terça-feira, 18 de julho de 2017

A IRA NOSSA DE CADA DIA

Nunca soube distinguir muito bem minhas emoções. Só uma delas sou capaz de identificar perfeitamente. É a raiva. A raiva é uma velha conhecida que sempre me visita. Há momentos que sou consumido por ela. Venho notando quando ela brota e aprendendo também a beber e a me alimentar dessa fonte. Quando percebi quando a raiva me visitava e que poderia me nutrir dela muita coisa mudou. Antigamente por não saber lidar com esse sentimento agia descontroladamente. Impulsivamente. A raiva é um sentimento tão forte, sorrateiro e traiçoeiro quanto uma paixão, ambos nos cegam e nos impedem por vezes de enxergar os fatos e agir com a razão. 

Em muitos momentos quando via já tinha pedido demissão. Quando me dava por mim já tinha explodido e vomitado críticas que estilhaçavam os alvos. Parava quando via as lágrimas caindo, era o sinal que havia chegado onde queria. O estrago era sempre devastador. Era como um furacão, ia deixar um rastro por onde passava. Me julgava alguém muito errado, muito perdido, um descontrolado, porque num minuto calmaria, no minuto seguinte erupção. Mas achava que era coisa da idade, um comportamento de adolescente: calça rasgada, correntes, rock, bebidas e hormônios à flor da pele. Só que o tempo passou e mesmo hoje ainda sinto os sinais.

Hoje sinto vergonha de me perceber raivoso, que me tornei mais contido. Aprendi a disciplinar meus sentimentos até a mascara-los. É engraçado, mas quanto mais incomodado hoje eu estou com uma determinada situação menos as pessoas notam. Não me sinto a vontade se leem nos meus olhos o que se passa na minha mente. Olhando o passado me envergonho quando lembro das coisas que fiz quando com raiva. Algum tempo convivendo com uma pessoa bastava para identificar qual seria seu ponto fraco e era nesse ponto que atacaria para aleijar a vítima. Brigas com professor, com chefes, com meus pais, com colegas de trabalho ou amigos... Tenho certeza que magoei profundamente algumas pessoas. Mas na mesma proporção em que me senti magoado. Em que me senti atingido ou diminuído. Aí estaria o “x” da questão: eu não aceito ficar por baixo. Meu pecado capital sempre foi o orgulho. Sou vaidoso. Não suporto desprezo de algumas pessoas ou ser diminuído, não levo na esportiva qualquer descortesia. E é antiga a origem dessa dor... 

Na minha infância havia uma pessoa que me desprezava e me diminuía muito. Era o meu pai. Bastante mestre nisso. O melhor de todos eu diria. Me dava muita raiva sentir seu descaso por mim e ainda mais raiva saber que ele jogava comigo, porque eu percebia que ele me amava mas usava desse artificio para me “motivar”. Como ele logo cedo notou que eu não gostava de sua desfeita, era nesse ponto que ele me pegava e eu toda vez caía como um patinho. Fazia de tudo para ganhar o seu amor. Fui o aluno mais inteligente; tinha a caligrafia mais bonita; fui o filho mais educado e obediente; ganhei medalhas em competições de corrida e em olimpíadas de matemática para chamar a sua atenção; procurei ser um ser humano perfeito para assim quem sabe conquistar o seu amor, a sua admiração, o seu respeito. E ele retribuía sempre com descaso. E mesmo eu sabendo que aquilo era dissimulação, mesmo eu sabendo que ele só estaria jogando comigo para me fazer me dedicar e me esforçar mais às coisas, aquilo me afetava muito. Aquilo me golpeava em cheio. Para mim ele parecia um sádico e eu um tolo tentando conquistar o seu apreço. Encontrei um vídeo no YouTube que me emocionou muito quando assisti, porque de certa forma vi minha relação com meu pai nele. Quem quiser assistir segue abaixo.


Quando atingi a maioridade ele faleceu e desde então venho aprendendo a lidar com esse sentimento de rejeição mal resolvido. Busquei técnicas para aquietar a raiva que me consumia. Aprendi a meditar. A respirar melhor. A perceber os momentos de gatilho. Aos poucos fui buscando na humildade e na humanidade aceitar minhas fragilidades e a compreender as minhas falhas – e também as dos outros. Tem sido um exercício custoso, lento e diário. Afirmo que já tive progresso. Ainda me importo bastante em provar o meu valor. De tempos em tempos escolho um para provar meu potencial e obter dessa pessoa reconhecimento. Mas quando por algum motivo sou desprezado – ou capto dessa forma – uma dor antiga se avizinha e a raiva é o subproduto desse processo. Me parece claro que se trata aqui de um mecanismo inconsciente onde projeto a figura do meu pai nessas pessoas e procuro encontrar nelas um reconhecimento pessoal, para me sentir amado. Como se o “aceite” dessas pessoas fosse mais importante que o meu próprio. Ninguém ganha com isso.

Através de uma postura virtuosa, reta, digna, responsável, íntegra, irretocável, imagino que estou fazendo a minha parte e “alguém” está vendo. E esse “alguém” vai me aceitar. E aí vem outro problema: não ser capaz de sustentar as 24 horas do dia essa postura virtuosa, porque, embora esqueça, sou humano, falho e imperfeito. Então errar também termina me  gerando raiva, pois acredito – inconscientemente – que se não for perfeito não serei aceito. Eu sei que falar parece fácil, assim como dá a impressão de que estou no controle desse processo, mas como é inconsciente na maioria das vezes, quando me dou por mim essa cena toda já se reproduziu novamente, e novamente, e novamente. Me dou conta no resultado disso. É claro que com a maturidade e o autoconhecimento percebo mais rapidamente os gatilhos e, às vezes, antecedo às consequências. Mas o interessante de tudo é que tenho que assumir que apesar da imensa raiva que meu pai me fazia sentir, de fato ele me motivava intensamente também. Percebo que a raiva pode ser devastadora mas ela é capaz também de nutrir. A raiva pode nos dar o gás necessário para avançar. E de um tempo para cá estou empenhado nisso, numa estratégia de usar toda essa explosão de energia de forma canalizada. É então quando me supero na corrida. Quando trabalho em estado de flow. Quando sou capaz de criar. Quando venho aqui e escrevo um novo texto. Esse processo de escrever sobre meus traumas e fantasmas não é só artístico. É terapêutico.



quarta-feira, 5 de julho de 2017

COISIFICAÇÃO


A imagem escolhida para esse texto representa bem o tema, ela foi retirada de uma animação que encontrei no YouTube e colocarei ao final desse texto para quem quiser assistir. Recomendo bastante, é uma animação forte, pra fazer pensar.

As pessoas no geral estão tão ocupadas com tarefas a fazer, andando pra lá e pra cá, no corre corre do dia a dia, que estão passando despercebidas umas das outras e até de si mesmas. É tanta coisa para fazer: trabalhar; cuidar da casa; se preocupar com o que comer; se preocupar em estudar ou se manter atualizado; em fazer supermercado; pagar conta; e tem o trânsito do dia a dia, as filas, o estresse constante. Vamos fazendo todas essas coisas com um senso de urgência, com a sensação de que está ficando algo para trás que no fim não vai dar tempo de fazer. Eu me observo assim. Eu observo as pessoas assim. Estamos vidrados em nossa rotina, ocupados com a nossa vida, que transitamos não nos vendo, não nos ouvindo, não nos percebendo. Perguntamos como estamos por educação, porque duvido muito que importa sinceramente a resposta que virá logo após essa pergunta. As relações estão superficiais e os contatos breves, com pouco ou nenhum aprofundamento reflexivo ou sincero. Esse senso de urgência com as nossas coisas, somado a um excesso de importância e valorização só com a nossa vida tem nos feito individualistas, menos conectados uns com os outros. Quase como se fôssemos perfeitos estranhos, seres maravilhosamente invisíveis. Estranhos que se veem e se relacionam constantemente, mas ao final dos encontros permanecem estranhos.

Desafio você a se questionar com quantas pessoas você tem um relacionamento, seja ele de que natureza for, realmente com conexão. Conexão que eu digo é quando você realmente “está” com uma pessoa e “sente” que ela também “está” inteiramente com você. Falo aqui de presença; de profundidade; de identificação com o outro. Confesse, são raros esses momentos. Assim como são raras as pessoas com quem você se sente assim dessa maneira. Você não deve se sentir assim nem consigo mesmo. No geral, somos apenas gentis, protocolares nos “bom dias”, superficiais nas relações diárias e, sem perceber, estamos ausentes, porque ouvir não é a mesma coisa que escutar; ver não é o mesmo que enxergar. A capacidade mais empática e natural dos humanos é sentir uns aos outros, conectar, mas estamos perdendo essa capacidade. Existem pesquisas que tentam mostrar uma espécie de “coisificação” acontecendo. Esses estudos defendem uma tese de que há um processo de “coisificação” no mundo contemporâneo, onde estaríamos perdendo a capacidade empática e transformando quem não é importante para nós em uma “coisa”. As mesmas pesquisas foram feitas com crianças e os resultados impressionaram pela incapacidade que elas tinham de reconhecer e identificar expressões faciais básicas. Característica típica de psicopatas. Isso se explicaria por que você passa hoje por um mendigo deitado na calçada com um cobertor fino, nessas noites que você sabe o quanto está frio, e você quase não sente nada. Não é consciente, mas você “naturaliza” essa cena; você olha e não vê uma pessoa ali deitada e isso não te afeta mais. Poderia se dizer que você não mais percebe, quiçá se importará, se sob aquele pedaço de pano estaria de fato uma pessoa, porque ela não lhe é importante.

Será que não deveria nos afetar, muito, numa noite fria como essa de inverno em que estamos, nos deparar com um morador de rua? Será que não deveria nos afetar, muito, aquela criança pequena pedindo que vemos no farol pelos vidros erguidos do carro? Por que será que a gente não pensa se ela estaria com fome? Se almoçou ontem; se teria onde dormir hoje; se sofreria algum tipo de abuso ali nas ruas. A resposta é assustadoramente simples: a gente não pensa porque essa criança foi “coisificada”, como ela não nos é familiar, ela não nos é importante, assim não é vista, literalmente; é como se ela se mesclasse à paisagem. Assim como o mendigo. São tristes exemplos de como estamos insensíveis ao outro. Embora não admitimos, a nossa filosofia básica de vida é a seguinte: “primeiro eu, depois os meus, o que sobrar aos outros”. O mundo atual é confeccionado sob uma filosofia tão superficial e imediatista, com valores por vezes psicopáticos, onde estamos tão atarefados, bitolados e super valorizando nossa própria individualidade (“minha vida, minhas coisas, meus problemas”), que estamos não só perdendo a noção da existência do outro, como não legitimando a sua importância, a sua dor. E isso não é só triste e preocupante, isso é perigoso até. A sociedade só chegou onde chegou, como sociedade, pela nossa capacidade altruísta e empática de nos colocarmos uns no lugar dos outros, sem essa capacidade é impossível pensar sociedade. É difícil imaginar qual seria uma resposta para esse movimento, mas arriscaria pensar que, se estamos seguindo um fluxo como rebanhos num processo quase automático, foi por que aprendemos assim, e talvez a solução fosse parar em alguns momentos e tentar trazer consciência às nossas ações. E sempre que possível reavaliar nosso comportamento e revalidar a nossa visão de mundo dando mais atenção e importância às necessidade daqueles que estão ao redor, seja esse outro quem for, já que o outro nunca deixou de ser uma extensão de nós mesmos. É uma questão de se permitir.