“Quem come do fruto do conhecimento, é sempre expulso de algum paraíso”. Melanie Klein
O texto que apresentarei hoje acredito que ficará um pouco longo, então já peço um pouco de paciência para lê-lo até o fim porque ele será bastante interessante. Como sempre procurarei ser transparente e sincero ao relatar alguns episódios da minha vida e características minhas, até porque esse é um blog pessoal e um dos motivos ao qual ele se propõem é justamente dividir experiências e aprendizados que em algum momento adquiri, na pretensão de que isso desperte em vocês reflexões ou motivos para refletirem a própria vida. Não sou mestre nem exemplo de nada para ninguém, nem costumo ir por essa linha, só gostaria que acreditassem sinceramente quando escrevo isto: pessoas mais inteligentes buscam aprender com os erros dos outros. Não que vocês não possam errar, fiquem à vontade para isso, o erro é até bem democrático nesse ponto (rs), mas procurem pensar o próprio comportamento, isso ajuda muito. Espero também não ter aqui uma escrita técnica ou teórica demais, o objetivo não é esse, mas talvez em alguns momentos precisarei referir aqui em que me baseio para escrever o que penso. Mas procurarei fazê-lo didaticamente.
Não sei se vocês já repararam que temos uma tendência a idealizar a vida e as nossas relações e no quanto isso é nefasto não só aos nossos relacionamentos mas principalmente para a nossa saúde mental de um modo geral, porque inevitavelmente ao agir assim parece que ficamos cindidos, distantes da realidade, quase paranoicos mesmo. Esta será a tese central para este texto: não nos relacionamos com a vida, mas com a ideia que temos da vida e nas nossas relações sofremos – além do necessário! – porque também não nos relacionamos com as pessoas com quem convivemos, mas com a ideia que fazemos dessas pessoas; e quanto mais próximos de uma ideia, mais distantes ficamos de enxergar a totalidade dos objetos. Quem conhece um pouco da obra de Melanie Klein já sentiu aqui o cheiro do seu pensamento e sim, são as ideias dessa psicanalista das relações objetais que tomarei aqui de referencial teórico.
Em dado momento da minha vida reparei que na minha história pessoal sempre me decepcionava com as pessoas; de familiares, amigos, a colegas de trabalho; até com determinadas coisas, como trabalhos, cursos etc. Havia na minha vida então muito forte uma espécie de padrão que havia notado: me aproximava de algo, ou de alguém, construía uma relação idealizada, até em algum momento me frustrar com isso, me sentindo perseguido, traído ou decepcionado. Então quando isso acontecia rompia o contato, responsabilizava os outros e seguia com a minha vida, mas sempre nesse enredo de decepção em cima de decepção. Só que a medida que passei a estudar sobre psicologia, psicanálise e principalmente começar a minha própria análise fui ganhando mais consciência desse mecanismo. Fui me dando conta desse modus operandi nas minhas relações, percebendo que ele seguia o mesmo script: Aproximação-Idealização-Frustração. Decidi prestar mais atenção nisso, passei a olhar de perto essas dinâmicas relacionais e comecei a me indagar. Será que todas as vezes que me sinto frustrado com algo é de fato responsabilidade da outra parte isso acontecer? Vou responsabilizar sempre aquilo que está fora de mim, em todas as vezes que sentir algo que só esteve em meu controle sentir?!
Concordo aqui que não somos responsáveis por aquilo que os outros nos fazem, mas decidir qual resposta emocional daremos a isso é responsabilidade nossa. Não controlamos nossas emoções, mas podemos escolher – conscientemente ou não! – alimentar esse processo natural. Quero dizer que quando uma pessoa nos faz algo que nos faz sentir raiva por exemplo, não temos como evitar o surgimento da raiva porque as emoções brotam naturalmente; agora o que fazemos com essa raiva, se alimentamos a emoção ou se prestamos atenção aos sentimentos para fornecer uma resposta inteligente é conosco, não podemos colocar isso na conta do outro. Aquilo que fazemos com o que sentimos é de responsabilidade nossa e isso tem um nome: Inteligência Emocional.
Então, o primeiro ponto nesse padrão notado no meu comportamento que busquei compreender foi a inteligência emocional. Entender que não tenho o controle de não me decepcionar, aceitando que frustrações fazem parte das nossas relações, mas assumindo que o meu comportamento a partir de qualquer frustração é minha responsabilidade. Pôr isso na conta do outro não só é improdutivo, como denota imaturidade. E não foi nada fácil ao meu ego admitir isso... Queremos estar sempre certos. No entanto, pensa bem, quem está cem por cento certo, em cem por cento das situações?! Quando nos desentendemos com uma única pessoa, de fato a responsabilidade pode ser desta pessoa; agora quando sempre nos desentendemos, e com várias pessoas, serão elas sempre as responsáveis por isso?!
Aqui entrou o segundo ponto observado nesse meu padrão de comportamento que me levou a uma reflexão ainda mais profunda sobre mim mesmo que é o seguinte: o porquê da frustração? Será que de fato são as pessoas e situações que nos decepcionam ou são as idealizações e expectativas que temos que fazem isso conosco?! Novamente vamos colocar na conta do outro idealizações e expectativas que são nossas e que estavam somente sob o nosso controle cultivar?! Isso não parece justo, nem maduro, nem lógico. E novamente constatar e admitir isso foi um golpe forte no ego... Como disse, queremos estar sempre certos. Aos poucos fui percebendo como as vezes agimos – até inconscientemente! – sem maturidade, de forma mesmo infantil. Segundo a psicanalista Melanie Klein, essa dinâmica dicotômica que temos em nossas relações se origina nos primeiros estágios de vida e ela deu o nome de posição esquizoparanoide. “Esquizo” de dividido e “paranoide” de se colocar numa posição persecutória (de perseguido). Ela então traz em sua obra uma impressão que o bebê sente de persecutoriedade pelo seio da mãe, o objeto com o qual ele tem o primeiro contato.
Como disse, não pretendo professorar teorias aqui, o objetivo não é esse, contudo acredito que se faz necessário trazer, de forma breve, como se origina esse fenômeno na nossa personalidade, segundo M. Klein. De acordo com a psicanalista, o primeiro contato que o bebê tem é parcial, ou seja, é com o seio da mãe, não com a mãe inteira. Isso significa que o bebê se relaciona com o seio que ora o alimenta, saciando-o completamente (“seio bom”), ora o frustra quando não dá o que ele quer (“seio mau”). Os medos persecutórios da criança são impulsos oral e anal-sádicos projetados (“identificação projetiva”) ao seio da mãe. Daí o nome dado a essa posição de esquizoparanoide. O que isso significa? Como a criança não dá conta de perceber a sua própria destrutividade – que já existe! – ela então projeta seus impulsos agressivos ao seio da mãe, passando assim a acreditar que este a persegue e a quer destruir. Esse é um processo natural que toda criança passa até que consiga integrar o ego (o eu) e o objeto externo (a mãe).
Quando no avanço do desenvolvimento da criança, ela entende que o mesmo seio que a frustra também a gratifica e ela se torna consciente dos próprios impulsivos agressivos em relação à mãe, ela agora percebe a inteireza do objeto externo (mãe/seio) e pode introjetar “seio bom e seio mau”, evoluindo a idealização do objeto. A idealização é o mecanismo que o bebê desenvolve em defesa contra a percepção que ele tem de sua própria agressão à mãe; processo que vem acompanhado de sentimentos de culpa e medo (ansiedade depressiva) de vir a perder o objeto amado. Melanie Klein denominou esse período do desenvolvimento humano de posição depressiva. O que isso significa? Quando o bebê já se dá conta que a mesma mãe que o alimenta também o frustra e compreende que ele dirige afetos distintos (amor e ódio) ao mesmo objeto, isso proporciona à criança passar de uma posição "fragmentada" para uma posição "integrada", desenvolvendo a capacidade de amar e de reparar os objetos externos.
Agora, qual a relação dessa teoria psicanalítica com o texto de hoje?
Total. Segundo a psicanalista Melanie Klein, ela denominou esses estados do nosso comportamento em sua obra de posições justamente porque não se trataria de fases, pois fase dá a entender algo que acontece em dado período que tende a passar; quando nosso psiquismo possui um funcionamento dinâmico, assim essas posições continuam presentes em diversos momentos pelo resto da nossa vida! Ora ou outra transitamos de uma posição esquizoparanoide para uma posição depressiva, embora predomine esta última quanto melhor foi um desenvolvimento saudável, quando criança nesse período.
Estamos na posição esquizoparanoide quando negamos a própria raiva e projetamos [nos outros] aspectos que consideramos ruins e destrutivos – mas que são nossos; quando somos incapazes de enxergar e validar o outro; ou quando idealizamos o outro, porque nesse caso também não estamos enxergando-o – estamos enxergando somente aquilo que queremos ver; quando somos punitivos; quando temos dificuldade de suportar a própria angústia; quando não aceitamos ser excluídos ou reagimos movidos por inveja e ciúmes – por vezes inconscientes; quando adotamos uma postura de que podemos tudo – movidos por um sentimento de onipotência. Conseguem perceber o quanto é fácil estarmos nessa posição esquizoparanoide? Como dizem: quem nunca?! Quando estamos nessa posição adotamos um comportamento infantil e uma percepção dicotômica, polarizada e reducionista sobre as coisas. Bem ou mal; bom ou ruim; certo ou errado; verdade ou mentira. Nunca tem meio termo. É 8 ou 80. Preto ou branco, não existe o cinza. Ou melhor: cinzas! – já que entre o preto e o branco há uma gama de tonalidades. Quando escolhemos – inconscientemente até – estar nessa posição é difícil conviver conosco, porque ora adotamos uma postura de vítima que é perseguida pelos outros (lembra da persecutoriedade?) e introjetamos só o “seio bom” e o “seio mau” fica para o objeto externo: somos perfeitos, o outro imperfeito; ora fazemos justamente o contrário, introjetamos só o "seio mau" e o "seio bom" fica para o objeto externo: somos imperfeitos, o outro idealizado.
Durante muito tempo da minha vida escolhi – inconscientemente –
viver nessa posição, mesmo
recebendo ora ou outra alguns feedbacks externos. “Você se acha
perfeito”. “É muito moralista”. “Gosta de dar
lição de moral”. “Da sua boca só críticas”.
“E cadê o elogio?”. Isso quando o feedback não era
velado e eu podia ler nas entrelinhas. Por mais que os feedbacks
externos me ajudassem a ganhar maior consciência desse padrão de
comportamento, sabe o que mais me ajudou a mudar? Quando comecei a
desconstruir [processo iniciado em análise] a imagem que criei, a
duras penas, de alguém que tinha que ser perfeito; encarei o medo
que sentia de não o ser e a raiva – inconsciente – que tinha,
mas negava, por ter que manter essa imagem de perfeição. Melanie
Klein defende em sua psicanálise que não adianta trabalhar um
sintoma sem trabalhar ansiedades e medos que levaram ao seu
surgimento. Precisamos entrar em contato com os nossos afetos mais
destrutivos, como a agressividade, o ódio, a raiva, o ciúme, a inveja etc. Todas as pessoas que colocamos num pedestal e idealizamos precisamos estar conscientes de suas falhas, de suas fraquezas, de seus defeitos – isso é respeito conosco. E aquelas pessoas que odiamos e apenas criticamos precisamos estar conscientes também de suas virtudes, de suas potencialidades e validarmos isso – isso é respeito com o outro. Somos todos objetos inteiros, não partes! Assim como tudo na vida; os nossos problemas e dificuldades também contém lições e nos permitem superações. Nada é uma coisa só e a vida se torna mais rica e complexa quando aprendemos a perceber e a validar todas as suas partes – como já dizia os princípios da Psicologia da Gestalt: "O todo é maior do que a soma das partes".
Alcançamos então a posição
depressiva* [*apesar do nome ter uma conotação negativa,
na obra de Klein esse significado é diferente] quando superamos uma postura
maniqueísta – de enquadrar tudo em polaridades de modo absoluto,
sem restrições – e conseguimos enxergar e validar o outro.
Estamos nessa posição quando aceitamos a dependência desse outro
em nossa vida; quando aceitamos ser excluídos, perder e não sermos
perfeitos; quando somos menos punitivos; quando nos sentimos potentes
– ao invés de onipotentes; quando adquirimos a capacidade
de fazer lutos – reais e simbólicos (isso é muito
importante na vida!); quando aceitamos o ódio e a agressividade,
assim como toda a gama de afetos existentes dentro de nós –
alcançando assim condições de utilização saudável desses afetos
(mecanismo de sublimação). Conseguem perceber o quanto é mais
difícil estarmos nessa posição depressiva? Quando estamos
nessa posição adotamos um comportamento maduro e uma percepção
complexa e integrada dos objetos externos. Hoje me percebo mais nessa
posição – mas isso faz parte de um longo processo. E um processo que recomendo a você ganhar também mais consciência.
"Quando, através da análise, chegamos aos conflitos mais profundos de onde surgem o ódio e a ansiedade, também encontramos lá o amor." Melanie Klein