"O que não me mata, me torna mais forte."
Friedrich Nietzsche
Eu era bastante jovem
ainda quando comecei a refletir sobre a existência de uma força interior que
era imprescindível adquirir para conseguir sobreviver na vida. É curioso quando
faço o exercício de olhar para trás e fazer uma imagem mental que me retrate
minha infância, porque é inevitável vir à mente uma paisagem inóspita, onde um
garoto que está sozinho procura sobreviver com os poucos recursos que possui
ali. Só que isso é uma inverdade, porque nunca vivi sozinho, meus pais sempre
estiveram presentes e nunca me maltrataram – pelo menos não fisicamente –. Mas
foi exatamente essa imagem que eu captei do ambiente familiar. Isso é o que
importa para o nosso cérebro: como fazemos a leitura. E essa percepção
significou duas coisas para mim desde então: minha infância teve de fato pouco
calor humano (amorosidade, atenção, compreensão por parte deles) e tive uma
interpretação disso pondo mais intensidade emocional talvez (distanciamento,
exigência, rigor, pressão, responsabilidade). Em miúdos, a minha infância foi
sim difícil, mas eu dramatizei ainda mais com a minha percepção. Nem tudo foi
como eu captei. E aí me veio a primeira questão crucial: tive uma infância
difícil porque li assim ou li assim porque tive uma infância difícil?
Quando constatei esse
mecanismo fiquei literalmente fascinado e assustado ao mesmo tempo. Então passei
a adquirir em toda oportunidade que tivesse mais e mais musculatura emocional, não
só para compreender melhor esse mecanismo que eu tinha, mas para ir lidando
melhor com as experiências que vivenciava. Eu sabia, e tinha muito claro isso,
que eu precisaria ser forte, em todos os sentidos. Dizia para mim mesmo: - “É
isso o que tem pra hoje? Ok, eu topo. E vamos ver até onde eu dou conta.” Estamos
falando aqui da percepção de uma criança ainda, mas incrivelmente foi
exatamente assim que eu encarei a minha criação – “eu tenho que dar conta”. Procurei
encarar as cobranças e os limites como um desafio pessoal onde eu teria que suportar,
sobreviver e vencer! E o primeiro oponente no jogo: meu próprio pai! Tive então
uma infância difícil recheada de momentos assim, conflitantes; momentos que
exigiram muito de mim, emocionalmente falando. Da minha infância até a
adolescência fui posto, ou me pus, em situações onde precisei suportar e saber
lidar com fortes conteúdos emocionais já dentro de casa.
Minha educação foi
rígida, ficou mais a cabo do meu pai, porque minha mãe era meio ausente, ela
tinha dois empregos, trabalhava dia e noite, então quem cuidava mais de mim era
o meu pai. Só que ele era severo, ditatorial e tinha uma forma de nos educar (o
que para ele era educar) agressiva. Fazia questão de ser respeitado, de ter sua
autoridade inquestionável, os seus “nãos” eram altos em bom tom, os seus
castigos eram rigorosos e a sua mão bastante pesada! Eu o odiava quando era
criança. Era difícil pra mim compreender como um pai podia ser tão general e
duro com os próprios filhos. Tinha tanto ódio e tanta raiva dele que às vezes
chorava de tanto que esses sentimentos eram intensos. Ele era muito difícil de
lidar, some-se a isso seu problema com o uso abusivo de álcool. Só que vamos
lembrar que nessa visão aqui eu era uma criança em desenvolvimento, precisava
de limites. Hoje sou adulto e consigo ver mais nitidamente que meu pai teve
também ótimos atributos. Meu pai nos amava muito, do seu jeito. Demonstrava
mais do que a minha mãe até. Ele era mais parceiro, mais companheiro; ele me
ensinou a andar de bicicleta; a correr; a desenhar; a cozinhar. Ele foi duro e
exigente porque provavelmente foi assim que foi criado (a gente só dá o que tem)
e ele sabia que a vida exigiria de nós tanto quanto ele. E ele sofreria demais
se nos visse sofrendo na vida na fase adulta. Tanto que ele chorava escondido quando
eu parava de conversar com ele por conta desse jeito autoritário. Isso doía
muito nele. É como se ele aceitasse pagar o preço de ser odiado pelo filho, por
conta da educação que ele julgava ser a melhor para mim. Volto a repetir: não
só o meu pai, a sua geração foi criada dessa forma mais rígida e ele só pôde transmitir
para mim o que foi passado a ele também. Não o culpo mais. Hoje eu o agradeço
na verdade. E aqui entra o objetivo
central desse texto: o desenvolvimento de uma musculatura emocional.
Existem dois tipos de
forças distintas: a externa e a interna. A externa é a força visível; aquela que
desenvolvemos quando fazemos atividade física; quando vamos à academia; quando corremos
no parque; quando conseguimos erguer mais peso e carregar melhor o nosso próprio
peso; quando hipertrofiamos e assim ficamos mais fortes. Ok, mas essa é uma força
física! E a “força psicológica”?! Como estaríamos com relação a essa força
interior? A força que é advinda dos “nãos” recebidos desde a infância; das
vezes que sofremos uma separação pelo falecimento de um ente querido; ou por
uma decepção; ou pela pressão advinda de entregar as demandas do trabalho; das expectativas
que os outros depositam em nós ou que nós mesmos temos a nosso respeito. Uma
força advinda da capacidade que desenvolvemos ao lidar com todos os sentimentos
e emoções, especialmente angústia, tristeza, solidão. Como está essa sua força?
Qual a musculatura emocional que você possui, já pensou sobre isso? Ou você dá sempre
um ‘piti’?!
Não vou fazer aquele
discurso batido de que a vida é dura, que ela é difícil, como se fosse um
pessimista pondo medo. Não é isso. Mas sinto dizer também que discordo do
oposto disso, de uma mentalidade vigente que prega que a vida é abundância, que
ela é maravilhosa e apenas mentalizando positivo tudo vai dar certo, ser redondo
e perfeito. Isso é utopia pura. Filosofia barata. Perigosa até. Isso é discurso
de campanha de marketing. Concordo que a realidade inexiste e o importante de
fato é a interpretação que conferimos aos acontecimentos, a nossa leitura feita.
Mas isso não muda os eventos! É importante sim nos esforçarmos para construir
um modelo mental sadio, ter um mindset que leia a realidade da melhor
forma possível e que seja generoso conosco, mas é importante também estarmos
preparados para lidar com todos os acontecimentos da vida que nos contrariem e
que serão inevitáveis! Gosto daquela frase que diz assim: “espere o melhor, mas
se prepare para o pior”. Exemplos são frustrações pessoais e morte de entes
queridos, são acontecimentos inevitáveis na vida de qualquer pessoa e precisaremos
lidar com isso. Aquele que tem a
mentalidade de “eu vim ao mundo para me servir e me dar bem”, cuidado! Está
patinando em gelo fino. Os nossos desejos são ilimitados, mas os recursos
disponíveis são – e devem ser – escassos. Então, ou tratamos de controlar nosso
id com um bem desenvolvido superego, segundo Freud, ou será o nosso ego que vai
pagar essa conta. E aqui entro com o assunto coadjuvante dessa postagem: uma musculatura
emocional relacionada às doenças.
A ciência cada dia
mais vem se rendendo à Psicossomática. Hoje muitos cientistas de variadas áreas
já afirmam categoricamente que as doenças começam na nossa mente! Quando nosso
psicoemocional não dá conta de algo e isso não é elaborado, ou seja, quando
reprimimos, recalcamos, negligenciamos conteúdos que não damos conta, o corpo somatiza!
O corpo vai falar através da doença. “Quando a boca cala, o corpo fala; quando
a boca fala, o corpo sara.” É preocupante a sociedade atual nesse sentido. Como
estamos lidando com as nossas emoções? Estamos desenvolvendo uma musculatura
emocional? Estamos educando os nossos filhos para os “nãos” que certamente
serão ditos pelo mundo porta à fora? É muito preocupante isso, principalmente
quando leio que a cada ano aumenta o número de pessoas com doenças mentais como
depressão e síndrome do pânico e o número de pessoas que tiram a própria vida. Casos
de automutilação. Aumento significativo desses quadros em populações jovens. É
assustador como quase não falamos sobre isso. Como ainda hoje é algo um tanto
quanto velado, negligenciado ou desacreditado. Aumento de cânceres, aumento de
doenças autoimunes, tudo advindo – ou agravado – por estado psicoemocional. Ainda
hoje muitos não se deram conta da importância de conhecer o seu próprio
interior. Pais dando tudo aos filhos por medo de serem rejeitados, não serem
“amados”. Pai não é amigo de filho. Pai é pai. Pai é superego. Representa a Lei.
Pai é o primeiro limite necessário à criança para no futuro ela não machucar
ninguém, nem se machucar. E quando digo pai aqui me refiro a pais de um mundo
geral, às figuras de quaisquer cuidadores. É quem diz “não”.
A minha educação foi
severa sim, eu não a recomendo a pai algum. O meu pai extrapolou até, foi além
do necessário para me educar e obviamente que esse exagero disciplinar também
ocasionou mais dores e conflitos desnecessários. Mas ele deu o melhor que podia
me dar, que ele sabia fazer. E o mais importante: o fez por amor! Amar também é
dar limites. E sou grato de coração a ele por me fazer entender, desde de
pequeno, que de ouvir “nãos” ninguém morre. Muito pelo contrário, ouvi-los formou
em mim um bom caráter; me ensinou a trabalhar firme pelas coisas almejadas e a
compreender que não vou e nem posso ter tudo o que quero na vida; a respeitar
as pessoas e a lidar com as decepções que encontrei e que ainda encontrarei pelo
caminho. Meu pai me ensinou a ser um homem de palavra. Ele dizia que a palavra era
a coisa mais importante na vida de um homem e que se perdê-la, ele se perdeu.
Esse post contando um
pouco da minha história pessoal tenta humildemente trazer a responsabilidade da
existência de uma autoridade firme desde a infância na estruturação de uma musculatura
emocional. A vida toda precisaremos de limites! Ninguém faz o que quer, quando
quer, como quer e está tudo bem, não é assim! A Lei existe primeiro para nos
organizar. Em segundo para nos potencializar. Grandes pensadores na História já
disseram: limite é poder. O limite é tão importante nesse quesito, porque ele
não só é necessário e saudável ao ser humano para civiliza-lo, como da
origem à criatividade humana, porque ele propicia o ambiente fértil para que isso
aconteça. O limite cerca forças que vão criar um caldeirão! Um caldeirão de
material perigoso, mas muito rico em capacidade de criação. Ou você acha que a
gente cria na alegria? A gente cria na dor, a gente cresce no sofrimento,
quando somos contrariados, quando estamos angustiados, quando nos é negado um
desejo, uma vontade. Esse mal estar que fica, essa irritação que é gerada, esse
desconforto interno criam arte. Ou podem cria-la. Assim como podem criar uma doença.
Aí reside o perigo. É como um rio que corre livremente e vem uma barragem. Nós
somos um rio que corre incessantemente. O rio representa o id, nossos desejos
incontáveis, nossas vontades intermináveis. A barragem que contém é o superego,
é o limite, é a Lei. E a infância é um momento especial para aprendermos a
lidar com isso. A barragem limita as águas do rio, mas o potencializa! Quando
se põe a barragem no rio, a água retesada ganha força e pode virar energia. Da
mesma forma acontece em nossa vida toda vez que encontramos um obstáculo no
caminho; nós condensamos força dentro de nós através das emoções e dos sentimentos
gerados. Por isso é tão importante adquirirmos musculatura emocional, porque da
mesma forma que a água retesada pode chegar um dia a destruir a barragem ou o
entorno às margens do rio, o nosso descontrole emocional pode em algum momento
machucar os demais ou a nós mesmos. Então, use esse turbilhão de emoções e
sentimentos que tem dentro de si como força propulsora criativa. Encare os
limites da vida e os momentos de crise como oportunidades para ganhar mais força interior. Mexa esse caldeirão de forma criativa. Faça
análise. Psicoterapia. Faça alguma arte. Desenhe. Pinte. Esculpa. Cozinhe. Borde.
Costure. Elabore os seus demônios, pois não à toa Lúcifer significa “o que traz
a luz”.