Freud não atendeu crianças, a não ser o pequeno Hans. E esse atendimento também se deu pela intermediação do pai do garoto, cabe ressaltar isso. Contudo, como popularmente se sabe, a psicanálise se volta à infância. Então podemos dizer que de certa forma numa análise se procura enxergar – e trazer à tona – a criança escondida dentro do corpo adulto do paciente. Mas por que fazer isso? Outro dia estava pensando exatamente sobre isso.
Acredito que há de concordar comigo que as pessoas com quem você se relaciona e que te deixam mais à vontade são aquelas que você mais gosta de ter por perto. Comecei a observar isso nas pessoas com quem eu convivia. E não é de hoje, não! Digo que parei para refletir melhor sobre isso de uns dias para cá. Mas confesso que já observo isso há muito tempo. E a cada dia que passa chego mais à conclusão que a verdadeira felicidade está no contato direto com a criança que todos fomos um dia.
Costumo reparar na mudança no comportamento de algumas pessoas quando elas estão a sós comigo e quando chega alguém próximo a nós. E acho isso interessante. Quando eu conheço uma pessoa inevitavelmente se cria uma atmosfera de exposição. Muito se deve isso a minha personalidade. Sou bastante curioso e tenho uma postura inocentemente investigativa. Ligeiramente intrusiva até. Já ouvi, daqueles que detestavam essa minha característica, que eu era um inquisidor. Longe de mim isso. Hoje certamente diria que não sou mesmo um inquisidor. Mas alguém profundamente e genuinamente interessado em conhecer as pessoas ao meu redor. Sempre fui assim.
Quando conheço uma pessoa, pouco a pouco vou avançando as fronteiras de sua reserva. Olhando em seus olhos como se quisesse enxergar a sua alma faço perguntas. Quero entender as respostas. Conhecer essa pessoa. Confesso que são raras as vezes em que de início há uma boa aceitação por parte das pessoas. Sabe por quê? A grande maioria vive na defensiva, e acostumada a utilizar máscaras sociais. E quando alguém faz perguntas “mais reflexivas” dispara desconfiança. Há um recuo. Fechamento. Percebo até o comprimir do olhos em busca das razões que me fariam as questionar.
Mas mantenho-me firme. Entendo essa resistência. Aceito qualquer reprovação. Ou repúdio. Apenas faço o possível para transparecer em minha face e em minha postura o respeito, a segurança e a confiança necessários para que o verdadeiro self se mostre. E acontece! Afastado o estado arisco, de repente se abre uma fresta, e ainda que pequeno, vejo um lampejo genuíno... Pode ser um sorriso espontâneo. Uma expressão de medo. Ou um marejar de olhos. Mas nesse momento eu sei, assim como a pessoa também sabe, que se estabeleceu uma conexão. Uma transferência. Eu a vi. Assim, pouco a pouco, sou capaz de me conectar com a criança dentro dessa pessoa. Uma criança ansiando algo. Criamos um espaço só nosso. Esse espaço é o setting analítico. Ele pode se dar num divã. Num banco de praça. Ou numa mesa de bar. E com qualquer pessoa com o qual nos relacionamos. A única diferença é que o psicanalista tem conhecimento desse fenômeno transferencial e ele pode fazer o melhor manejo disso.
Vou contar uma situação. Eu trabalhava numa empresa que todos detestavam uma pessoa. Ela era artificialmente intragável. Essa pessoa não cumprimentava ninguém e parecia estar constantemente mal humorada. E quando tentavam se aproximar, ela era ácida, espinhosa, às vezes até grosseira. Eu só observava. A mim haveria de ter razões muito mais profundas do que as nossas meras críticas a sua pessoa. Não estou aqui para legitimar esse comportamento profissional, porque sei que existe ética e etiquetas sociais necessárias a um convívio pacífico. Mas ao invés de me juntar definitivamente ao bando que criticava preferi conhecer a fera. Sempre tive uma certa inclinação para me aproximar dos mais desajustados, reprováveis ou difíceis – pois eu sempre fui um. Conheço perfeitamente o mecanismo…
Estávamos num ambiente organizacional, então sempre precisava chamar essa pessoa a minha sala para conversar sobre o seu comportamento arredio. Na primeira vez que conversamos, essa pessoa "falava" tão alto comigo que eu achei que ela fosse voar no meu pescoço. Dava para ouvir os seus gritos de portas fechadas. Mantive-me firme. A minha estratégia era clara: queria ir além, “mostrar-me isso é fácil, eu quero ver o que há por traz disso!” – pensava comigo. Todos na empresa não compreendiam essa minha passividade. Mas eu não entrava em detalhes também. Nem explicações. Sabia o que estava fazendo. E a cena se repetiu uma segunda vez. Terceira. Quarta...
E eu fazia questão de diariamente cumprimentá-la mesmo tendo o seu silêncio como resposta. Ela me ignorava. Até que um dia essa pessoa me disse com muito orgulho que todos naquela empresa a odiavam. Mas prontamente rebati “eu não”. Respondi que nada tinha contra a sua pessoa e que na verdade gostava dela. Então rapidamente veio: “E por quê?!”.
“Porque eu sei que por trás de toda fera existe uma ferida. Porque só fere quem está ferido de alguma forma também. Eu já fui assim. Só que infelizmente é muito mais fácil julgar do que dar um voto de confiança às pessoas. E apesar de tudo, eu gosto de você”, respondi. Essa pessoa, que antes só falava comigo em pé, puxou uma cadeira e se sentou. E nesse momento conheci a pessoa que ninguém ali se permitiu ver. No tempo em que trabalhei nessa empresa, fora da minha sala essa pessoa era desprezível. E às sós comigo na sala se mostrava sensível, alegre, confidente e até simpática.
Tenho muitos exemplos assim na minha família. No meu trabalho. Nas
minhas amizades. Pessoas que são livres quando estão comigo. São leves.
Inocentes. Quase infantis. Mas faço questão de construir esse
espaço com todas as pessoas com quem me relaciono e que se permitem a
isso. Sem julgamento. Gasto muito tempo e energia para me conectar
com o real self das pessoas, porque sei que só através desse
contato que elas poderão florescer para mim. E o nosso relacionamento atingir um
estágio mais profundo. Eu prezo muito isso nos meus relacionamentos.
Apesar de Freud não ter atendido crianças, houve um psicanalista inglês, que era médico pediatra, chamado Donald Winnicott. Esse psicanalista tinha uma visão única do relacionamento mãe-bebê e do processo de desenvolvimento infantil. E por ter atuado como pediatra por mais de quatro décadas e ter sido o primeiro pediatra da Inglaterra a adquirir treinamento psicanalítico, ele teve uma perspectiva bastante única.
Meu objetivo nesse texto é trazer a perspectiva psicanalítica. Entre as ideias e pensamentos de Winnicott, ele nos trouxe o seu entendimento de que uma criança precisa odiar, e ser odiada, para acreditar que é amada. Ao trabalhar com crianças separadas de suas famílias devido à Segunda Guerra Mundial, ele pôde observar as dificuldades dessas crianças para se adaptar aos seus novos lares. Segundo Winnicott, a criança adotada “encenará” um comportamento rebelde e, inevitavelmente, afrontará os seus novos pais, numa tentativa de se proteger de vir a amar ou ser amada, e posteriormente decepcionada. Melanie Klein [psicanalista também] já havia proposto em sua teoria que um bebê sente ódio de sua mãe, e Winnicott rebate isso trazendo também um “ódio de maneira apropriada” que os pais também teriam em relação aos próprios filhos; e que esse ódio não só é legítimo, como a criança precisa sentir que os pais a odeiam!
E
aqui entraria o ponto crucial: mesmo os pais odiando a criança devido a seu comportamento afrontoso, o amor dos pais sendo muito mais forte superaria isso. E quando a criança adotada percebesse esse movimento, que mesmo os pais a odiando por sua conduta, eles não desistiram da criança por
amor, finalmente ela poderia superar essa falta primordial.
Winnicott usou essa relação entre pais e filhos para exemplificar a relação terapêutica que se estabelece entre psicanalista e paciente. O paciente faz transferência de afetos ao psicanalista e por este sentirá ódio e repúdio, mas também o analista poderá sentir afetos similares pelo paciente! E o analista pode se valer – estratégica e sabiamente – dessa contratransferência a favor do processo terapêutico! Ou seja, o psicanalista entendendo qual o personagem da cena infantil que o paciente o está convidando a (re)encenar, o psicanalista poderá se valer dessa contratransferência no manejo da análise, pois segundo a perspectiva winnicottiana esse é um “teste” necessário ao analista, já que essa é a forma do paciente confirmar se o analista é forte e confiável o suficiente para resistir aos seus ataques [e não abandoná-lo]. Quantas pessoas não testam a gente no dia a dia? E no fundo muitas só o fazem por medo de se sentirem rejeitadas, feridas ou abandonadas - novamente.
O que quero dizer é que essa relação mãe-bebê pode se estender para outras relações além de pais e filhos. Como professores e alunos. Chefes e subordinados. Reproduziremos essa matriz nos mais diversos relacionamentos, principalmente naqueles onde enxergamos figuras de autoridade. Portanto, sempre devemos ter cuidado ao julgar e principalmente a condenar aquelas pessoas que chamamos de “pessoas difíceis”. O que há por trás desse "pessoa difícil"? Por muitos anos da minha vida eu fui considerado uma pessoa difícil. E até hoje para alguns ainda sou. Mas eu garanto, e falo de coração, que posso ter todos os defeitos do mundo – e tenho vários –, mas a minha índole é boa. As pessoas erram conosco, mas raramente é proposital. Por experiência pessoal afirmo que quanto mais grossa e espinhosa é a camada de uma pessoa, mais sensível e ansiosa por afeto e carinho ela está, por mais que o seu comportamento demonstre o contrário. Tendo a acreditar que as pessoas que julgamos ser as “mais difíceis” no fim são aquelas que mais nos ensinam.
Sei que somos responsáveis
pelo nosso comportamento, mas eu também sei que existem forças que
desconhecemos que imperam sobre nós. As pessoas são diferentes e
têm diferentes formas de lidar com as experiências passadas.
Algumas superam. Outras não. Algumas seguem em frente. Outras ficam
lá atrás. Mas no fim todos somos crianças em corpos adultos. E
crianças têm dificuldades. Mas também são elas que guardam a chave da
nossa criatividade. Da nossa espontaneidade. E de uma alegria genuína.
Em quais dos seus relacionamentos você tem liberdade para ser você mesmo? Pense nisso.