantemente no que tangível. As pessoas mais intuitivas já olham para a realidade, mas não confiam cegamente nos próprios sentidos, porque fazem abstrações, análises e interpretações usando também a intuição para aquilo que captam da realidade.

     Se por um lado, desconsiderarmos a função sensorial, nós não nos relacionaremos com a vida e sim com uma abstração dela, beirando processos esquivos e paranoicos. Por outro lado, se desconsiderarmos a função intuitiva, nós acreditaremos que a realidade que captamos é de fato a realidade, quando não é bem verdade. É a clássica percepção “figura-fundo” da Psicologia da Gestalt. Todas as pessoas veem a mesma coisa? Podemos afirmar que a nossa realidade é compartilhada? O fato é que, sim, os nossos sentidos podem nos trair, assim como a nossa intuição também pode nos equivocar, então o mais sensato é permanecer conectado com a realidade a partir dos nossos estímulos sensoriais, mas sem confiar cegamente neles e sem negligenciar aquilo que trouxer a nossa intuição.

     Aprenda a não confiar cegamente no que recebe sensorialmente de qualquer situação ou pessoa. Mas sem paranoia também. Procure apenas se indagar de vez em quando o seguinte. Será que essa pessoa é exatamente assim como ela está se apresentando? Será que tudo o que ela diz é verdade? Embora todos os meus sentidos respondem que sim, tenho alguma intuição diferente sobre isso? Confie nas situações da vida e nas pessoas com quem você se relaciona, mas ande sempre com a sua mente aberta também. Preste atenção aos sinais que você está deixando passar – ou aqueles sinais que não está querendo ver. Preste atenção ao que não está sendo mostrado e ao que não está sendo dito. Não ignore nenhuma percepção sua. O que a sua função sensorial não captar, mais cedo ou mais tarde a sua função intuitiva te alertará de algum modo. Confie em si mesmo.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Psicanálise não cura

Narciso, d'après Caravaggio. De Vik Muniz.

 

Algumas transformações internas são disparadas por atualizações pessoais necessárias que fazemos de tempos em tempos, algumas de forma involuntária, quando a partir de nossos cacos, de pedaços quebrados e restos de passado, nós podemos esculpir criações que servirão para iluminar novos caminhos.


     De tempos em tempos sentimos que algo em nós está diferente e algumas vezes não legal. Quando é algo físico percebemos com mais facilidade. Se engordarmos, crescemos ou emagrecemos demais, nós adequamos o nosso guarda roupa, por exemplo. Se já não compactuamos dos mesmos valores de um determinado grupo, seja religioso, social, de trabalho, de amizades ou até mesmo familiar, nós damos uma peneirada; filtramos um pouco aqui, vamos selecionando ali e assim naturalmente vamos nos distanciando e aderindo a novos grupos mais similares ao nosso jeito de pensar e viver. Até aqui tudo bem. Não digo que seja fácil fazer isso, mas é bem menos trabalhoso identificar essa necessidade de uma adequação que resulte em mudanças externas. E mudanças possíveis ainda. O problema maior é quando somos “convidados” a criar transformações internas. Aqui complica um pouco. É tarefa de análise.

     É quando nos deparamos com falas e perguntas como as seguintes: “Por que eu amo assim?”; “Por que eu me atraio por esse tipo de coisa?”; “Por que eu sempre faço isso?”; “Por que vira e mexe me pego nesse tipo de situação?”; “Por que não me sinto bem comigo mesmo?”; “Por que eu sou assim, se eu não gosto de ser assim?”; “Por que tenho a impressão de que a minha vida é uma eterna reprise, como se estivesse num looping onde nunca saio do lugar?”. “Eu não quero e não aguento mais isso, eu preciso mudar”. Essas falas são perfeitas para iniciar um processo analítico. Só que aqui entra o x da questão e a resposta é clara: você nunca vai mudar, porque não tem como mudar assim.

     Calma. Antes de você levantar todas as pedras para atirar em mim, me deixe explicar onde quero chegar e a que me refiro. A mudança que a maioria de nós busca quando se depara com perguntas dessa natureza, que vão literalmente na raiz da nossa criação, é uma mudança no sentido de deixar de ser o que se é. Grava isso. Buscamos nos tornar outra coisa em essência. Mas isso é impossível, porque a estrutura psíquica é o que é e não dá para levar tudo abaixo e provocar uma mudança a partir do zero absoluto. Teríamos que morrer e nascer de novo para isso acontecer. Eu sei que é horrível ouvir isso, principalmente para quem sofre, mas o convite que proponho aqui hoje a você é uma reflexão pessoal, porque o objetivo da psicanálise é justamente este, fazer você ser capaz de se sentir bem com a sua própria estrutura. A psicanálise não muda nada em essência, porque já está dado. A psicanálise também não promove cura. Mas então o que a psicanálise faz?

     Uma análise tem a pretensão de fazer você olhar para si mesmo; enxergar a sua questão; falar, pensar e refletir sobre isso, a tal ponto que você encontre meios de coexistir de maneira pacífica com a sua questão, elaborando também novas atualizações estruturais a partir da sua questão em si. Mesmo os típicos neuróticos histéricos, por exemplo, aqueles que convergem suas questões no corpo, o que chamamos hoje de somatização, a psicanálise só poderia remir os sintomas. Isso, por si só, seria uma cura? Essa pessoa mudou a sua estrutura psíquica neurótica histérica e nunca mais ela terá processos de somatização? Os que defendem que a psicanálise cura alegam um “controle” da questão. Controle não é cura. Cura é livrar-se da doença. E justamente por isso não dizemos que diabetes, HIV, hipertensão têm cura, pois os tratamentos eficazes promovem um controle. Assim, psicanálise trata da dor, porém não a cura.

     É interessante também assistir que a neurociência já nos mostrou que, ao contrário do que imaginávamos, não nascemos com uma quantidade definida de neurônios que apenas perderemos aos poucos ao longo da vida. Em qualquer fase da nossa vida há processos de neurogênese ocorrendo e a partir de hábitos e estilos de vida persistentes podemos alterar estruturas cerebrais por causa da neuroplasticidade. A epigenética também já nos mostrou que hábitos e estilos de vida impactam diretamente na expressão ou no silenciamento de determinadas marcações genéticas. Dado isso, podemos afirmar que não somos reféns da genética em absoluto, existe algum ponto onde podemos nos trabalhar. Mas teria como hoje, pela genética, uma pessoa se tornar loura se nasceu com o cabelo castanho? Mudar a cor dos olhos talvez? A sua altura? A resposta é não. O que as pessoas fazem é tingir os cabelos, usar lentes e pôr saltos.

     Quando não estamos contentes com aquilo que somos ou o que nos tornamos, ou quando não estamos satisfeitos com as nossas respostas às circunstâncias é um bom momento para iniciar uma análise. Mas precisamos entender uma coisa básica: não dá para ter tudo aquilo que queremos. Eu sei que seria mais fácil eu vir aqui e dizer que psicanálise cura e que ela vai extinguir o sofrimento humano, mas isso é impossível, porque o sofrimento é uma condição do ser humano. É inerente. É fundante de cada indivíduo. O que a psicanálise faz, ou deveria fazer, é criar um espaço de reflexão que possibilite a atualização de formas saudáveis de trabalhar a angústia que todos possuímos. Vamos fazer uma analogia com a obra de um prédio. Imagine que você tem um prédio num determinado terreno e quer construir um novo no mesmo lugar do antigo. Psiquicamente falando, é impossível você implodir esse prédio e construir um novo a partir do chão. O que você pode, e até deve fazer se não está satisfeito, é elaborar o seu novo prédio a partir da estrutura antiga o que já não é pouco. Você pode reforçar as bases e aumentar os andares. Pinta-lo com cores novas. Abrir mais salas e alterar o layout. Mudar o entorno desse terreno. Com ideias mil, você pode literalmente criar um “novo” prédio. Só que o antigo jamais deixou de existir ali, pois ele compõe essa e cada nova atualização dessa estrutura.

     Não gostaria que interpretasse esse texto como pessimista ou provocativo, o meu objetivo não é esse. O que eu quero dizer é que não há nada de errado com o que somos. Nascemos e fomos criados de uma forma e isso é o que temos de base para viver essa experiência aqui na vida. Eu sei que algumas experiências nos machucam muito, mas algumas coisas em nós poderemos mudar e outras não. Aquelas coisas que não poderemos mudar, que tal transformarmos? E se analisássemos cada pedaço de caco quebrado, aqueles traumas passados, restos de nós mesmos que ficaram pelo caminho e que deixaram cicatrizes e a partir disso – e também com isso – nós bordássemos uma existência diferente? Pintássemos uma nova obra? Que tal criar algo novo a partir daquilo que já nos foi dado pela vida? Não pense que estou diminuindo ou desmerecendo o nosso sofrimento e sei bem que cada um sabe onde a sua ferida dói, mas precisamos entender que a vida é feita de embates e o sofrimento e a angústia fazem parte desse pacote. O que podemos fazer é nos dar uma chance. Apenas uma chance. Uma chance de encontrarmos formas diferentes de bordar os pedaços rasgados da nossa história e a partir dessa imagem atualizada continuar bordando novas formas que nos agradem mais. Isso não vai mudar aquilo que aconteceu um dia, mas isso muda a importância que damos ao passado, com a certeza de que podemos hoje criar um futuro diferente a partir disso. A tal ponto que um dia olharemos para trás com orgulho em dizer que a nossa história tinha tudo para nos limitar, mas foi justamente a partir do sofrimento que passamos que a nossa vida se expandiu com ainda mais força!

Que tal iniciar uma análise?


Feliz Natal

Apesar deste ano conturbado, que você tenha momentos de tranquilidade. Fique em paz.

domingo, 20 de dezembro de 2020

UMA CARTA PSICANALÍTICA


     Como já comentei aqui, eu sou aspirante em psicanálise e a psicanalista me pediu para fazer uma carta a mim mesmo quando criança. Achei a tarefa interessante, eu já a conhecia, mas até então nunca tinha feito. Notei alguns movimentos durante essa semana, antes de sentar e escrever a carta. Houve resistência. “Amanhã eu faço”. “Sábado eu faço”. Acabou ficando para hoje, domingo. Esse adiamento me fez refletir sobre uma resistência de olhar e dirigir a minha fala a mim mesmo. Veja que aqui no blog é comum eu falar sobre mim, mas me dirigindo ao leitor, no entanto o objetivo da carta é falar sobre mim, me dirigindo a mim mesmo. E o destinatário é uma versão muito relevante: a criança. Alguns trechos escrevi chorando, pois me recordei de coisas que imaginava ter esquecido. Estou me sentindo muito bem. Como se tivesse reafirmado pactos antigos. 

     Gostaria de dividir essa carta com vocês. E também convida-los a fazer o mesmo. Se você escrevesse uma carta a si mesmo quando criança, qual período escolheria e o que você se falaria? 

 

Pedreira, 20 de dezembro de 2020.

 

Querido, Jonas

 

     Você deve ter hoje sete anos né. Eu sou você, daqui alguns anos... Observo atentamente como você vem se desenvolvendo e me orgulho muito disso. É muito bonita essa sua vontade de mudar o mundo, você quer trazer algo que ilumine toda a humanidade. Como você é apaixonado pelo conhecimento (você sabe que herdou isso de nosso pai, não é?), você está sempre rodeado de livros, de revistas e percebo que gosta muito de conversar com as pessoas ao seu redor sobre a vida, você aprende muito com elas né. Você é muito sensível, Jonas. Possui uma sensibilidade à flor da pele! Sempre ouvindo canções durante as madrugadas nesse rádio velho. Noites em que o sono não vem. Noites em silêncio em que você se encontra consigo mesmo. Você sobe no telhado para assistir a cidade dormir; é uma vista realmente incrível aí do alto, não é mesmo? Eu sei que isso te faz sentir livre, você gosta de sentir o vento soprando seu rosto, posso entender bem essa sensação indescritível de liberdade. Você tem um coração bom, puro e tem uma vontade de sempre ser verdadeiro com você mesmo. Não perca isso.

      Sei também que você se sente sufocado, silenciado, sente que existe um lado melhor de você, uma parte imaginativa, sensível e extremamente criativa, mas que deve ser contida. Não há espaço para emoções. Não há espaço para sentimentalismo barato. Entende que deve ser forte, resiliente e resistente, para sobreviver na atual circunstância em que vive. Você reprime as suas emoções e tem levantado barreiras. Está montando um arsenal de lógica, raciocínio, onde tudo, inclusive você, deve ser movido apenas pela racionalidade. Você não quer sentir. Entende que não pode. Entende que é melhor assim. Está aprendendo a atirar primeiro. Vai machucar antes de ser machucado...

      Jonas, eu sei de seu sofrimento. Acompanho os seus pensamentos. Gostaria que confiasse em mim agora. As nossas emoções são nossas amigas. Acolha todas elas, até mesmo aquelas que você se envergonha de sentir, como a raiva, o ódio e o medo, pois essas também nos ajudam. Essas emoções também têm um propósito, acredite. A raiva que você sente pode te impulsionar a perseguir os seus sonhos. E seus sonhos são lindos, não desista deles. O ódio é apenas uma faceta do amor, traga esse sentimento e exponha isso. Fale o que você sente, aprenda a não brigar. Aprenda a usar o diálogo, mesmo nesses momentos e verá que tudo se resolve conversando. O medo que tem é de ser inadequado e imperfeito. Jonas, você não precisa ser perfeito, porque a nossa “perfeição” está justamente na soma de todas as nossas partes imperfeitas. Aceite o erro. Admita seus fracassos, eles sempre vão ocorrer, mas trarão boas lições também.

      A medida que for crescendo precisará perceber que terá maturidade, conhecimento e novas ferramentas para trabalhar esse turbilhão de emoções que existe em você. Compreenda que as suas emoções às vezes ficam rebeldes e te descontrolam porque você as sufoca demais; você as trancou numa zona escura dentro de você mesmo, mas elas só querem ver a luz também. Eu sei porque você fez isso, você precisava se defender, defender-se de nosso pai. Mas acredite em mim, quando você se tornar um homem vai agradecê-lo por tudo o que ele fez. Nosso pai é um homem intenso e frágil psíquica e emocionalmente e ele se enxerga em você. Ele não tem ódio, nem raiva de você, o que ele sente é medo, porque nosso pai percebe que o seu coração é como o dele, um coração puro demais, um coração de quem não sabe falar “não”. Ele não quer que aconteça com você tudo aquilo que um dia aconteceu com ele, por isso ele tenta te preparar. Talvez um dia pessoas se aproveitaram ou passaram a perna nele e por vir de pessoas que ele jamais esperava, isso o magoou demais. Nosso pai teme se sentir traído (a mesma raiz do seu medo hoje). Ao ver que você nasceu com o “coração” dele, ele tenta te endurecer para os golpes que um dia ele sofreu e que, na cabeça dele, certamente você sofrerá também. Ele quer, a qualquer custo, que você seja a versão melhorada dele.

      Jonas, a intenção de nosso pai é nobre. Acredite. Apenas seus métodos e a sua estratégia estão muito errados. Ele pressupõe que o melhor nessa circunstância é forjá-lo na agressividade, treina-lo para resistir à pancada, aprender a suportar a dor e assim você se tornará duro e forte. Nosso pai acredita que se você for capaz de suportar a ele, ninguém mais te derrubará! Então ele está montando uma estratégia de guerra, colocando a si próprio como o seu pior inimigo. Mas devo alerta-lo que apesar da intenção de nosso pai ser positiva, a estratégia que ele está utilizando está totalmente equivocada, porque dessa forma você não sofrerá por um inimigo externo, no campo de batalha o seu pior inimigo será você mesmo, e até que entenda isso, você travará incontáveis batalhas com as suas próprias sombras. Espero que se lembre disso.

      Gostaria apenas de pedir a você mais três coisas.

      Confie no seu treinamento, pois se tornará um dia um homem extraordinário.

      Dê ao nosso pai um voto de confiança, você o ama demais, não sinta ódio por ele, pois não é ele e sim a perversão da ideia dele que está lhe causando dor. Ofereça-lhe a compreensão, a sua compaixão e perceba que toda fera no fundo também está ferida. Se você for capaz de enxergar as feridas de nosso pai, não será capaz de sentir ódio por ele, pelo contrário, sentirá ainda mais amor.

      Sobre a nossa mãe... O que falar dela, não é. Ela trabalha demais. Eu sei que você a admira muito e você sonha em ser um dia tão forte e resistente como ela é. Nossa mãe parece uma rocha, não é mesmo? Sempre firme. Sempre em frente. Servindo de alicerce para todos. Ela nunca desanima. Você não consegue entender de onde vem tanta força interior. Mas você logo perceberá que isso é uma forma de fuga também. Nossa mãe se refugia no trabalho para não ter que lidar com os conflitos emocionais que existem dentro de casa. É a forma que ela encontrou de lidar com as circunstâncias atuais. É como se ao pôr o seu dinheiro sobre a mesa, se levantasse e se retirasse dela o seu coração. “Por que ela faz isso?” (você deve estar pensando). Sinceramente, meu amigo, até hoje eu não descobri. E para ser ainda mais sincero com você, eu não acredito que haja um motivo por trás disso. É só o jeito dela de ser. Busque respeitar a sua reserva, o seu silêncio, pois ela ama todos, a sua maneira, e se não amasse, ela não suportaria nem metade do que já passou. Ela tem os seus sacrifícios. Não guarde mágoas nem ressentimentos, porque um dia você vai descobrir que todos na vida têm os seus sacrifícios pessoais. E você será sempre uma mistura dessa união: metade de nossa mãe e metade de nosso pai. Honre isso. Seja alguém ainda melhor para si e para as outras pessoas.

     Lembre-se sempre de mim. Eu estarei sempre com você. Ao longo do tempo você me dará muitos nomes: amigo imaginário, intuição, consciência, uma voz interior... Apenas me ouça: ficará tudo bem!

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

ATÉ ONDE VOCÊ É CAPAZ DE IR

     Existe um psicólogo americano chamado Howard Gardner que escreveu o livro Múltiplas Inteligências na década de 80. Nesse livro o Gardner traz a teoria de que possuímos outras inteligências além da amplamente conhecida lógico-matemática. Segundo o autor, todos nós temos todas as inteligências em diferentes níveis uma da outra mas uma acaba se sobressaindo na personalidade, no nosso comportamento. No meu caso é a inteligência intrapessoal. Essa inteligência é descrita na capacidade do indivíduo de conhecer o seu interior; seus medos, motivações, desejos etc. Isso é verdade porque eu sempre gostei de me analisar. O blog mesmo se originou não só de uma vontade de expressão, mas principalmente de autoconhecimento, porque no início muitos textos aqui curiosamente foram uma tentativa de enxergar e até de lidar com o que se passava comigo. Nesse sentido recomendo escrever às pessoas como uma prática de sublimação. É terapêutico. Me lembro que muitas vezes, tomado por emoções e sentimentos que não sabia nomear, eu sentava para escrever chorando, quando ao ler o texto finalizado concluía: “Então é isso!” É como se o texto literalmente fosse uma fotografia do meu estágio atual. Digo que esses processos de investigação interior são para mim desde sempre como mergulhos que ao longo dos anos se tornaram mais profundos, mesmo consciente de suas limitações de alcance. E mais à frente explicarei melhor sobre isso, sobre os limites de uma prática de autoanálise.

     Na adolescência foi quando esses mergulhos passaram a ir a estágios mais profundos pela primeira vez, onde à medida que descia, numa analogia com a própria prática de mergulho, digo que via as águas escurecendo e se tornarem mais frias. O que isso significa? Psiquicamente falando, à medida que aprofundamos no autoconhecimento – e somos honestos nessa prática – vamos alcançando estágios cada vez mais distantes da consciência (analogia à distância da superfície da água e da luminosidade do sol). Ao alcançarmos esses estágios de profundidade no nosso psiquismo percebemos aqueles aspectos da personalidade que foram banidos da consciência, mas nem sempre do comportamento. Sigmund Freud trouxe o conhecimento dessa instância psíquica denominada de Inconsciente. Um espaço do nosso psiquismo que está longe da consciência mas que vem à superfície através dos chistes, dos deslocamentos, dos atos falhos de linguagem, dos nossos sonhos, dos atos “sem querer querendo”. Jung vai dizer que nesse espaço psíquico se encontram nossas sombras; aspectos do indivíduo distantes da luz, opostos à persona. O termo sombra pode dar uma conotação de “negatividade”, mas não é de todo verdade, sombra apenas quer dizer distante da luz (distante do que é apresentado ao público). Essa conotação negativa se dá porque tendemos a apresentar às pessoas apenas o que é considerado bonito, o que seria o nosso “melhor”, recalcando e reprimindo aquilo que sofreria alguma censura da sociedade ou de nós mesmos.

     No primeiro mergulho em que fui mais fundo em mim mesmo, eu soube ao voltar à superfície que jamais seria o mesmo. Vi nas profundezas da minha personalidade tudo aquilo que todos nós possuímos, mas que raramente tomamos contado ou dificilmente assumiríamos, como: ódio, medo, amargura, mágoa, rancor, ciúme, orgulho, inveja, dor, raiva – vi muita raiva! Eu era muito jovem ainda, devia ter uns treze ou quatorze anos, mas quando retornei à superfície após uma crise existencial tinha plena noção que o Jonas apresentado à sociedade era apenas um personagem, uma persona como disse o Jung. Não que esse Jonas fosse de todo uma mentira, mas no mínimo era partes de uma verdade, porque eu sabia que dentre uma gama de características que eu tinha ("positivas" e “negativas") apresentava só as melhores. Isso é o que todos nós fazemos no dia a dia; nós selecionamos aquelas nossas partes luminosas para nos apresentarmos à sociedade e, conscientemente ou não, empurramos para d'baixo do tapete as outras. E segundo Freud com o retorno do recalcado esse conteúdo inevitavelmente termina voltando à superfície em algum momento, aparecendo no comportamento de alguma forma ou no corpo através de somatizações, como nas pacientes com histeria tratadas por Freud, o que foi o pontapé inicial à Psicanálise. Isso não significa também que precisamos expor nosso pior lado às pessoas, isso poderia ser inadequado e desrespeitoso, mas deveríamos encontrar maneiras aceitáveis e minimamente saudáveis de sublimar esses conteúdos, integrando-os à nossa personalidade, ao invés de relegá-los às sombras, já que eles também fazem parte de nós e cedo ou tarde precisaremos lidar com isso. 

     A princípio então eu não sabia o que fazer com esse conteúdo visto nos mergulhos. Eu só tinha medo de perder o controle de mim mesmo. Medo de enlouquecer esse sempre foi o meu maior medo. Sempre zombaram de mim ao falarem que sou louco porque estou sempre na borda, uma espécie de menção a um sujeito com um pezinho na neurose e outro na psicose, tanto que eu mesmo sempre brinquei comigo sobre isso: “Cuidado, hein Jonas! Fica brincando... Uma hora você pula para o lado de lá e você não volta mais!” Eu até ria disso. Mas lembro também de falar aos meus amigos que minhas autoanálises, meus mergulhos internos estavam sendo tão fascinantes, mas ao mesmo tempo tão profundos e complexos que tinha um certo medo de me perder num labirinto mental e não conseguir mais retornar à superfície, perdendo a sanidade. Esse é um motivo que sempre me fez ter muito cuidado ao não usar substâncias psicoativas, principalmente a maconha. Não critico o uso medicinal da substância – devidamente receitada por médico e controlada –, me refiro a um uso recreativo, porque a maconha é uma droga com capacidade – principalmente em quem tem predisposição – a provocar surto psicótico. Como existe em mim então um certo prazer em flertar com estágios alterados de consciência, tendo alcoolismo já na genética, convivido com um pai alcoolista e eu ter essa personalidade que sempre brinquei como sendo meio limítrofe, me fez sempre ter muito cuidado com potenciais gatilhos para psicose. Mesmo ayahuasca por exemplo que sempre tive vontade de tomar, nunca tive coragem para fazê-lo. Aprendi a alcançar o mesmo prazer através da meditação com o despertar da Kundalini!

     Você deve estar se perguntando: “Para que serve a psicanálise então? Se eu sou capaz de me autoanalisar, porque precisaria de um psicanalista na minha análise? Eu não posso muito bem fazer isso sozinho?”. Pode sim. Mas só até certo ponto também. Qual ponto? O seu ponto cego! Assim como aprendemos lá nas aulas práticas de direção de veículos automotores, o ponto cego é uma falha de visão, já que há uma área que não pode ser observada de modo direto pelo condutor. Num outro exemplo, imagine-se revisando um texto do qual você mesmo escreveu; tenha certeza que alguns erros gramaticais escapariam da sua revisão. Erros crassos que, se esse texto não fosse de sua autoria, você captaria rapidamente, no entanto, como o texto em questão é seu e seu olhar pode estar enviesado, viciado, você não consegue enxerga-los. Psiquicamente falando, isso significa que existem aspectos da nossa personalidade que escapam a uma análise feita por nós mesmos e isso ocorre por “n” razões que vão desde mecanismos de defesa nos protegendo de acessar conteúdos que nos machucaram um dia, até conteúdos recalcados por conta de um superego demasiadamente repressivo ou moralista. Ou seja, para não nos sentirmos rejeitados por uma inadequação ou nos sentirmos novamente machucados pelo trauma que gerou um recalque, vamos esconder de nós mesmos esse conteúdo o máximo que pudermos, a qualquer custo!

     Quando então em frente a um psicanalista que serve como um espelho que devolve as questões do analisando, através de transferências e contratransferências, esse campo de visão se amplia. Sem falar que o psicanalista é um profissional que passou obrigatoriamente pelo tripé analítico: 1 – estudar a psicanálise de Freud e seus contemporâneos; 2 – passar ele próprio por análise; e 3 – ser supervisionado por um psicanalista mais experiente. O primeiro inconsciente que um psicanalista deve ter contato é o seu próprio, para na análise ele poder diferenciar o que é seu e o que é do analisando. Existe uma máxima, acredito que seja do Lacan, que diz que o analista só vai com um analisando até onde ele mesmo deu conta de ir na sua própria análise. Assim, recomendo para quem busca realizar mergulhos mais profundos que o faça preferencialmente com um profissional, seja um psicólogo com abordagem analítica ou um psicanalista, pois como disse há momentos nesses mergulhos bem difíceis, até dolorosos e seria interessante ser auxiliado por um profissional especializado.

Então por que deu esse título? A psicanálise não é para todos?

     Vou colocar aqui uma opinião pessoal. Óbvio que existem pessoas que podem e que vão pensar diferente sobre isso, mas enxergo assim hoje em dia. Para mim uma análise não é para quem quer, é para quem pode. Não num sentido financeiro, de poder pagar por uma, mas num sentido de capacidade emocional e psicológica, de estar preparado, de ser capaz de dar conta e suportar um processo analítico. Tem pessoas que vivem alheias a si mesmas, às suas reais motivações, aos seus desejos, elas se conhecem pouco e não fazem questão de se aprofundar em autoconhecimento, mas isso para elas também não é uma questão. Elas vivem relativamente bem dentro das limitações de conhecimento que têm de si mesmas. Os seus relacionamentos estão satisfatórios. Não há nenhum tipo de prejuízo às pessoas com quem convivem. Elas enxergam ganhos em continuar nessa conduta, mesmo que secundários, e elas estão satisfeitas com eles. Ok. E está tudo bem. Por qual motivo então essas pessoas deveriam fazer análise? Alguém poderia responder que a análise poderia melhorar a vida dessas pessoas trazendo maior conhecimento de suas potencialidades. Será mesmo? Até onde isso é uma verdade ou só um julgamento de valor, um julgamento moral? Quem somos nós para julgar o que é ou não melhor à vida de outra pessoa? E quem disse que um processo analítico é sempre positivo?

     Sinceramente falando agora. Quem busca análise precisa querer ser o mais honesto possível – primeiro consigo mesmo. Essa pessoa precisa ter razoável capacidade de introspecção e estar disposta a refletir sobre muitas coisas na sua vida. Ela precisa ser capaz de experimentar conflitos internos, afetos e sentimentos intensos, e não sem dor. Um processo analítico é algo demorado, trabalhoso, custoso, demanda energia, tempo e investimento. É complexo, conflitante e certamente envolverá algum tipo de luto. Um luto de toda uma idealização na vida do sujeito: uma idealização sobre si mesmo; sobre os seus pais; sobre a sua própria vida. Precisa morrer – simbolicamente – dentro de si toda uma vida idealizada para aí sim abrir espaço para se enxergar a realidade como ela é e surgir – talvez – alguma melhoria. É preciso enxergar os pais como foram e são além dos papéis, como homens e mulheres de carne, osso e desejo. É preciso compreender que nada do que passou mudará, mas a responsabilidade do que aconteceu agora é da pessoa e ela precisará tomar uma decisão do que fazer de agora em diante. Isso implicará em responsabilidade, comprometimento e ressignificação. Apesar de não haver garantia alguma de sucesso, existe uma única certeza nesse momento: do jeito que está não dá para continuar! Quando chega nesse ponto, é o melhor momento de se iniciar uma análise. Para Freud, quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda. Análise então é para quem quer, aguenta e está preparado para lidar com a sua realidade – seja ela qual for.

domingo, 25 de outubro de 2020

EU SOU UM POLÍMATA

     Muitos não sabem mas esse blog já passou de uma década de existência e muitas vezes me perguntei: “Afinal, sobre o que é esse blog?”. Me sentia incomodado com isso às vezes, principalmente por imaginar os pensamentos e os questionamentos que as pessoas poderiam fazer em relação ao conteúdo do blog. Imaginava as indagações dos leitores desse espaço, como: “Esse blog é uma espécie de diário pessoal?; são crônicas?; ora ele escreve sobre filosofia, ora sobre psicologia, entra psicanálise no meio, então ele mistura textos com fragmentos de recursos humanos, gestão de pessoas e o mundo corporativo, qual é a sua área de especialidade?” Isso ocorre toda vez que penso em escrever sobre um tema que tenho interesse, que já estudei, que tenho relativa habilidade, mas esse texto pode se distanciar um pouco dos demais. E isso é uma bobagem!

     Certa vez estava numa sala de aula e uma professora, que também era psicóloga, ministrava uma disciplina sobre gestão de carreiras e desenvolvimento profissional. Ela nos deu várias atividades para fazermos e refletir no decorrer de suas aulas, havia muitos exercícios onde deveríamos escrever sobre os nossos interesses, conhecimentos, nossas capacidades e habilidades. Quando chegamos ao fim de suas aulas, nesse dia ela puxou conversa comigo e reservadamente me disse: “Imagino que deve ser difícil a você escolher uma única área de interesse na carreira, né? Nota-se em você multipotencialidade.” A sua intenção logicamente foi positiva, mas ela falou de forma neutra. Não fiz nenhum comentário, apenas prestei atenção e fui para casa pensando, sem saber se isso era algo positivo ou negativo a minha vida profissional ou a mim mesmo pessoalmente falando.

     Passei um tempo refletindo isso de ter “multipontecialidade”; não sabia ao certo o significado dessa palavra. Pesquisando na internet cheguei a uma outra palavra – desse mesmo universo – que na minha opinião se encaixaria até melhor ao meu perfil. Polímata. Um polímata é alguém que tem especialidade em mais de uma área de conhecimento. Isso tem tudo a ver comigo. Mas isso não teria nada a ver com dom também, pois qualquer pessoa pode – e eu diria até deve! – ser polímata. Ainda mais nos dias atuais. O mundo corporativo, por exemplo, necessita cada vez mais de profissionais 360°. Sucintamente, um profissional 360° dentro de uma organização é aquele que está atento à sua área, ao diálogo de sua área com as demais e o seu interesse visa ultrapassar as paredes da própria organização estabelecendo possíveis conexões entre o que está dentro e fora. Ou seja, seu olhar, seu interesse, suas relações, consequentemente o seu conhecimento, se expandem. O potencial desse profissional busca sempre abarcar inovação, execução e integração. Num mundo em que se fala em disrupção é muito interessante essa versatilidade. Abre espaço à criatividade.

     E que isso não se confunda em saber de tudo sem se aprofundar em nada. Não é isso. Até porque um polímata é essencialmente um especialista em mais de uma área de conhecimento. Ou seja, ele se aprofunda nos saberes. Você não precisa dominar tudo, mas eu diria que é bem interessante você definir primeiramente duas ou três áreas de conhecimento que a priori dialoguem com a sua carreira profissional, com os seus interesses pessoais e também com as suas habilidades naturais. Assim você vai aos poucos aumentando as áreas de conhecimento de interesse para campos mais distantes do seu universo habitual. E isso não tem absolutamente nada a ver exclusivamente com uma capacidade de superdotação, mas sim com vontade, curiosidade e estar aberto para isso.

     Cresci ouvindo as pessoas conversando ao meu redor falando que eu era um “crânio”. Como se eu fosse alguém com uma inteligência acima da média. Isso nunca foi verdade! E eu não estou sendo modesto. Eu sempre fui inteligente sim, mas esforçado também. Só que a minha inteligência sempre esteve dentro de parâmetros considerados normais, nunca recebi qualquer diagnóstico de superdotação. O que eu poderia afirmar, com muito gosto ainda, que sempre tive uma curiosidade acima da média. Uma boa disposição para aprender coisas novas. Sempre gostei de pesquisar coisas interessantes, de ler assuntos dos mais diversos, de fazer associações entre os conhecimentos, sempre gostei de conversar com as pessoas – leia-se aqui entrevista-las – e sempre tive uma cabeça muito aberta e uma vontade voraz de ler o mundo. Pela ótica da ciência; pela ótica da política; pela ótica do regime; pela ótica da religião; da espiritualidade; do misticismo etc. Eu sou curioso! Quando eu era criança ia quase todos os dias à biblioteca municipal para fazer os trabalhos da escola. Nessa ida à biblioteca aprendia sobre o tema do trabalho em questão; passava pela prateleira dos gibis; em seguida ia ao corredor dos livros de astrologia, numerologia, simbologia; lia as revistas sobre dieta, nutrição, exercícios físicos, saúde e bem estar etc. Nunca pensei: “o que me agrega ou o que ganho aprendendo sobre isso?” Meu objetivo era saciar a sede de conhecimento.

     Sou graduado em Administração com ênfase em Comércio Exterior. Fiz MBA em RH com ênfase em Departamento Pessoal. Iniciei um outro MBA em Gestão de Pessoas com foco em Coaching e Lideranças. Fiz uma pós-graduação em Psicologia Organizacional. Atualmente sou aspirante em Psicanálise. Veja que essas são áreas que abrangem negócios, psique e comportamento. E garanto que no meu dia a dia faço a intersecção desses conhecimentos acima com outros tidos como pseudociência como a astrologia por exemplo. Eu me defino como um solucionador de problemas. Penso que todos os dias os problemas batem a nossa porta e eles demandam uma resolução. Todas as vezes em que estou diante de um problema 'x', eu faço uma vasta varredura na minha mente em busca de quais arcabouços teóricos, quais conhecimentos, quais técnicas possuo que poderão me auxiliar na resolução desse problema em questão. Vou dar um exemplo hipotético.

 

Ex.: Um gerente me pede uma ajuda do que poderíamos fazer para solucionar uma situação em seu setor. Há um colaborador muito impulsivo. Ele é muito objetivo, possui um jeito de falar direto e os colegas se melindram. Sempre rebate o que falam com ele. Esse seu jeito assertivo demais, agressivo e um tanto mandão está desestabilizando a equipe. O gerente já tentou dar um feedback ao colaborador mas ele bateu de frente. Apesar do seu comportamento inadequado, esse colaborador costuma atingir bons resultados, então o gerente me pede para eu dar ao colaborador um feedback sobre seu comportamento. 

 

     Peço a ele para enviar esse colaborador à minha sala. Após ouvir a breve fala do gerente já pesquei uma série de características comportamentais (observadas pelo gerente, que precisarei verificar se confirmam ou não com a realidade) e formei uma estratégia na minha mente. Para executar esse feedback então usarei conhecimentos da psicologia analítica do Jung sobre arquétipo (e aqui entra astrologia, porque é composta deles), usarei conceitos da administração, de gestão de pessoas, da psicologia e da psicanálise. Segundo a psicologia analítica do Jung, arquétipos são ideias primordiais, modelos ideais que estão formados em nossa mente há gerações e inconscientemente os vivenciamos. A partir desse relato do gerente (note que grifei palavras) o colaborador vivencia – mesmo sem querer ou perceber! – arquétipos típicos como o do guerreiro; do deus Ares; do signo de áries. E aqui vale ressaltar que o colaborador está apenas exibindo o lado sombra do arquétipo do signo de áries (e não raro, às vezes esse colaborador “coincidentemente” é do signo de áries). Todo arquétipo tem um lado luz e um lado sombra. Utilizando os conhecimentos de arquétipo do Jung e pegando a astrologia como base arquetípica, eu precisarei de duas coisas para trabalhar esse feedback: o aspecto luz do próprio signo de áries e o seu oposto complementar zodiacal – libra.

     O que isso significa? Se eu sei a priori que ele possivelmente vivencia o lado sombra do signo de áries sendo impulsivo e um tanto agressivo, preciso usar libra que diz de diplomacia, de parcimônia, de justiça, da ideia de um outro. Ele precisa lembrar que existe um outro, enxergar o gerente, enxergar a equipe, ele – por mais energia que tenha – não concretiza nada sozinho! Ele está muito no eu, especificamente no Id. Libra lembra de ser receptivo, de ser mais passivo. Não adianta eu me posicionar como a autoridade e fazer frente porque ele vai rebater, seu temperamento é colérico, seu espírito está bélico. Já ouviu aquela frase: “dois bicudos não se beijam”? Eu não posso entrar no seu jogo, ele quem tem que entrar no meu! Se eu for à força, no fim terei de usar a punição disciplinar para coloca-lo em seu devido lugar e assim ele não entenderá o objetivo do feedback, ele acatará por medo da punição e não por uma conscientização que é o esperado, haja vista que o próprio gerente diz que ele dá bons resultados. Então vale a pena o investimento num bom feedback. E o bom feedback não está no que é falado, mas sim como é falado. Se um dos lados não entra no conflito, não há como duelar, então por mais que ele se exceda e aumente o tom de voz comigo, eu devo me manter equilibrado, sensato, mantendo o meu tom de voz cada vez mais baixo... Sem perceber ele espelhará o meu comportamento. Ele baixará o seu tom de voz e não conseguirá brigar sozinho, precisará conversar comigo e assim entraremos no campo do diálogo.

     Agora que ele baixou as suas armas, ele está apto a me ouvir. Só que não posso ser direto e falar objetivamente o que quero. Aqui entram entendimentos da psicologia. Quando vamos dar um feedback para uma pessoa, se somos muito diretos e falamos objetivamente onde uma pessoa está errando, isso é recebido como uma agressão emocional. Quem nunca ouviu aquela expressão popular: “fulano foi direto e reto, soou até agressivo"? Porque de fato é assim que o ser humano sente. É um golpe emocional! E como tal é instintivo a pessoa levar para o lado pessoal e buscar se proteger. Aí de duas uma: para algumas pessoas a melhor defesa é o ataque, então a pessoa vai contra-atacar e pode gerar uma discussão desnecessária; enquanto outras poderão se melindrar e se blindar emocionalmente, então elas se fecham, a partir daí você pode falar o quanto quiser, a pessoa não dará mais abertura, porque ela se fechou emocionalmente e tudo o que for dito entrará por um ouvido e sairá pelo outro. Eu sei que muitas pessoas lendo isso podem pensar o seguinte: “Ah! Mas isso é uma frescura! Se a pessoa se doer problema dela!” Bem, problema dela não! Nós estamos num ambiente organizacional, então o problema é da empresa! Ela pode estar com frescura ou não, mas se a minha comunicação pode afetar o seu resultado é óbvio que o mais sensato é eu pensar. Isso não é uma guerra de egos. Utilizamos a melhor estratégia para extrair das pessoas o seu melhor resultado.

     E lembra quando falei de utilizar o aspecto luz do arquétipo do signo de áries? No aspecto luz, esse arquétipo traz as seguintes características: iniciativa, bravura, coragem, energia, pioneirismo, honestidade, liderança, ambição, firmeza, lealdade etc. São ótimas características! Se ele já vivencia o lado sombra do arquétipo do guerreiro, é possível facilmente serem desenvolvidas as características para ele vivenciar o aspecto luz desse arquétipo. E no fim pouco importa se ele é ou não do signo de áries, ele está sob a égide desse arquétipo. Ele vivencia, mesmo sem saber, essas características. O que ele pode fazer conscientemente é querer trabalha-las. E eu enquanto RH buscar desenvolvê-las pois poderiam agregar muito ao time. Vale ressaltar aqui que embora muitas pessoas, por desconhecimento, desqualifiquem o Jung e a psicologia analítica e o coloquem numa categoria mística ou esotérica, seus estudos sobre arquétipos são muitíssimo interessantes. Veja a quantidade de conhecimentos teóricos e técnicos que posso me basear só para executar um feedback mais assertivo a um colaborador, visando a melhor estratégia, a mais eficiente e eficaz. Lidar com ser humano não é nada fácil, mas é muito gratificante a nível de troca de experiências. 

     Esse blog então não tem um objetivo, ele tem vários, são múltiplos e não importa sobre o que eu fale ou como eu coloque, sempre quero lembrar você que podemos mais! Somos dotados de uma capacidade neuroplástica. Nosso cérebro está constantemente se transformando a partir dos nossos hábitos. Estamos sempre aprendendo e nos adaptando. Se você observar um bebê, ele é como um elástico, é potencialidade pura, um bebê não tem consciência se conseguirá andar ou falar, mas ele olha adiante com curiosidade e vontade e segue tentando sem se importar com o que estão pensando, até que um dia ele simplesmente consegue! Nessa fase da nossa vida acreditávamos mais, tentávamos mais, consequentemente conseguíamos muito mais. Quero lembrar você, assim como busco me lembrar todos os dias, que somos como elásticos ao nascer e nosso objetivo aqui nessa vida é nos esticar ao máximo descobrindo sempre novos talentos, novas capacidades, novas habilidades. Todos temos multipotencialidade! Não crie muros na sua mente. Crie pontes!

sábado, 24 de outubro de 2020

RAÍZES PROFUNDAS

     Hoje pretendo trazer uma discussão para pensarmos sobre dois sentimentos: o amor e o ódio. Em seguida quero estender essa discussão para uma reflexão a outros pontos e situações da vida. Então, a princípio gostaria que você pensasse sobre essas perguntas: 

Quais pessoas você diria que ama ou que já amou inteiramente?
E quais pessoas você diria que odeia ou que foi capaz de odiar completamente?

     Gostaria que você se respondesse essas perguntas antes de prosseguir. Tente buscar em sua mente ao menos uma pessoa para cada uma dessas perguntas acima.

     Desde muito jovem me dediquei a observar e a analisar os comportamentos, os meus e os das pessoas ao meu redor. Busquei aprender com isso. Tentei crescer a partir disso. Hoje sou aspirante a psicanalista. Já tinha interesse por pesquisar assuntos dessa natureza que hoje em dia estudando mais a fundo a psicanálise me sinto fascinado. Se você acompanha esse blog há algum tempo, no mínimo você já notou que os textos aqui são densos. Intensos. Conteúdos bem profundos. Mas digo que eu sou assim. Levo a minha vida assim. Lembro de um conto que li – desses com moral – que falava que todo dia um homem via o seu vizinho cuidando do jardim. Um dia o homem se mudou e após décadas voltou ao seu antigo endereço se surpreendendo com o antigo jardim de seu vizinho; ele havia se tornado um enorme bosque com árvores com troncos robustos e aparentemente essas árvores eram as únicas daquela rua que não se quebraram com os ventos de uma recente tempestade. Então ele foi cumprimentar o antigo vizinho e o questionou sobre o belo resultado do seu jardim. O vizinho apenas lhe disse que regava pouco as plantas que agora eram árvores e como não receberam dele água facilmente, elas precisaram aprofundar suas raízes e se tornaram mais fortes e resistentes às intempéries. Faço analogia da minha infância com esse conto; minha criação foi difícil em vários pontos, mas tive muitos ganhos emocionais a partir disso. Tenho consciência deles. Nunca busquei por sofrimento, mas sempre busquei os ganhos a partir dele. O budismo tem um ditado que diz que da lama nasce a flor de lótus. A psicanálise faz esse movimento de voltar o olhar ao passado para analisar o presente e esse material analítico escavado apesar de denso é bastante rico.

     Quem costuma ler o meu blog sabe que a minha infância foi bem complicada. Filho de pai alcoolista, agressivo, autoritário, com uma mãe focada exclusivamente ao seu trabalho, totalmente distante das questões emocionais dos filhos. De fato isso aconteceu. Mas não somente. Meus pais também tiveram ótimas qualidades, dignas de muito respeito e admiração – poderia citar várias delas. Um exemplo que me marcou foi o fato de crescer percebendo como meus pais eram solidários. Eu cresci assistindo – e participando – de ações onde meus pais nos levavam para doar comida, roupa, qualquer ajuda às pessoas mais pobres do que nós. Esses momentos me marcaram muito na infância. Então, eu seria simplista se taxasse que eles foram maus ou bons; certos ou errados; tudo depende do ângulo. A nossa noção de “verdade” depende do ângulo. E nunca é uma coisa ou outra, é sempre uma coisa e outra. Lembro de um episódio forte que vivi na adolescência ainda que foi crucial para compreender muitas situações na minha vida, porque esse episódio gerou questionamentos que foram a mola propulsora de conclusões que chegariam mais tarde. Relatarei esse episódio para trazer uma reflexão que embasará a ideia central do texto de hoje. Amor e ódio.

     Quando eu tinha uns treze anos de idade, por algum motivo banal meu pai e eu estávamos um dia discutindo – como era de costume –, ele estava bêbado, a discussão foi se intensificando, quando ele ao perceber que não conseguiria me calar num “duelo verbal”, partiu nesse momento para a agressão física, então ele começou a me bater. Eu sempre orgulhoso, só me lembro de me concentrar para não esboçar nenhum abalo. Durante toda a agressão mantive o queixo erguido, o olhar fixo nele e uma postura de altivez. Mentalmente a ordem que me dava era a seguinte: “Não recue. Não chore. Não se abale. Você não vai dar esse gosto a ele!”. Para mim essa era uma questão de honra! Imagino que isso o enfurecia ainda mais já que ele esperava algum sinal de submissão, de passividade, de obediência, mas só encontrava em mim um olhar de ódio, uma expressão de desdém...

     Não sei se haveria fundamento orgânico nisso, mas imagino que em algum momento a adrenalina em seu sangue pode ter afastado o efeito do álcool e ele foi caindo em si, ficando sóbrio. Nesse instante, quando ele estava “retomando a consciência” dos seus atos, eu pude ver claramente em seus olhos uma expressão de horror pela constatação do que estava fazendo, ou seja, ele estava perplexo de se ver espancando o próprio filho. Nesse momento ele se emocionou muito e eu precisei até fugir o meu olhar. Então ele me abraçou por trás, disse que me amava profundamente e só me pediu perdão. Nesse momento eu desabei! As emoções reprimidas vieram à tona em explosão! Eu não conseguia parar de chorar. Nesse momento só pensava: “Esse é o homem que eu mais amo na vida e é também aquele que eu mais odeio! Como posso ter, simultaneamente, sentimentos tão opostos pela mesma pessoa!? Eu não entendo!” Mas fui atrás de entender. Descobri que sim, é possível. Somos capazes de amar e odiar ao mesmo tempo uma mesma pessoa.

     Amor e ódio são faces de uma mesma moeda. Toda pessoa que amamos, em algum nível a repelimos, num nível até inconsciente podemos odiar algo nessa pessoa amada. E toda pessoa que odiamos, não somos capazes de odiar sem sentir por ela admiração ou atração em algum nível. E se isso não fosse verdade, se não existisse no objeto do nosso ódio nada que nos cativasse simplesmente ignoraríamos! Seríamos indiferentes. Não é possível você odiar aquilo que não mexe com você, aquilo que não te mobilize interiormente de alguma forma. Entenda que se algo numa pessoa ou situação está te incomodando é porque isso diz de você, isso tem sintonia com você ou você simplesmente nem seria capaz de se sentir incomodado. Se por um lado isso pode ser assustador. Por outro lado é libertador. Se não somos santos, o diabo também não é como pintam! Eu poderia facilmente me justificar perante à vida com a alegação “Sou assim porque meu pai foi um homem mau!”. Usar dessa narrativa para justificar ser um mau caráter e depois me colocar como uma vítima das pessoas. Só que não tenho inclinação para respostas rasas. Não me valho de análises polarizadas e reducionistas. Tampouco creio em conclusões fatalistas. Tudo depende. Depende de quê? Eu diria de quem. Como lembra Sartre, o que importa é o que fazemos com aquilo que acontece conosco. Então depende de mim. A responsabilidade nisso agora é minha.

     Nós somos muito mais complexos do que imaginamos! Nossos comportamentos e sentimentos são muito mais intrincados e até contraditórios do que gostaríamos. Meu pai errou sim em muitos aspectos. Mas ele também acertou em muitos outros. Eu escolhi ficar com o que foi o seu melhor e aproveitar em minha vida aquilo que for útil. Saudável. Coisa que ele não era. Alcoolismo é considerado uma doença que merece a devida atenção e um tratamento. E eu sei que muitas pessoas podem estar lendo isso agora e me julgando: “A sua relação com o seu pai foi tóxica. Ele foi um péssimo exemplo a você de homem. Você “defendendo” tudo o que aconteceu, você assume isso como correto e se não tomar cuidado terá dificuldade para compreender o que é amor sadio. Isso se refletirá em suas relações pessoais, sociais, profissionais, afetivas etc.” Ok, meus parabéns! Mandaram bem no diagnóstico! Mas só até a página 2! Confesso que isso é possível. Mas será que também não seria possível que tudo o que vivenciei foi mais amplo e complexo, onde fiz escolhas conscientes também e tive ganhos e os pontos mais negativos hoje se tornam bons exemplos daquilo não quero para minha vida? Um pai alcoolista pode ter dois filhos e um ter o vício e o outro não. Ao indagarmos ambos, um filho poderia dizer que se tornou alcoolista porque teve um pai alcoolista, enquanto o segundo poderia dizer que não bebe porque teve um pai alcoolista. Ou seja, as origens que levaram um filho ao vício foram as mesmas que distanciaram o outro dele. Há um ditado japonês que diz que o vento é o mesmo, mas a sua resposta é diferente em cada folha.

     Quando você entende que tudo na vida é no mínimo dual e essa dualidade no fim é complementar, você passa a compreender melhor as inconsistências e inconstâncias das pessoas. Desenvolve uma postura mais assertiva ao invés de reativa. Sua visão enxergará mais amplamente as situações e os acontecimentos e você suspenderá os seus julgamentos, e quando não, eles serão menos taxativos. Você começa a entender que a verdade é na verdade só uma verdade. E percebe que não faz sentido classificar as situações e as pessoas entre certo ou errado, bom ou mau, porque entre uma coisa e outra existe um longo caminho e muito o que analisar. Nada é tão simples quanto parece. Quando você aprende a enxergar os pontos positivos em quem você odeia, você respeita essa pessoa. E quando você aprende a enxergar os pontos negativos em quem você ama, você respeita a si mesmo! 

domingo, 27 de setembro de 2020

ASTROLOGIA & PSICANÁLISE

Antes de você iniciar a leitura desse texto abaixo, preciso pedir duas coisas. A primeira coisa é que preciso falar que esse texto ficará enorme, certamente o maior daqui desse blog. Serão muitos conceitos, retratados através de breves episódios de diversas fases da minha vida e precisarei contar com muita habilidade para amarrá-los de forma coesa, então peço por favor paciência. A segunda coisa é uma solicitação para que você abra a sua mente para alguns conceitos que serão colocados aqui sobre astrologia e a sua ligação com alguns conteúdos da psicanálise que, a meu ver, foram uma combinação importantíssima para compreender melhor algumas experiências e situações da minha vida.

O encontro com a astrologia

Eu sempre fui inteligente e curioso. Gosto de ler sobre tudo. Astrologia é um tema que comecei a estudar ainda na infância. Geralmente quem se interessa por astrologia inicia estudando o que significa o arquétipo de cada signo, planeta e casa astrológica – comigo foi assim também. Em seguida passei a estudar sobre uma mitologia – especialmente a grega – associada a cada um dos signos e as associações com a formação da personalidade. O meu objetivo era puramente autoconhecimento e a astrologia era apenas uma das fontes que fui beber para obtê-lo, buscando sempre um olhar crítico e não tomar como verdade absoluta nenhuma informação“sou assim por causa disso”. Buscava analisar e observar cada conteúdo objetivamente. Empiricamente. Como se eu pegasse cada conteúdo novo estudado, fosse o dissecando pouco a pouco, me observando, observando o comportamento das pessoas ao meu redor e tentando encontrar uma ponte entre os livros e o que observava na prática no dia a dia. Esse material de estudo encontrava sempre na biblioteca municipal e como ia lá quase todos os dias, sempre tinha contato com novos livros. Um dia, ainda na infância, li algo que mudaria minha vida para sempre! Fiquei muito intrigado com isso, assustado e preocupado também. Mas também interessado em analisar melhor essa nova informação. O livro falava sobre astrologia com um viés analítico, comportamental, psicológico. Mas é óbvio que eu já sabia nessa época que astrologia não é considerada uma ciência, mas isso para mim pouco importava, como pouco me importa ainda hoje, sinceramente falando. Eu pensava assim comigo, “Apesar de nada disso ter um cunho científico, eu me proponho sim a analisar".

Até hoje tenho essa característica comigo: presto atenção aos conteúdos transmitidos e às referências com outros conteúdos, preferencialmente científicos é claro. Mas o meu compromisso é com a ideia e não com a fonte. A minha preocupação é com a funcionalidade pós teoria e não apenas com uma abstração do pensamento. Não tenho muito apreço pela apresentação, por si só, de títulos e credenciais. Pouco importa para mim na verdade se uma pessoa tem doutorado ou pós-doutorado, suas ideias fazem sentido? Se um mendigo me passar algo que tenha coerência, seja plausível ou eu puder aplicar na minha vida, ouço. Absorvo com o maior respeito, porque o meu compromisso é com a ideia – venha de onde venha. Vejo pessoas que falam muito difícil, com um português muito rebuscado, numa linguagem demasiadamente técnica, mas no frigir dos ovos são ideias confusas, rasas, que me pergunto se a pessoa estaria se expressando dessa forma por insegurança; por falta de didática; para apresentar erudição; ou o que seria ainda pior, para demonstrar ter uma profundidade que de fato não possui. Por isso peço a você para abrir a mente para ler essa postagem. Se fizer sentido para você, ótimo. Se não fizer, está tudo bem também. Mas acredito ser importante termos contato também com aquilo que não concordamos. Bem, vamos então a uma breve análise de alguns detalhes do meu mapa astrológico natal.

  • Tenho ascendente em câncer, Lua em capricórnio na casa 7, Plutão em escorpião no fundo do céu (casa 4) e Marte na 8. Resumidamente, segundo a astrologia:

  • O ascendente é a persona; sendo câncer, traz ao indivíduo emotividade, espírito materno, capacidade de acolhimento;

  • O regente de câncer é a Lua que está na casa 7, casa das relações e dos contratos próximos, como o casamento por exemplo;

  • A lua fala sobre o universo emocional e das reações instintivas, assim como revela possíveis aspectos ligados à mãe (dinâmica também vista na casa 4 que está ligada à infância). Estando a lua em capricórnio ela está em detrimento, ou seja, num posicionamento desfavorável, o que traria ao sujeito características de calculismo, austeridade, sobriedade e frieza ou falta de emotividade, e se busca segurança emocional na casa onde estiver localizada essa lua;

  • Plutão, escorpião e casa 8, arquetipicamente falando têm a mesma roupagem, falam a mesma língua. A casa onde Plutão e escorpião estiverem veremos medos, vulnerabilidades, traumas, sombras, inconsciente, controle, sexualidade, transmutação, regeneração, renascimento. Se esses conteúdos são integrados (segundo a psicologia analítica de Jung) ou trazidos para a consciência (segundo a psicanálise de Freud) alcançamos maior empoderamento em nossas vidas. Em suma, estes são arquétipos que falam de poder pessoal;

  • Marte tem a ver com a nossa pulsão, com a nossa libido, a casa  onde estiver revelará onde investimos a nossa força, onde somos aguerridos e consequentemente onde podemos nos recarregar também. Estando na casa 8, o indivíduo mergulha com coragem no seu lado mais sombrio e obtém a partir desse mergulho recarregamento. Um posicionamento que pode ser simbolizado com a ave Fênix.

Então, quando eu era criança, tive contato com esses estudos acima e para esses posicionamentos e configurações, segundo a astrologia, haveria uma tendência para embotamento emocional advindo de uma falta de presença materna ou de uma presença materna gélida, que geraria uma possível insegurança futura no indivíduo e um complexo de Édipo mal resolvido [essa parte eu gravei porque foi a que mais me incomodou toda vida]. O menino buscaria essa resolução mais tarde no casamento e a menina buscaria resolver através de um filho. E apesar da criança buscar construir uma persona que seja capaz de externar suas emoções, o ambiente familiar seria tão frio e árido que elas teriam de ser silenciadas, não pela figura paterna, mas pela figura materna. Haveria nessa dinâmica familiar fortes conflitos de poder, fonte de traumas significativos que reverberariam mais tarde por toda fase adulta.

Nesse momento em que li isso, minha cabeça deu um “BOOM!". Como nas cenas daqueles filmes quando mostram o momento da explosão de uma bomba, parecia assim na minha mente, me lembro que esse conhecimento balançou as estruturas na época. Ainda mais quando fui entender esse conceito edipiano na psicanálise freudiana. Aqui foi o meu primeiro contato então com a psicanálise – partindo de livros de astrologia! E eu já conhecia o mito sobre Édipo, porque como disse anteriormente mitologia é um tema que sempre gostei, eu só não tinha conhecimento sobre a analogia desse mito para explicar a triangulação pai – mãe – filho. E quando tive acesso a essa teoria minha cabeça deu outro “BOOM!”. Eu falava para mim mesmo: “Jonas, segura as estruturas aí... Vamos ter que lidar com isso."

Onde está a mãe?”

É comum os leitores dos meus textos aqui no blog perguntarem: “Onde está a mãe?”. Como se houvesse uma fixação na figura paterna e a figura materna nos meus textos estivesse nas entrelinhas, mencionada breve e superficialmente em algumas passagens; enquanto ao meu pai eu dedicaria mais tempo, textos e também reflexões, a minha mãe apareceria como figura secundária, coadjuvante. Quero desmistificar isso porque considero os dois – tanto o meu pai quanto a minha mãe – como figuras essenciais na minha formação. Apenas de formas diferentes – muito diferentes! Meu pai me ensinou a amar, enquanto a minha mãe me ensinou a ser resiliente! A minha relação com o meu pai foi turbulenta, agressiva e caótica, mas também teve muito amor envolvido. Ele era um homem passional que não media entregar sentimentos, se ele amava, amava pra valer, mas também brigava com a mesma paixão. Já a minha mãe é o oposto do meu pai, ela é contida, fechada, séria, diria até fria. Ouvi seu primeiro “Eu te amo” eu tinha vinte e cinco anos de idade, eu acho. Posso contar nos dedos quantas vezes ela me abraçou na vida. Já meu pai vivia me abraçando, ele até mordia a minha cabeça. E quando lhe perguntava “Por que você faz isso?!”, ele apenas me respondia “Porque eu te amo demais!” e começava a rir. E o pior é que eu sentia que ele nos amava perdidamente mesmo. Meu irmão e eu.

Então ambos me amaram. Só que cada um tinha um jeito de demonstrar o seu amor. Minha mãe é mais seca, até fria, porque a sua forma de demonstrar é através do prover material visando o sustento. Meu pai já era crítico, controlador, até ciumento, porque sua forma de demonstrar afeto era se entregando intensamente na relação. Eu sou de uma família muito pobre. Minha origem é bem humilde. Filho de mãe cozinheira e pai pedreiro, cresci num ambiente sem muitos recursos e passamos por dificuldades. Comida à mesa nunca faltou. Houve períodos de fartura e períodos bem apertados. Meus pais tinham uma lanchonete quando eu era criança. Ela era bem frequentada na cidade onde morávamos. Todo dia quando saia do pré-primário ia para lá. Cresci vendo os clientes, os shows, brincava entre os engradados de bebidas, aprendi ali a jogar fliperama, estava sempre assistindo todos trabalhando. Gostava daquele ambiente, ele era bem animado. Com o tempo, por divergências na sociedade, os meus pais decidiram vender a sua parte e nos mudamos dessa cidade. Aí talvez começou o período mais difícil da minha infância, quando nos mudamos dessa cidade – e por vários motivos.

Eu já não costumava ver a minha mãe quase nunca, já que antes de nos mudarmos ela ia à lanchonete de manhã, eu ainda não tinha acordado, meu pai quem me levava ao pré-primário. À tarde quando saia da aula eu ia para a lanchonete. Lá minha mãe estava sempre trabalhando, então a via pouco. Ela e meu pai chegavam da lanchonete sempre de madrugada e eu já estava dormindo. E foi assim por anos a fio. Quando nos mudamos nessa nova cidade, como minha mãe já tinha experiência de lanchonete, ela arrumou um emprego de cozinheira num restaurante no centro da cidade – onde sempre fazia jornada dupla. Ela entrava às 07h e saia às 16h, retornava às 18h e saia às 02h. E fazia essa vida de segunda à segunda. Salvo de segundas na parte da noite e durante o dia aos domingos, porque a pizzaria e o restaurante não funcionavam nesses períodos. Só que nesses momentos de folga em casa ela ainda lavava roupa para fora! Assim, Natal, Ano Novo, aniversários, sempre ela estava trabalhando.

Um dia não sei o que deu em mim resolvi indagá-la sobre isso. Eu nunca tive medo da minha mãe, mas tinha um certo receio de lhe cobrar qualquer coisa, eu não sentia abertura nela e ela estava sempre ocupada. Um dia, quando estava com dez anos talvez, cheguei até ela enquanto se preparava para sair para trabalhar e perguntei:

- Mãe... Nós somos tão pobres assim que você precisa trabalhar tanto?

Ela me olhou como quando olhamos para alguém que vamos ter uma conversa honesta de adulto para adulto. Então me questionou:

- Está faltando alguma coisa para você, Jonas?

- Não... Nada... É que eu só nunca vejo você em casa... - respondi já meio sem jeito.

Então me lembro que ela se agachou na altura dos meus olhos, colocou uma das mãos no meu ombro e disse algo que me marcou profundamente:

- Jonas, seu pai é pedreiro, ele não é registrado, então nem sempre tem trabalho. Às vezes acontece de chover muito então não dá para ele ir trabalhar ou às vezes ele faz todo um serviço e ainda leva calote e não lhe pagam. Eu preciso trabalhar. Você precisa de um par de tênis novo. Você e seu irmão estão crescendo e perdem roupa rápido. Aqui em casa não pode faltar nada. Preciso que entenda – então ela se levantou e foi trabalhar.

Se você me perguntasse o que eu estava sentindo nesse momento responderia “vergonha”. Vergonha de mim mesmo. Eu acho que ela foi tão sincera, e como ela nunca expôs o meu pai para nós, pude compreender a situação nua e crua. Sem enfeites. E essa foi a primeira – e talvez a única – vez que a minha mãe expôs o meu pai de alguma forma, porque ela nunca o criticou de nenhuma maneira para nós, nem para ninguém. Os dois eram bastante cúmplices e eles se compreendiam só pelo olhar. Nesse dia senti que precisaria engolir meus sentimentos, minhas emoções, literalmente comi minhas frustrações e me dei a seguinte ordem “Cresça, Jonas! Aprenda a se resolver sozinho”.

Aos onze de idade cai de joelhos numa aula de Educação Física e na hora não doeu, mas chegando em casa começou a latejar. Fui ao orelhão mais próximo e liguei no serviço da minha mãe, ela me disse que estava muito ocupada, não poderia me auxiliar naquele momento e me pediu para chamar uma ambulância. Só me lembrei da ordem que dei a mim mesmo, “Cresça, Jonas!”. Subi a pé ao hospital, passei com o ortopedista e tirei raio-x na mesma tarde e antes de ir para casa passei na farmácia com a receita e comprei os medicamentos. Quando minha mãe chegou nesse dia apenas lhe disse “Já resolvi”. Nessa idade já ficava sozinho. Tinha aprendido a cozinhar. Preparava minha própria comida. E nem tínhamos micro-ondas. Com quinze anos comecei a trabalhar, já pagava minhas próprias contas, não aceitava mais dinheiro deles, muito pelo contrário, passei a ajudar dentro de casa nas despesas.

O complexo de Édipo

O problema é que meu pai e eu brigávamos feito com cão e gato. Eu costumava dizer que em minha casa tinha um só trono mas dois reis. E apesar de eu não fazer questão alguma de sentar nesse trono e mandar nos demais (eu só queria mandar em mim!), eu não o deixava sentar lá. O problema de aceitá-lo nessa posição implicaria diretamente em me colocar como seu súdito e ele era tão tirano que eu não tinha estômago para isso. Eu aceitaria numa boa dividir o poder ou alterna-lo com ele, ou até mesmo me submeter plenamente a sua autoridade, desde que ele não fosse autoritário. Eu não suporto pessoa arrogante e autoritária. Existe uma grande diferença entre quem tem autoridade e quem é autoritário. É a clássica diferença nas empresas entre o chefe e o líder. Esse conflito de poder começou desde cedo em casa: quem é que manda? E minha mãe parecia secretamente estar sempre do lado do meu pai...

Minha mãe diz que eu nasci de oito meses e num momento em que ela não esperava. Certa vez ela me disse que isso foi suficiente para ela compreender que eu tinha o meu próprio tempo. Odiava abraços. Odiava que me carregassem. Queria andar a qualquer custo. Quando íamos fazer compras no mercado ela tentava me carregar e eu abria a boca chorar, porque queria ir andando. Mas o mercado era longe. Meu pai então me pegava à força, me jogava nas suas costas de cavalinho e íamos o caminho todo se engalfinhando. Tudo, tudo, tudo o que eu ia fazer tinha fazer do meu jeito. E se alguém tentasse me ajudar eu abria a boca chorar e ficava muito bravo. Eles falavam que eu parecia uma pimenta. Só que minha mãe me deixava... Ela até tentava me ajudar, mas com eu sempre fui teimoso e orgulhoso recusava, então ela se cansava em algum momento e dizia: "se vira então". E era “se vira” mesmo, porque nesse momento eu poderia atear fogo na casa comigo dentro que ela não moveria um músculo para me socorrer. Meu pai jamais me deixava sossegado. Ele era daqueles que entrava na sala de aula com bolo e tudo e mandava meus colegas cantar parabéns! Isso aconteceu na primeira série e eu queria morrer! Eu não gosto de festa de aniversário. Então a vida dele era invadir a minha. Ele não só queria saber o que eu estava fazendo, como queria ver, participar, dar pitaco e ainda ficar me corrigindo! Eu aguentava até o ponto quando ele começava a me criticar. É como uma visita que vai a sua casa sem ser convidada e não satisfeita em criticar a cor das paredes começasse a mover até a mobilia de lugar! Obviamente que você chutaria da sua casa essa pessoa sem noção. Era mais ou menos isso o que eu fazia com o meu pai quando ele vinha com sua liçãozinha de moral.

Ele resolvia me dar lição de moral quando estava alcoolizado. Meu pai sóbrio era o melhor pai do mundo. Lembro quando comecei a trabalhar chegava de madrugada por volta das 02h da manhã e ele estava sentado no sofá me esperando para conversarmos. E as conversas eram sempre muito legais. Só que bêbado ele era uma pessoa completamente diferente. Ele ficava ácido, chato, crítico e sarcástico. Falava que casa silenciosa parecia um velório, então por qualquer questão ínfima ele começava a discutir. E eu era obrigado a ficar na mesa sentado ouvindo ele falar, por horas a fio! Me lembro que eu tinha o costume de ficar sentado riscando o seu isqueiro –  porque ele era fumante. Então ele dizia assim: "Você está nervoso, Jonas?”. E eu, “Não". E ele continuava, “Eu acho que você está nervoso sim, você fica riscando esse isqueiro aí e não para de bater os pés embaixo da mesa...". Olha, aquilo sim era tortura psicológica. Para mim o seu propósito era claro, ele queria me desestabilizar, como se ele tivesse brincando com fogo. Parece que ele tinha prazer em me tirar do sério. Água mole em pedra dura... Em algum momento eu perdia a cabeça e partia para briga. Eu ficava cego de raiva. Quando me dava por mim estávamos aos socos já.

Então quando isso acontecia ele me colocava para fora de casa e dizia “Essa noite você não entra, vai dormir aí fora para aprender a me respeitar.” Então eu tinha que dormir no quintal toda vez. Às vezes estava chovendo. Ou estava frio. Eu não podia entrar. Quando amanhecia o dia, eu queria ir à escola, mas não tinha como eu ir daquele jeito, sempre fui muito vaidoso, queria tomar um banho, trocar de roupa, às vezes estava machucado da briga ou sujo por dormir do lado de fora. Mas no dia seguinte ele estava plantado na porta como um guarda e falava que só me deixaria entrar se eu lhe pedisse perdão. Eu juro que preferiria ser esmurrado a ter que fazer isso, mas eu não tinha escolha, eu queria muito ir à escola, encontrar com os meus amigos, então eu pedia perdão e entrava. Quando entrava no banheiro, precisava tomar um banho frio e parecia que a água estava caindo sobre uma chapa de ferro quente de tanta raiva que eu estava. Logo, é fácil imaginar quem seria a figura de autoridade mais próxima que eu descarregaria toda essa energia. Os meus professores. Eu quase fui expulso da escola! Cheguei a ser considerado o pior aluno da escola onde estudava. Alguns professores tinham medo de dar aula para mim. Me lembro quando estava na oitava série, uma professora parou de dar aula na escola onde eu estudava e disse que só retornaria anos mais tarde depois que eu já tivesse concluído o ensino médio. Nessa fase aconteceu de tudo... Até em delegacia eu fui parar. Mas isso já é para uma outra história...

A morte de Laio

Durante todo esse tempo então, da infância à adolescência, vira e mexe eu refletia aquela interpretação astrológica. Como pode observar muitos pontos daquela interpretação de fato bateram. Ficava me perguntando se a vida imitava a arte ou a arte imitaria a vida. Procurei sempre refletir minha relação com os meus pais e compreender essa triangulação da psicanálise e a forma de cada um me amar. Minha mãe obviamente estava casada com o seu trabalho. Ela foi uma mãe mais funcional, aquela que nunca deixou faltar nada, mas não existia um afeto “tradicional” de mãe de sua parte. E isso eu busquei me analisar também. Já que a forma de amar da minha mãe era diferente da que eu esperava, eu teria que encontrar outros pontos de nutrição materna. Procurei jamais me pôr num papel de vítima; procurei não julgar a minha mãe; procurei aprender a interpretar a sua forma de demonstrar o amor. A minha mãe não é de falar abertamente, nem de abraçar, ela demonstra de formas indiretas. De um jeito muito particular. Que aprendi a perceber. A valorizar. A função materna está intimamente ligada a uma sensação de segurança, então analisei essas questões com muito carinho, aflorei em mim o meu lado maternal para acolher as minhas próprias demandas, pois para enfrentar a vida precisamos nos sentir seguros. Além do que eu sempre pude contar também com o meu pai para executa-la em alguns momentos, já que ele era mais maternal e bastante carinhoso. É muito importante a função materna nesse sentido. Um indivíduo “sem mãe” perde a segurança. É a função materna que aterra, que dá a sensação de estabilidade e a firmeza para avançarmos seguros na vida sem tantos medos.

E tem um outro porém também importantíssimo nessa reflexão materna que sempre me atentei. Mãe é mãe. Esposa é esposa. Sempre me atentei para procurar uma mulher para me casar e não uma mãe para cuidar de mim. Sempre quando começo a namorar procuro refletir qual o meu real interesse nessa relação amorosa, para estar certo de que estou buscando uma mulher e não uma mãe. Assim como fico muito atento se uma mulher está tentando cuidar de mim (me vendo como filho) ou ser cuidada por mim (me vendo como pai). Ambas as situações revelam claramente dinâmicas edipianas mal resolvidas e tenderão mais cedo ou mais tarde a apresentarem alguns problemas. Por isso fico muito atento quando ouço aquele famoso discurso que diz que os casais devem um cuidar do outro. Para mim acende um alerta onde me pergunto o seguinte: como seria esse cuidar? Eu sou um homem já formado que não precisa que ninguém cuide. Assim como não tenho pretensão alguma de cuidar de outra pessoa. A gente cuida de criança. Penso que um relacionamento afetivo, amoroso, sexual é composto por adultos capazes de fazer suas próprias escolhas conscientemente e já se resolvem sozinhos, que decidem por prazer compartilharem alguns momentos da vida. E não há fusão aqui. Cada um continua com os seus próprios sonhos, com os seus projetos pessoais, que até podem caminhar paralelamente e juntos eles somarem forças para se ajudarem, mas são duas vidas distintas. Para mim é preciso bastante atenção com esse cuidar (salvo raras exceções), porque isso pode se traduzir em relações tóxicas, de co-dependência, onde evidentemente existem traços edipianos mal elaborados aí. Atenção.

Quanto ao meu pai, ele só espelhou os seus sonhos mim. A verdade é essa. Meu pai era apaixonado por música clássica. Pintura. Escultura. Filosofia. Sapateado! Ele adorava ter amizade com pessoas cultas. Descobri tudo isso vasculhando um dia sem querer um enorme baú que ele tinha e nunca nos deixava mexer. Lá tinha livros de literatura portuguesa e inglesa, de romances policiais. Discos de vinil. Então quando fui indagar minha avó paterna sobre aquele conteúdo (pensava comigo: quem ali naquela casa podia ter gostos tão refinados assim?), ela me revelou que tudo aquilo era do meu pai e que ele chegou a estudar inglês e francês! Aí a minha ficha caiu! Mas foi na hora! Para mim ficou muito claro, ao ver aquelas obras e refletir sobre os gostos requintados do meu pai, que ele sendo um homem pobre, trabalhando como pedreiro, cheio de sonhos e ambições, almejasse tanto estudar e se tornar um homem erudito. Meu pai achava lindo ouvir filósofos e grandes pensadores darem entrevistas. Tudo o que ele mais queria era ser um homem culto. Mas infelizmente ele não conseguiu tudo o que um dia sonhou. Embora para mim ele sempre será o meu super-homem. O único problema na vida do meu pai foi o álcool, o álcool que dificultou a nossa relação entre pai e filho. Mas quando sóbrio ele era um homem extraordinário e o foi na minha vida. Devo a ele tudo o que aprendi. E hoje compreendo que quando ele teve um filho que demonstrava tanto gosto pelo conhecimento quanto ele, inconscientemente ele projetou isso. Quando finalmente elaborei tudo isso estava com exatos dezoito anos. E logo ele morreu. Eu já estava mais em paz, eu o amava, sabia que ele me amava, sabia que tudo o que ele queria era que eu fosse feliz. E o corte da castração já havia sido feito também.

A conclusão desse jogo perigoso

Eu sei que essa minha história pode gerar inúmeras reflexões. Inúmeras interpretações. Então deixarei aberto para que cada um leia e preencha as lacunas à vontade. Só que para alimentar ainda mais a sua reflexão e a sua interpretação gostaria de trazer mais alguns pontos para você pensar.

  1. Será que somos de fato folhas em branco ao nascer e tudo o que nos tornamos está a cabo dos nossos cuidadores? Nada mesmo vem de fábrica? Pergunto porque segundo os meus pais, desde de muito novo, eu já demonstrei impulso por autonomia, independência e um gênio muito forte. Sempre quis resolver tudo sozinho, do meu jeito, como se eu nunca os deixasse agir como pais.

  2. Por outro lado, será que a presença de uma mãe gélida e distante ou pela interpretação de uma criança de não poder atrapalhar a sua mãe ocupada, faria essa criança amadurecer bruscamente?

  3. Será que tive uma criação difícil porque interpretei assim ou será que interpretei assim porque tive uma criação difícil?

  4. Será que meus pais foram exatamente assim e tudo aconteceu como estou relatando nessa história? Minha mãe você não conhece. Meu pai já morreu. Você só tem a minha versão dos fatos. E hoje sabemos, através de estudos sobre a memória, que quando lembramos de algo e descrevemos uma lembrança, em torno de 50% são pontos possivelmente aumentados ou inventados. Eu posso jurar que tudo aconteceu nesse relato, não estou mentindo. Não objetivamente. Não conscientemente. Mas trabalhamos com o inconsciente também. Então é possível – inconscientemente falando eu ter escolhido a história que melhor me favorece?

Aqui entramos no ponto que eu queria chegar. A quem importa se isso é verdade ou mentira? Psicanálise não trabalha com A verdade – assim com letra maiúscula. Tampouco com ideias de certo ou errado. Por isso é controverso falar em cura na psicanálise. Se a psicanálise não sabe os limites – nem faz questão de saber – do que é normal e do que é doença, como podemos falar em cura? Talvez em curas – no plural. Assim como podemos falar em psicanálises – no plural. Assim como podemos falar em normalidades – no plural.

Se eu estivesse relatando esses fatos da minha vida num divã, você acha mesmo que o analista estaria preocupado se essa história é com h ou e?

Isso pouco importa. Como pouco importa se a astrologia é ciência ou pseudociência. Se estou diante de uma pessoa que me diz que ela age como age porque é libriana, eu não paro para pensar se  acredito ou não em signos, se é ciência ou não astrologia, o fato é que a pessoa acredita nisso. É mais interessante trazer isso para a conversa para entender o que, para ela, é ser “libriana”. É material analítico. Tudo o que é dito e não dito é material analítico. Seja verdade, seja mentira. E o bom analista é aquele que busca – e que consegue – de fato ser uma tela em branco. Ele se despe de si mesmo e apenas espelha.

Aqui vai o meu sincero e humilde conselho a você. Qual é a melhor interpretação para essa minha história? A que eu relatei. É a que eu acredito que aconteceu. É essa que ME FAZ DORMIR À NOITE. Esse é o objetivo da psicanálise. Fazer o indivíduo se sentir bem habitando o próprio corpo. Sem tantas somatizações. Lidando bem com as suas neuroses. Os demônios não vão deixar de te assombrar, mas você pode aprender a lidar com eles. Fazer amizade. Negociar. Chega um determinado momento em que você precisa ressignificar. Ressignificar é dar um novo significado. Qual é o melhor significado? É aquele que te faça deitar a cabeça no travesseiro à noite e dormir em paz, como uma criança. É isso.