domingo, 20 de fevereiro de 2022

PERVERSÃO

A perversão é talvez a estrutura mais enigmática da psicanálise.

     Atualmente observo com curiosidade e admiração muitos analistas, cada vez mais diversos e plurais em suas formações, sendo convidados à cena pública para debater temas de relevância social, contribuindo também com a visão psicanalítica. Penso que, se vivo, Sigmund Freud estaria honrado com isso. E certamente também estaria participando. Os psicanalistas estão, neste momento, sendo convocados a falar sobre a formação, enquanto assistimos novas iniciativas nesse sentido – “como se daria a formação de um psicanalista?”. Tornou-se a psicanálise “pop”? Talvez, sim; desde que esse adjetivo não venha carregado de irrelevância ou de pouca credibilidade, pois certamente a psicanálise é uma ferramenta bastante útil ao sofrimento humano, numa sociedade em constante transformação. Essa resposta analítica pública assistirei com prazer, da arquibancada, certo de que ainda não sou um psicanalista. Um estudante é mais apropriado. Seguindo por um caminho num trajeto que sei que não terá fim – não há por que pressa então – mas houve certamente um começo. É difícil agora enxergar outro senão uma análise pessoal.

      Iniciei esse texto escrevendo sobre a perversão, porque essa sempre foi a estrutura psicanalítica que mais me despertou a curiosidade, mesmo antes de estudar psicanálise. Tenho o odiado costume de sempre olhar para aqueles pontos que estão de lado. Enxergo na perversão uma espécie de aura de mistério, de moralidade, de confusão. Uma confusão legítima certamente, já que arriscaria dizer que ela é mais complexa que a neurose e a psicose. Freud acolheu e ouviu a neurose. A psicose ficou a cabo da psiquiatria – o que não discordo nenhum um pouco –, ainda que, se possível, ao psicótico participar, também, de análise possa ser positivo. Psicanalistas depois de Freud, como Wilfred Bion, chegaram a atender pacientes psicóticos. No entanto, a perversão ficou sempre às margens da teoria, e considerada por vezes sem curso no tratamento psicanalítico, pois é comum se dizer, por analistas inclusive, que raramente o perverso procura por análise. Será mesmo?

      Quanto mais estudo a teoria psicanalítica observo que talvez existem muito mais perversos do que imaginamos. E tendo a acreditar que isso se deve ao mundo atual que vivemos e às intensas transformações que a sociedade vem passando. Algumas vezes tenho um pouco de dificuldade de acreditar se hoje em dia, pela forma como estamos vivendo e nos relacionando, ainda haveria indivíduos mais marcadamente neuróticos. Não sei se a neurose ainda é a bola da vez... Sinto que tem algo importante que não estamos enxergando no cenário atual. Mas já vi alguns poucos psicanalistas trabalharem essa ideia de modo interessante. Algo me diz que só estamos presenciando o início de transformações significativas no psiquismo individual, em decorrência de mudanças coletivas. Particularmente, odeio modismos. Nem sou de aderir a convicções radicais. Gosto e prezo um certo distanciamento para observar e poder refletir. Mas acredito que a sociedade e as nossas relações estão se modificando tão rápido e isso tem impactado em vários pontos, inclusive na psicanálise.

      A neurose e a psicose sempre foram mais conhecidas, até para quem é leigo em psicanálise, mas quem quiser conhecer um pouco melhor sobre a perversão recomendo o artigo “O que é perversão?” da psicanalista Cibele Prado Barbieri. Segue o link aqui. Achei interessante a forma como ela trabalha a perversão no seu texto, assim como o manejo clínico e as reflexões que ficam abertas para o leitor pensar. Vale conferir. Tomo a liberdade de dividir abaixo dois trechos:

Pode parecer que esse poder desafiante torne possível um gozo sexual garantido. Entretanto, isto não isenta o perverso de um drama, pois, diante da impossibilidade de recorrer ao pai enquanto função reguladora, ele termina por cair sob a dominação de outra regra: o gozo materno. Sabemos que, se não há castração, não há falta; se nada falta, não há desejo e, se não há desejo, há gozo.

[…]

Na verdade, poderíamos dizer que, paradoxalmente, o perverso sofre de uma busca ávida de Lei, pois o norteamento que deveria vir do Pai não se sustenta. Podemos assim entender que o desejo da mãe enquanto fálica convoca à pulsão de morte, porque promove o apagamento subjetivo na criança tomada como objeto de satisfação. Quando o desejo do pai fracassa em sua função de limitar o gozo da mãe para alinhar a criança na direção do desejo de vida, a face silenciosa da pulsão, a de morte, prevalece.

      A ideia dessa postagem se originou durante essa semana após a minha última aula de psicanálise. Estudávamos sobre o psicanalista Wilfred Bion e durante a aula algumas vezes o professor falou sobre um fenômeno psíquico intrigante que é a clivagem do eu. Basicamente esse é um mecanismo de defesa psíquico que permite a coexistência “pacífica” de dois tipos de sentimentos ou comportamentos; de imagens que se convergem a uma mesma realidade: objeto presente e ausente, duas representações opostas, uma afirmação e um desmentido. E embora esse mecanismo de defesa esteja profundamente associado a um comportamento psicótico, e era esse o enfoque da aula dada, já tinha ouvido sobre indivíduos perversos também fazerem um processo de clivagem. Então questionei o professor sobre isso. No intuito de evitar mais nos confundir, o professor foi comedido em sua resposta. Mas ele deu a deixa. Pense em ego e objetos. Fui pesquisar.

      A perversão ficou às margens da sociedade historicamente, porque invariavelmente é possível, num nível mais agravado é claro, que esse sujeito adentre o campo da criminalidade. E aí estaremos inevitavelmente falando de perversidade sim. Segundo a teoria freudiana, o perverso é aquele ser que reconheceu e, ao mesmo tempo, desmentiu [Lacan] a castração. Então, é como se o perverso tivesse um modo próprio maliciosamente perigoso ao lidar com o limite. Isso não significa que todo perverso é um delinquente ou um infrator, antissocial, mas que certamente ele tenderá a arbitrar, até autoritariamente pelo seu gozo sem limites, transgredindo, em maior ou menor grau, o status quo.

      De forma alguma defendo aqui qualquer forma de invasão ou desrespeito ao corpo do outro, nem ao espaço alheio! O limite é imprescindível não apenas ao ser humano – psiquicamente falando –, quanto às relações que ele estabelece em sociedade. Limite ordena. Organiza. Conserva a sociedade. Entre as estruturas psicanalíticas propostas por Freud, a neurose é o mais próximo de “saúde” (com várias aspas nessa palavra, quiçá nessa frase) que uma pessoa poderia chegar. Não tenho dúvida quanto a isso. Mas ela não foi a única. A neurose não é a única estrutura presente, nem nunca foi. E arriscaria dizer que, nos dias atuais, talvez ela nem esteja mais largamente predominante entre a população, como já foi um dia. Freud viveu numa era vitoriana e seria uma ingenuidade da nossa parte acreditar que transformações tão profundas e tão radicais que ocorreram, e ainda estão acontecendo, de lá para cá em todos os setores, de âmbito público e privado, não influenciariam em nada na formação da personalidade.

      No passado, no âmbito individual, privado, quando havia deficiências na interdição instituída pela norma geral, a Lei do Pai, ainda havia, pelo menos, no âmbito público, no coletivo, mastros morais fortes, e possíveis, para alguma castração e introjeção de uma função de superego. Fosse através da religião. Da educação. Da mídia. Da cultura. Do Estado. E tendo isto como perspectiva, um imaginário social e coletivo, haveria hoje em dia alguma referência forte? Nem no âmbito privado! O psicanalista Jorge Forbes diz que nós passamos de um mundo verticalmente orientado para um mundo horizontalmente orientado, e isso nos deixa com uma sensação de desbussolamento. Faz muito sentido, não?

     O objetivo desse texto é convidar a uma reflexão. Pensarmos. Sempre que penso sobre tudo isso, a reflexão que fico é se dado esse cenário atual, e pensando o desenvolvimento psicossexual nos dias atuais, isso influenciaria ou não, e como, na formação da personalidade pensando estrutura psicanalítica? Sei que parece que estou dando maior ênfase ao social nesta reflexão, quando impactaria muito mais a família. Mas aqui também está líquido! conceito trazido pelo sociólogo Zygmunt Bauman.

Então, num mundo sem nortes sólidos, como historicamente sempre existiu, vindo dos pais, da sociedade ou dos deuses, haveria ainda maior propensão ao surgimento de neuroses?