Nunca soube distinguir muito bem minhas emoções. Só uma delas sou capaz de identificar perfeitamente. É a raiva. A raiva é uma velha conhecida que sempre me visita. Há momentos que sou consumido por ela. Venho notando quando ela brota e aprendendo também a beber e a me alimentar dessa fonte. Quando percebi quando a raiva me visitava e que poderia me nutrir dela muita coisa mudou. Antigamente por não saber lidar com esse sentimento agia descontroladamente. Impulsivamente. A raiva é um sentimento tão forte, sorrateiro e traiçoeiro quanto uma paixão, ambos nos cegam e nos impedem por vezes de enxergar os fatos e agir com a razão.
Em muitos momentos quando via já tinha pedido demissão. Quando me dava por mim já tinha explodido e vomitado críticas que estilhaçavam os alvos. Parava quando via as lágrimas caindo, era o sinal que havia chegado onde queria. O estrago era sempre devastador. Era como um furacão, ia deixar um rastro por onde passava. Me julgava alguém muito errado, muito perdido, um descontrolado, porque num minuto calmaria, no minuto seguinte erupção. Mas achava que era coisa da idade, um comportamento de adolescente: calça rasgada, correntes, rock, bebidas e hormônios à flor da pele. Só que o tempo passou e mesmo hoje ainda sinto os sinais.
Hoje sinto vergonha de me perceber raivoso, que me tornei mais contido. Aprendi a disciplinar meus sentimentos até a mascara-los. É engraçado, mas quanto mais incomodado hoje eu estou com uma determinada situação menos as pessoas notam. Não me sinto a vontade se leem nos meus olhos o que se passa na minha mente. Olhando o passado me envergonho quando lembro das coisas que fiz quando com raiva. Algum tempo convivendo com uma pessoa bastava para identificar qual seria seu ponto fraco e era nesse ponto que atacaria para aleijar a vítima. Brigas com professor, com chefes, com meus pais, com colegas de trabalho ou amigos... Tenho certeza que magoei profundamente algumas pessoas. Mas na mesma proporção em que me senti magoado. Em que me senti atingido ou diminuído. Aí estaria o “x” da questão: eu não aceito ficar por baixo. Meu pecado capital sempre foi o orgulho. Sou vaidoso. Não suporto desprezo de algumas pessoas ou ser diminuído, não levo na esportiva qualquer descortesia. E é antiga a origem dessa dor...
Na minha infância havia uma pessoa que me desprezava e me diminuía muito. Era o meu pai. Bastante mestre nisso. O melhor de todos eu diria. Me dava muita raiva sentir seu descaso por mim e ainda mais raiva saber que ele jogava comigo, porque eu percebia que ele me amava mas usava desse artificio para me “motivar”. Como ele logo cedo notou que eu não gostava de sua desfeita, era nesse ponto que ele me pegava e eu toda vez caía como um patinho. Fazia de tudo para ganhar o seu amor. Fui o aluno mais inteligente; tinha a caligrafia mais bonita; fui o filho mais educado e obediente; ganhei medalhas em competições de corrida e em olimpíadas de matemática para chamar a sua atenção; procurei ser um ser humano perfeito para assim quem sabe conquistar o seu amor, a sua admiração, o seu respeito. E ele retribuía sempre com descaso. E mesmo eu sabendo que aquilo era dissimulação, mesmo eu sabendo que ele só estaria jogando comigo para me fazer me dedicar e me esforçar mais às coisas, aquilo me afetava muito. Aquilo me golpeava em cheio. Para mim ele parecia um sádico e eu um tolo tentando conquistar o seu apreço. Encontrei um vídeo no YouTube que me emocionou muito quando assisti, porque de certa forma vi minha relação com meu pai nele. Quem quiser assistir segue abaixo.
Quando atingi a maioridade ele faleceu e desde então venho aprendendo a lidar com esse sentimento de rejeição mal resolvido. Busquei técnicas para aquietar a raiva que me consumia. Aprendi a meditar. A respirar melhor. A perceber os momentos de gatilho. Aos poucos fui buscando na humildade e na humanidade aceitar minhas fragilidades e a compreender as minhas falhas – e também as dos outros. Tem sido um exercício custoso, lento e diário. Afirmo que já tive progresso. Ainda me importo bastante em provar o meu valor. De tempos em tempos escolho um para provar meu potencial e obter dessa pessoa reconhecimento. Mas quando por algum motivo sou desprezado – ou capto dessa forma – uma dor antiga se avizinha e a raiva é o subproduto desse processo. Me parece claro que se trata aqui de um mecanismo inconsciente onde projeto a figura do meu pai nessas pessoas e procuro encontrar nelas um reconhecimento pessoal, para me sentir amado. Como se o “aceite” dessas pessoas fosse mais importante que o meu próprio. Ninguém ganha com isso.
Através de uma postura virtuosa, reta, digna, responsável, íntegra, irretocável, imagino que estou fazendo a minha parte e “alguém” está vendo. E esse “alguém” vai me aceitar. E aí vem outro problema: não ser capaz de sustentar as 24 horas do dia essa postura virtuosa, porque, embora esqueça, sou humano, falho e imperfeito. Então errar também termina me gerando raiva, pois acredito – inconscientemente – que se não for perfeito não serei aceito. Eu sei que falar parece fácil, assim como dá a impressão de que estou no controle desse processo, mas como é inconsciente na maioria das vezes, quando me dou por mim essa cena toda já se reproduziu novamente, e novamente, e novamente. Me dou conta no resultado disso. É claro que com a maturidade e o autoconhecimento percebo mais rapidamente os gatilhos e, às vezes, antecedo às consequências. Mas o interessante de tudo é que tenho que assumir que apesar da imensa raiva que meu pai me fazia sentir, de fato ele me motivava intensamente também. Percebo que a raiva pode ser devastadora mas ela é capaz também de nutrir. A raiva pode nos dar o gás necessário para avançar. E de um tempo para cá estou empenhado nisso, numa estratégia de usar toda essa explosão de energia de forma canalizada. É então quando me supero na corrida. Quando trabalho em estado de flow. Quando sou capaz de criar. Quando venho aqui e escrevo um novo texto. Esse processo de escrever sobre meus traumas e fantasmas não é só artístico. É terapêutico.