Um dos filósofos mais interessantes da humanidade para mim foi o pré-socrático Heráclito, que entre muitas contribuições nos trouxe o fantástico entendimento do devir, mas principalmente um outro termo chamado Enantiodromia, que significa que toda força dispendida numa direção gera uma força no sentido contrário. A meu ver esse é um conhecimento muito poderoso. E mais fascinante ainda quando Jung toma emprestado esse termo para explicar o funcionamento dos processos energéticos da mente humana, num movimento compensatório entre consciente e inconsciente, visando alcance de equilíbrio. Isso faz todo o sentido...
Quando estava na adolescência, tive sérios problemas de comportamento, era indisciplinado, agressivo, bastante rebelde, principalmente dentro de casa e na escola. Tudo começou por volta dos quatorze anos. Dentro de casa só ficava no meu quarto ouvindo rock, me lembro que montei lá um bar e ficava com meus amigos bebendo. Dava festas em casa que eram “As festas”. Quando meu pai ia conversar comigo para chamar minha atenção, ele estava sempre bêbado, então o enfrentava e as consequências eram brigas. Todo dia briga... Não sabia porque agia daquela forma, hoje vejo que só queria chamar a atenção. Na escola ia com correntes, calça rasgada (um dos primeiros a usar) e quase fui expulso, era aquele aluno com altíssimo potencial jogando a vida no lixo; discutia à toa com os professores, brigava com os colegas, era um rebelde sem causa que tinha prazer em entregar as provas em branco – mesmo sabendo todas as respostas!
Os professores que entravam na minha, quando se via já estávamos brigando, com exceção de um ou outro. Mas um em particular me incomodava, o de História. Ele era impassível, não entrava no meu jogo. Quando entregava sua prova em branco, ele corrigia, não falava nada, só me dava nota vermelha e ficava em silêncio. Mas eu tinha que cutucá-lo, aquilo era demais para mim. Só que toda vez ele, placidamente, me dizia: “Sei quem é você. Assim como sei que, o dia que quiser, mudará esse jogo”. Ele não acreditava no meu fracasso. Não entendia isso, mas estranhamente ele parecia ter alguma razão já que na sua frente me sentia infantil, pequeno. Me sentia uma farsa descoberta. Como não tinha maturidade para compreender suas filosofias naquele momento, prossegui reprovando o terceiro ano do Ensino Médio e parando de estudar.
Nessa época, me lembro de um dos colegas de classe que falava que queria ser padre. Seguiu isso por anos. Não suportava esse rapaz. Quando ele começava com aqueles sermões religiosos e lições de moral para cima de mim e dos meus amigos porque levávamos revistas de “conteúdo adulto” e ficávamos folheando e falando besteiras na sala, começava a discussão! Podia ver claramente que aquilo nele era recalque, no sentido freudiano mesmo, pois ele reprimia o desejo de ter contato com aquele conteúdo e nos atacava naquela forma de puritanismo religioso. Mas olha que engraçado, me achava muito sabichão ao enxergar e julgar esse movimento nele, mas não estava eu fazendo o mesmo?! Quero dizer que eu também estava projetando! Hoje tenho consciência disso, mas naquela época não. Da mesma forma penso que ele também não tinha. Não suportava sua perfeição de ser aluno exemplar, nota 10, obediente, bom filho, ser o queridinho dos professores, aquele puritanismo todo, enquanto me via como um devasso, um perdido completo. Não conseguia ter a menor perspectiva de vida e de futuro bom para mim, me achava uma aposta que deu errado.
Resumindo a ópera, reprovei no último ano do Ensino Médio. Juro que parecia profecia autorrealizável porque sabia que não concluiria. Sabia... Tratei a contra gosto de me conformar com minha incompetência e me afoguei num trabalho que já não suportava mais também. Quando de repente, quem esperaria... Ao completar dezoito anos, um dia chego do trabalho e recebo a informação que meu pai estava internado, falecendo naquela mesma noite. Do nada. Ele não tinha nada. Infartou. O choque que levei foi tão forte que naquele momento não reunia forças nem para chorar. Embotei. Era um bololô de sentimentos que não conseguia sentir nenhum, só tinha clareza enquanto seu caixão descia à cova que eu jamais seria o mesmo. Segundo Sigmund Freud, ao contrário do luto, na melancolia a sombra do objeto perdido recai sobre o ego. Até aquele momento meu pai era tudo o que eu tinha. Apesar de ter minha mãe, ela trabalhava bastante, então sua ausência sempre foi preenchida pelo meu pai. E então ele partia, me fazendo ouvir o barulho das ruínas aqui dentro despencando... Fechei para balanço. Chorei por meses. Hibernei sem data para acordar.
Quando finalmente reuni forças novamente, algo impressionante aconteceu. Tenho a impressão que adentrei um rio por uma das margens e sai uma pessoa diferente quando surgi na outra. Voltei a estudar, fiz EJA (Educação de Jovens e Adultos). Prestei vestibular. Fiz ENEM, quase gabaritei a redação, ganhando assim uma bolsa de estudos na faculdade de 100%. No trabalho fui ganhando promoções atrás de promoções. Fiz especializações. MBA. Estava namorando sério. De repente me percebi correto, correspondendo expectativas. Perfeccionista. Sério. Íntegro. E qualquer semelhança com o meu antigo arqui-inimigo é uma mera coincidência... (rs) Ah! E ele que iria ser padre né, se casou após a escola e hoje é pai de família.
Agora vou chegar ao ponto que quero. Precisei relatar toda essa história pessoal – verídica – para dizer que apesar de nem nos meus delírios mais insanos, imaginar que adentraria uma faculdade com aquela vida que levava, inconscientemente isso sempre esteve aqui. Enquanto mantinha na consciência e expunha à sociedade uma persona libertina e agressiva, força diametralmente contrária jazia inconscientemente, que cedo ou tarde buscaria compensação para equilíbrio. Segundo Carl Gustav Jung, pai da psicologia analítica, “Se a vida por algum motivo toma uma direção unilateral, produz-se no inconsciente, por razão de autorregulação do organismo, um acúmulo de todos aqueles fatores que na vida consciente não tiveram voz, nem vez”.
Como na adolescência estava passando por problemas familiares complexos e crises de identidade, e como não tinha maturidade nem suporte para lidar com tudo isso, tudo o que conseguia fazer era externar uma imagem única de afronta e rebeldia, que também fazia parte de quem era, mas não unicamente. Por algum motivo recalquei exatamente o oposto disso, o jovem inteligente, educado e disciplinado (que existia quando eu era criança!) e quando enxergava isso no meu colega de classe (mas não conseguia mais ver isso em mim), a inveja que sentia dele me fazia atacá-lo! Porque ele continha tudo aquilo que eu queria ser, mas não sabia que queria, nem me imaginava ser capaz, já que por defesa criei uma persona oposta a essa.
O que gostaria que você refletisse a partir desse estudo de caso?
Quantas histórias, quantos casos não conhecemos assim? É claro que podemos observar as pessoas ao nosso redor que estão “polarizadas”, expressando apenas um perfil estereotipado, mas o objetivo é olhar para si, já que muito pouco, ou nada, podemos fazer pelo outro. O objetivo aqui é sermos mais compreensivos e julgarmos menos as pessoas, porque ninguém é uma única coisa. Hoje quando me perguntam se não acho que fulano é isso ou fulano é aquilo, sinceramente quase sempre não faço ideia da resposta, porque quem diz da pessoa é ela, e como vimos muitas vezes podemos estar projetando conteúdos nossos nessa avaliação. As pessoas mudam, se transformam, elas podem estar passando por algum problema pessoal, mas ninguém é uma coisa só, então cabe respeito.
Ao invés de fechar numa única forma de enxergar tudo isso, o melhor é integrar todas as partes como recomenda o Jung. Acho engraçado a surpresa que as pessoas têm quando enxergam as minhas tatuagens – e tenho algumas grandes e bem visíveis. A primeira coisa que falam, “Você não tem cara de quem tem tatuagem”. Minha resposta é sempre, “E qual é a cara de quem tem tatuagem?”. A pessoa insiste, “É que você é uma pessoa séria”. E eu continuo, “Uma pessoa séria não tem tatuagem?”. Silêncio. Da mesma forma que creio que alguns leitores aqui – não os mais antigos – ficaram chocados ao ler e imaginar esse período da minha adolescência. O que posso dizer é revejam os seus conceitos, porque os meus estão bem resolvidos.
Você tem um perfil estereotipado? Você tem perspectivas “fechadas” de vida e sobre as pessoas, possui padrões obsoletos, esquemas psíquicos limitados, tem dificuldade de enxergar nuances na personalidade e no comportamento das pessoas e até em si mesmo? Se a resposta for sim, tenha certeza que tudo aquilo que você exibe com força na consciência ou através da persona, há uma força igualmente oposta no inconsciente, que em algum momento buscará por equilíbrio através de compensação. E será percebível esse movimento, quando você adotar um comportamento contrário ao esperado pelo meio – fazendo isso inconscientemente.
Segundo o filósofo Heráclito, assim como na natureza, “Tudo se faz por contrastes, da luta de contrários, nasce a mais bela harmonia”. Esse é o entendimento do termo Enantiodromia, e podemos observá-lo em dinâmicas individuais ou coletivas. E pensando em dinâmicas coletivas, isso nos faz refletir bastante não? Todas as vezes em que vemos uma pessoa caminhando para um determinado extremo de comportamento, tenha certeza que em dado momento isso vai virar, ela vai polarizar no oposto. Para Jung, "A única pessoa que escapa da lei implacável de enantiodromia é o homem que sabe separar-se do inconsciente, não reprimindo-o, pois assim ele simplesmente o ataca por trás, mas colocando-se claramente diante dele como aquilo que ele é."
O que isso significa? Temos que buscar no nosso inconsciente todas as informações, os desejos, os aspectos da nossa personalidade que foram banidos da consciência por algum motivo. Para expressá-los?! Não necessariamente. Só se você quiser. Mas sublimá-los quando possível. Colocando-se claramente diante disso como aquilo que é. Um padre por exemplo nunca tem desejos carnais ou fantasias sexuais? Claro que tem, ele é homem, não é anjo. Ele se faz padre enquanto nega a prática, não o desejo! Isso significa que um padre que quer manter sua castidade, precisa ter consciência de que ele reprime a luxúria e precisa encarar e assumir que isso é parte de si, ainda que decida por seguir seus votos. Ele recusa o ato. Mas não pode negar o desejo! E assim ambas energias psíquicas coadunam, de alguma forma possível, no campo da consciência.
“Excesso de pranto ri. Excesso de riso chora.” (Autor desconhecido)