Imagino que pelo título
curioso, talvez até provocativo desse texto, deva fazer você se
perguntar qual seria a relação possível entre um estudante e
um bêbado. A ideia era colocar um título provocativo que chamasse a atenção, mas tem sim
uma relação... Evitarei rodeios e vamos direto ao texto.
Por
volta dos meus vinte anos, iniciava a minha primeira graduação em
Administração, quando tive uma conversa muito interessante que me
lembro até hoje. Só um parênteses aqui: sempre presto muita
atenção às conversas – não só as que tenho, como também as
que ouço de outras pessoas –, as palavras que me chegam, como
chegam, por quem, de que formas, sob quais contextos, como me
mobilizam emoções e provam reflexões... Essa é uma das razões de
eu gostar de psicanálise, pois são as palavras, a escolha ou não
delas e como se encaminham às associações significativas
seguintes.
Essa
pessoa com quem conversava na época já estava na sua segunda
graduação e nós viajávamos juntos diariamente para a faculdade –
era uma longa distância. Um dia lhe perguntei se a faculdade a
mudara de alguma forma e ela me respondeu que sim; não especificou
quais foram as mudanças, mas concluiu que eu também mudaria ao
longo do meu curso, principalmente após o primeiro ano. E continuou que talvez
eu não notaria isso, mas certamente aqueles com quem convivia mais
próximo, como familiares, amigos e colegas de trabalho perceberiam a
mudança no meu comportamento. Naquela noite, fui e voltei o caminho todo pensando
sobre isso e resolvi então começar uma observação; não só pessoal, mas também nos meus amigos, nos meus colegas de curso, nos meus
colegas de faculdade que iniciavam essa jornada comigo. E ano após
ano ia nos analisando com o objetivo de verificar essa teoria. De
fato, todos nós mudamos significativamente ao longo dos anos. A
minha tese para esse fenômeno é a de que conhecimento é
poder e o poder transforma, inconscientemente.
Por
exemplo. Há mais de uma década trabalho em ambiente organizacional
em recursos humanos, tenho inúmeras amostras desse fenômeno.
Indivíduos que antes não tinham qualquer responsabilidade de
liderança que quando lhe dada a função de líder, eles se revelam.
Sem entrar no mérito de melhor ou pior, isso seria um julgamento de
valor, todavia esses sujeitos se transformam. O que de mais reprimido
possuem vem à superfície. Quem trabalha ou já trabalhou em RH já
viu essa dinâmica acontecer. Foi só dar um cargo de
liderança àquela pessoa que ela se transformou.
Outro
fenômeno muito comum, nessa mesma linha, é quando um sujeito
ascende socialmente, ou seja, quando uma pessoa muda de classe ou de
posição social. Me lembro daquela famosa frase “dê dinheiro a um
homem e vai conhecê-lo”. Acredito nisso. O dinheiro, assim
como o conhecimento e a liderança promovem uma sensação de poder
ao sujeito. Aqui neste ponto que entro para explicar esse
fenômeno psicológico observado, essa “transformação”.
A minha
aposta é a de que o poder está
intimamente ligado ao inconsciente.
Quando uma pessoa se empodera, seja adquirindo conhecimentos, seja
ascendendo socialmente, seja exercendo uma liderança, aquilo que de
mais inconsciente ela tiver vem à superfície. O inconsciente se
faz presente de alguma forma. A minha tese é a de que o poder
contraído dá subsídios ao sujeito [do inconsciente] de reaver, de
advogar, de reivindicar o seu desejo – mesmo sem
consciência disso. Nas menores palavras, nos pequenos gestos, em micro-ações o desejo do sujeito se faz presente, mesmo à sua
revelia. Sem que se dê conta muitas vezes, sua forma de falar, de
olhar, seu jeito, seus trejeitos, sua postura, seu comportamento entregarão, não precisamente quem essa pessoa é, mas muito além disso: o que ela quer!
Vou
contar uma das histórias que lembro sempre com muita atenção.
Trabalhava como analista de recursos humanos numa empresa e havia uma
colaboradora que era muito tímida e reservada. Ela era uma excelente
profissional, trabalhava com atendimento direto aos clientes e a
elogiavam muito; sempre pontual, disciplinada, organizada, educada e
muito receptiva. Todavia, ela tinha uma imensa dificuldade de
conversar com as outras pessoas, principalmente com superiores.
Quando a sua gestora precisava conversar com ela para dar alguma
instrução, era começar a falar e as lágrimas já começavam a
cair. Não eram críticas nem feedbacks negativos, pelo contrário,
até quando recebia elogios ela se desconcertava emocionalmente e
chorava. Em reuniões, sessões de brainstorming, ela não erguia a
mão, nunca tomava a palavra, não tinha opiniões sobre nada, com
tudo ela concordava. Muitas
vezes nós percebíamos o quanto podia ser difícil algumas
circunstâncias e ela tinha abertura para trazer as suas percepções, suas dificuldades, mas não fazia. Mesmo quando eu tentava conversar com ela – tenho bastante habilidade nisso – ela chorava copiosamente. Tinha percebido que não era algo com o meio, era uma característica pessoal dela.
Pois
bem, passados vários meses, um dia chega à minha sala a notícia
que essa colaboradora mudaria de horário, porque iniciaria uma
faculdade. Eu que já conhecia esse fenômeno que defendo nesse
texto, disse a sua gestora na época: “agora conheceremos melhor
essa colaboradora”. Me lembro bem quando ela me questionou o porquê
e só respondi o seguinte: “agora ela afirmará o seu desejo”.
Passados seis
meses, o setor dessa colaboradora estava fazendo uma reunião – da qual eu
participava – e quando perguntado se todos concordavam, eis que
alguém levanta a mão e diz: “Eu DISCORDO”. Era a colaboradora
em questão. Corri os olhos em direção a gestora, que já me olhava
atentamente... Passados outros seis meses, a empresa fazia uma
convocação para trabalhar num feriado e essa colaboradora que até
então nunca dissera NÃO para a empresa, desta vez se recusou a vir
trabalhar. Estava passando pelo corredor, quando pude assisti-la
explicando à sua gestora, de forma assertiva olhando nos olhos,
falando em alto e bom tom, as razões pelas quais não viria
trabalhar. A gestora me olhou, abaixou a cabeça e deu um sorriso de
canto de boca, talvez relembrando nossa conversa.
Nesse dia, a
gestora veio à minha sala conversar e a questionei: “Ela ainda é
boa colaboradora?!”. Ela respondeu, “sim, continua sendo uma das
melhores da minha equipe, mas como você disse um dia 'ela afirmará
o seu desejo', agora ela se
coloca, está impondo seus limites.” Não pude
concluir a conversa sem perguntar: “E isso é ruim?!”. Ela
respondeu com chave de ouro: “Pela pessoa que sou, que gosto de
ser, a minha liderança sabe lidar com isso; outro gestor não sei!”.
Esse
fenômeno observei em muitos colaboradores, ao longo de mais de uma
década. O colaborador começa a fazer faculdade e o conhecimento
adquirido vai o empoderando e com isso ele ganha maior força para
pleitear o seu desejo. Assumir novas posturas. Ter maior
posicionamento na vida. Começa a se delinear melhor uma
identidade dessa pessoa, naquele momento de sua vida. Acho isso
fantástico de assistir, de conviver, de aprender a lidar, porque
envolve a capacidade de lidar com as diferenças. E diria mais,
envolve a capacidade de aprender com as diferenças. O conhecimento é
extremamente poderoso por conta disso. Ele promove a transformação das pessoas. Note por exemplo que, quando se instala uma ditadura num
país, uma das primeiras coisas que se procura fazer é retirar ao
máximo o pensamento crítico do ensino. Disciplinas como Filosofia e
Sociologia sempre foram alvos dessa censura. Hoje em dia o pensamento
crítico perpassa todas as
disciplinas, mas é inegável que em alguns cursos, principalmente de
Humanas, esse critério é forte.
Bem,
mas você deve estar se perguntando em que ponto entra o bêbado
do título desse texto. E agora vou fazer uma amarração disso, indo por outro caminho. Existe um jargão dentro da psicologia, mais
precisamente na psicanálise, que diz assim, a bebida dilui o
superego. Para fins didáticos,
o superego é aquela instância moral do indivíduo que freia os seus desejos; são as leis, os valores, os códigos de conduta
interiorizados pelo sujeito, advindos dos seus pais, dos pais dos
seus pais, que norteiam o seu comportamento. Imaginariamente veja o superego como sendo uma sela de um cavalo ou como
sendo uma barragem que impede um fluxo livre dos desejos. Mas isso
acontece com uma pessoa alcoolizada? A resposta é não, o indivíduo age livremente.
Essa represa que age como um censor da personalidade, na embriaguez fica afrouxada, ocorrendo assim
o fluxo livre das pulsões. Por isso é muito comum a pessoa
alcoolizada ter comportamentos muito diferentes daqueles que ela costuma
ter quando sóbria. É comum também aquelas desculpas de que não
se queria fazer algo, que foi a bebida que provocou determinado
comportamento, que o que foi dito não era verdade. Mas a verdade é que a bebida só
afrouxou a censura do indivíduo, e como o álcool é um depressor do sistema
nervoso central diminuiu a capacidade crítica
do sujeito, mas a
bebida não lhe gerou o desejo!
A pessoa embriagada faz e fala o que deseja, mesmo sem plena consciência disso.
Esse
texto busca apontar algumas circunstâncias em que há um contato com os nossos desejos e como isso pode acontecer
inconscientemente. Pode acontecer através da obtenção de poder advindo de inúmeras formas, como podemos ter contato com os
nossos desejos a partir da diluição do superego
quando alcoolizados. Isso não significa também que precisamos encher a
cara para conhecer o que rola no nosso inconsciente. Embora cada um é livre para fazer e se dar depois a desculpa que
quiser.
Numa
análise por exemplo, o que um psicanalista faz é promover um
setting onde haja uma associação livre por parte do
paciente. A associação livre é quando o paciente é convidado a falar
livremente. A aposta psicanalítica é que a partir dessa fala livre, ocorrendo
em alguns momentos afrouxamentos da censura dessa pessoa, escape
no seu discurso materiais do seu inconsciente. Vestígios do seu
desejo. Esses vestígios sinalizam o circuito pulsional, os caminhos
do seu desejo. A técnica psicanalítica visa o afrouxamento da
censura do sujeito, mas diferente do álcool que deprime o sistema
nervoso central e provoca um rebaixamento das funções executivas da
pessoa, numa análise ocorre o contrário, o sujeito permanece
consciente. Freud abandona a
hipnose por isso, porque ela promove um rebaixamento da consciência do indivíduo fazendo sugestões, quando a análise promove o contrário, análise não tem sugestão. Freud também percebe que após
voltarem do transe hipnótico, os sintomas dos pacientes voltavam.
A única sugestão aqui é pense nas associações trazidas nesse texto. Você já tinha
notado que as pessoas se transformam, ou se revelam, ao adquirir
conhecimento, uma função de liderança ou ascender socialmente?
Você que está estudando ou que já estudou uma graduação, nota alterações no seu comportamento? E no comportamento
das outras pessoas? Você que tem o hábito de tomar bebidas alcoólicas, nota alterações no seu comportamento quando
alcoolizado? E no comportamento das outras pessoas? Você já fez,
faz ou já pensou em fazer análise algum dia? Por quê?