domingo, 26 de setembro de 2021

FEMININO & MASCULINO

Obra de Sergey Galanter

     Eu não sei vocês, mas costumo sempre observar a sociedade, os movimentos sociais, e costumo prestar atenção aonde o fluxo se encaminha. Me lembro que até cheguei a prestar Ciências Sociais quando mais novo, tamanha era a paixão por esse assunto. E ligando à Psicanálise, Freud também se interessou pela sociedade no desenvolver de sua teoria. De fato, seria impossível pensar a Psicanálise sem pensar a sociedade da época. E refletindo sobre isso, se pensarmos que a sociedade vitoriana de Freud difere bastante de nossa atual sociedade: como estaria a Psicanálise hoje? Embora tangencie por aí, o intuito da postagem de hoje não é bem esse. É apenas dividir algumas reflexões que tenho feito ultimamente. Sem qualquer pretensão outra, além de pensarmos.

      Quando observo a História, vejo que o masculino sempre prevaleceu no poder. Não falo aqui de gênero. Tampouco pretendo reforçar estigmas em relação a isso. Mas se pensarmos que o homem é um ser com um órgão sexual voltado para fora, enquanto o órgão sexual da mulher é voltado para dentro, só a partir disso já poderíamos refletir bastante. Assim o homem teria uma maior tendência a características de impulsividade, de ataque, de desbravamento. E um poder talvez mais explícito. Enquanto a mulher teria uma maior tendência a características de acolhimento, de nutrição, de gestação. Um poder talvez mais sútil, e por vezes oculto.

      Ao longo da História assistimos então o masculino subjugar o feminino quando pensamos em poder. O poder sempre se concentrou no masculino. Assim as sociedades elegeram seus líderes. O macho alfa do grupo. Este seria dotado de toda a responsabilidade, do controle e das decisões sobre a vida de cada membro do grupo. O poder era centralizado na sua figura. A isso se deu o nome de estrutura piramidal. Piramidal porque assistimos isso já com os egípcios, na figura do faraó. Uma única pessoa, na ponta de uma pirâmide, que detinha o poder – divino ainda! – sobre a vida de todos os que vinham abaixo. Assistimos esse modelo de gestão também na Grécia Antiga, que apesar de ser o berço da democracia, deixava as mulheres de fora das decisões da polis. Esse modelo prevaleceu nas empresas, na Igreja, dentro dos lares familiares... O chefe. O Deus. O pai. Mas hoje cada vez mais estamos assistimos a crise desse modelo piramidal que está vindo abaixo. Observo uma crise que na verdade sinaliza a uma nova forma. É como se a estrutura tradicional de poder – um poder até então masculino – estivesse se esfacelando literalmente.

      Nas empresas é cada vez mais comum assistirmos as mulheres – ou melhor: o feminino – tomar à frente nas decisões estratégicas. A gestão das empresas está mais “feminina”. Hoje é muito mais comum entrar nas decisões estratégicas corporativas assuntos como saúde e qualidade de vida no trabalho; uma gestão colaborativa, humanizada e holística (fatores biopsicossociais que impactam a vida dos colaboradores). Isso tem muito a ver com gestar e nutrir – que é da ordem do feminino. E pouco importa se à frente dessas organizações terá um homem ou uma mulher, a questão está na capacidade do indivíduo de acolher e de nutrir o seu grupo para obter dele o melhor rendimento. Não é filantropia. Ainda é bussiness! Mas o olhar está bem diferente do que já foi um dia…

      Nas famílias hoje em dia observarmos muito mais notadamente a saída da figura do grande pai. Aquele que dava a última palavra e todos na mesa consentiam, pois ele tinha a voz de comando. Hoje as famílias são compostas de variados formatos e não cabe mais o poder centralizado nas mãos de uma única pessoa. Os membros opinam, reivindicam e há mais espaço às discussões e ao debate.

      Mas como toda transição, obviamente essa também tem as suas dificuldades. E observo dois fenômenos principais acontecendo. O primeiro é um feminino ressentido. Vingativo. Quase tirânico. Depois de séculos de subjugação e massacre, assistimos hoje um feminino no famoso movimento pêndulo. O que antes foi amordaçado e descreditado, agora que se desacorrentou, liberou uma pulsão de vida tão forte que beira pulsão de morte. Movimentos de destruição. Mulheres fortes, empoderadas, donas de si, buscando escalar a antiga pirâmide, como os homens fizeram um dia, e lá se estabelecendo – sozinhas! E no menor sinal da aparição do fantasma da subjugação masculina vem à tona movimentos de extrema fúria – justificados e legítimos! Mas o movimento do pêndulo mostra que ao levarmos numa posição extrema, quando soltamos ele irá ao seu extremo oposto até encontrar o seu eixo. Jung dizia que mais cedo ou mais tarde, tudo se transforma no seu oposto”.

      O outro fenômeno que observo é um masculino que não está sabendo se encontrar. Homens cada vez mais perdidos num mundo cada dia mais feminino. É curioso que esse fenômeno tem gerado no masculino dois cursos, bem polarizados também. De um lado um masculino com uma feminilidade bem acentuada. É observável que entre as novas gerações há meninos bastante femininos, delicados, com uma feminilidade bem acentuada. Usam maquiagem, pintam as unhas, trajam vestidos. Costumes até então mais vistos dentro do universo feminino. E não faço aqui qualquer julgamento de valor sobre isso. Trago um fato observável. E isso também não tem absolutamente nada a ver com a orientação sexual propriamente dita. Apesar de que as novas gerações já demonstram uma relação com a sexualidade mais fluída, aberta, menos classificativa.

     Por outro lado, existe também um masculino ressentido. Aquele que perdeu espaço, e que anseia descontroladamente retomar o poder! E está difícil para ele assumir que o mundo mudou. A roupagem mudou. A linguagem mudou. As relações são outras. E isso exige, pelo menos, novas formas de enxergar o mundo daqui por diante. Uma abertura ao novo e abrir mão do que ficou para trás. Como disse anteriormente, a estrutura piramidal está caindo e não adianta ficarmos choramingando sobre os escombros. Ao passo que uma nova estrutura está surgindo aí, que assim como a rede social, é em rede! Conectada. Cadeias de comando. Poder(es) horizontalizado(s). E isso muda radicalmente nossa maneira de pensar o mundo. O líder. O Grande Pai. E isso vale às religiões também. Observo cada vez mais uma Igreja Católica, por exemplo, se abrindo, revelando um Deus mais humanizado e aberto do que outrora, quando assistimos um Deus tirano e castrador.

      Vejo desafios pela frente. Mas também muitas oportunidades de avanços sociais. Não estou aqui para julgar o que é certo ou errado. Penso que o que é certo ou errado é o que vale a cada um. Cada um tem a sua vida e a vive como bem entender! Quero apenas nos fazer pensar com essas reflexões trazidas. Segundo os orientais, tudo na natureza é dual. Possuímos dentro de nós energias yin e yang (feminino e masculino). E não há subjugação nem controle, são forças que se complementam! Penso que hoje o feminino precisa aprender a lidar com o poder que agora claramente está em suas mãos. E o masculino precisa encontrar o seu lugar em meio a esse universo cada vez mais feminino. E ambos encontrarem pontos de equilíbrio, e de intersecção. Mas enquanto isso não acontecer presenciaremos um feminino masculinizado cada vez mais empoderado, e sozinho. E um masculino feminizado cada vez mais aberto, e perdido. Até que esse movimento pendular possa encontrar o seu eixo.

E você, como enxerga o mundo de hoje? Que tal pensar sobre isso?

sábado, 4 de setembro de 2021

A SUA PENA EM NADA AJUDA

La Palude, de Roberto Ferri


     Dentro de todos nós existem emoções e sentimentos muito intensos, e por vezes devastadores. Quando criança não foi difícil perceber em mim logo cedo uma forte inclinação para me deixar levar por esses sentimentos mais vívidos. Tenho uma profunda curiosidade e um grande fascínio pelos impulsos mais selvagens e primitivos que nos abrigam a alma. Quis os conhecer em sua profundidade. Em outros momentos os dominar! Já me deixei ser levado completamente e senti o prazer e a dor advindos desses movimentose entendi também como é difícil distinguir uma coisa da outra. Já tentei também bloquear e conter tais impulsos em absoluto, de forma até severa, quando acreditei erroneamente ser capaz de fazê-lo, ou de suporta-lo mas não sem pagar um alto preço por isso.

     Meu interesse desde criança foi direcionado a tudo o que era obscuro. Isso era algo curioso até para mim, porque eu costumava sempre olhar na direção que ninguém estava olhando. Aos lugares que ninguém parecia querer olhar! Ser conhecido como aquele que fazia as perguntas certeiras, e por vezes inconvenientes, jamais foi fácil. Sempre tive facilidade em enxergar nas pessoas aquilo de mais cru. Tive de suportar – e compreender – os olhares à minha volta de inquietação. Às vezes de reprovação. E medo. Mas a mim ia ficando cada vez mais claro que se existia dentro de mim trevas e escuridão, nas outras pessoas haveria também de existir, pois não éramos frutos assim tão diferentes. A diferença é que eu me interessava em conhecer mais. Mergulhava de cabeça nas profundezas. Se tem uma característica em mim que me inquieta bastante é como consigo olhar o abismo e me atirar nele. Ou se torna um contato amistoso, ou de confronto. Mas é certo: vou de encontro. Movimentos assim sempre me assustaram. Mas percebo que esta seria a chave: tocar. Precisamos tangenciar nossas sombras. Seja qual for a forma utilizada para isso. Precisa apenas de coragem. Curiosidade. Dar a si mesmo a oportunidade de fazer a viagem interna mais reveladora de todas. E estar disposto e preparado ao que vier a partir dai. Sem expectativa, censura e julgamento. É interessante observar que quando nos soltamos somos dirigidos por um impulso estranhamente familiar que nos conduz...

      É engraçado, mas a mim está muito claro que após tantas voltas chegaria em algum momento à psicanálise. É como se eu já falasse essa língua. Sabe quando você conhece algo que estranhamente fez parte da sua vida desde sempre?! Quando passei a estudar de forma mais objetiva a psicanálise foi impossível não me assombrar com a exatidão que essa teoria explica todos os nossos comportamentos. Daí a expressão "Freud explica!". É verdadeiramente assombroso isso! É como se tudo hoje se encaixasse de forma desastrosamente perfeita (rs). E apesar desse sorriso em meu rosto enquanto escrevo essas palavras, advirto que não subestime o poder de uma boa análise. Conhecer mais sobre si mesmo, com maior liberdade e desprendimento pode ser bastante difícil. Intenso. Mas também real. Sabe quando você toma uma bebida um tanto amarga que de tão forte desperta todos os seus sentidos? E você ainda sente um gosto familiar? É mais ou menos assim. Você toca o chão. com olhos mais abertos. Mais neutros também. Enxerga o real tamanho das pessoas – que são como você. Entende algumas coisas... Sabe que jamais entenderá outras... E está tudo bem. 

     Ao abrir os olhos com maior consciência jamais poderá fecha-los novamente. Abre-se um novo mundo, que não é novo. É o real mundo. Em que somos mais terrenos, restritos e limitados do que fantasiamos. Mas isso também tira o peso. Através de uma boa análise passamos a viver mais dentro do que é humanamente possível. Talvez em última instância a psicanálise nos proponha nos conhecermos, ou talvez nos reconhecermos, nos tornar capazes de suportar uma condição humana tão invariavelmente animal. Somos movidos por impulsos selvagens e primitivos e, sim, sublimamos em benefício da construção de uma sociedade e da cultura. Mas advertiu Freud não ser possível sublimar tudo em absoluto. O desejo é e sempre será soberano. E ele sempre encontrará formas, das mais inusitadas, de se fazer presente. Aqui muda para mim radicalmente minha visão do homem e do sofrimento humano.

      Antes de buscar a psicanálise para estudar objetivamente, de estar em formação nesse per(curso) analítico e de me submeter também à análise, via o mundo e as pessoas de uma forma bem diferente. É impressionante a diferença de como eu via as pessoas e o sofrimento humano antes e como enxergo hoje. Acreditava ser possível ajudar o ser humano a não sofrer. Sempre buscava fazer de tudo para retirar a dor das pessoas. Me doía assistir as pessoas sofrendo e não poder ajudá-las. Apesar de achar estranho também elas se manterem naquela posição. Mas é claro que isso mostrava também mais uma demanda minha. Em todo caso, enxergava o ser humano como uma vítima passiva de circunstâncias muitas vezes cruéis, em que precisaria ser auxiliado a sair desse sofrimento que nada lhe trazia de bom. Não enxergava a possibilidade de ganhos por trás disso. Jamais pensei ser possível sentir prazer inconscientemente através de situações aparentemente improváveis.

     Apesar de muitos não gostarem e se ressentirem quando digo isto. Sinto dizer, mas vejo de forma completamente diferente hoje: Não somos vítimas em definitivo (dadas as devidas ressalvas, é claro). Mas hoje percebo que muitos de nossos sintomas são a forma mais radical que o nosso inconsciente se utilizou para evitar um mal maior. E isso não significa não se trabalhar sintomas, mas não perder de vista a razão e o porquê de sua manifestação, em dado momento. Apesar de acreditar que podemos em alguma fase da vida nos encontrar numa situação desvantajosa e sem qualquer recurso momentâneo para sair dessa, nunca é sem ganho. Em qualquer situação hoje perguntaria (se fosse comigo) o seguinte: o que me levou a esse caminho? Ou melhor: por que me levei (ou me deixei levar) por esse caminho? E no final das contas: por que ainda me mantenho nele?! Quais são meus ganhos?

      Pessoas tem escolha. Concordo em número, gênero e grau que nem tudo é fácil. Ou simples. Há diferenças. Algumas gritantes. Determinadas situações são complexas, complicadas e sair delas pode nos parecer algo impossível. Mas a reflexão a nos fazer é a seguinte: por que não mantemos a mão sob a chama de uma vela indefinidamente? Exato. Porque dói. Eu diria mais. Porque em algum momento a dor foi ainda mais intensa do que o prazer de manter a mão e o nosso impulso de sobrevivência foi soberano. Removemos a mão da chama mesmo contra a vontade. Confesso ser difícil assimilar, mas nós gozamos em todas as situações. Todas. Eu acreditava que as pessoas eram vítimas passivas da vida, porque eu me via assim! Mas queria também ser o super-herói que iria salvá-las. Então transferia uma criança interior necessitada minha aos meus relacionamentos e nutria o que se tornaria dinâmicas patológicas em que não ajudava ninguém, nem me ajudava. E isso é o que a maioria das pessoas fazem, na melhor das boas intenções. Mas entenda. Quem precisa de ajuda busca. Tira a mão da chama. Freud nos traz que quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda. Da mesma forma que nos adverte sobre a existência de ganhos primários e secundários. E da existência de pulsão de morte.

      Por mais difícil que seja lidar com isso, acredite. Não podemos ajudar, até que a própria pessoa precise realmente, porque nem sempre o querer (consciente) basta. Ela precisa estar preparada para receber ajuda. A verdade é que muitas vezes o analista pode querer mais a saúde do que o próprio paciente, uma vez que este se trai. Autoengana. Então, a pessoa precisa ganhar consciência dos ganhos primários e secundários com seus sintomas. E não sem antes constatar que a dor já é maior do que o prazer inconsciente de permanecer numa situação. O gozo lacaniano. Então, deixe-a gozar! Nada pode ser feito, até que todas as condições estejam favoráveis para isso e a pessoa esteja pronta a mudar. E é possível também, infelizmente, que esse momento nunca chegue. Paciência. Cada um abre mão daquilo que quer, e paga o preço que acha que pode. E digo mais. É o que digo a mim mesmo todos os dias desde que busquei esse caminho da psicanálise – ainda mais por ter essa inclinação a salvador da pátria. E juro que não é sadismo, nem conformismo, nem deixar de me importar. Mas aceitar a realidade. Porque segundo Hipócrates, pai da Medicina, "Antes de curar alguém, pergunte-lhe se está disposto a desistir das coisas que o fizeram adoecer".  

     Se está difícil aceitar o gozo de uma pessoa num determinado problema, do qual a mesma se queixa e nada faz para mudar, talvez quem precise de análise não seja ela. Mas você.

SÓ PODE AJUDAR QUEM ESTÁ BEM PARA FAZER ISSO. E SÓ PODE RECEBER AJUDA, QUEM ESTÁ PRONTO A RECEBÊ-LA.