Existe um psicólogo americano chamado Howard Gardner que escreveu o livro Múltiplas Inteligências na década de 80. Nesse livro o Gardner traz a teoria de que possuímos outras inteligências além da amplamente conhecida lógico-matemática. Segundo o autor, todos nós temos todas as inteligências em diferentes níveis uma da outra mas uma acaba se sobressaindo na personalidade, no nosso comportamento. No meu caso é a inteligência intrapessoal. Essa inteligência é descrita na capacidade do indivíduo de conhecer o seu interior; seus medos, motivações, desejos etc. Isso é verdade porque eu sempre gostei de me analisar. O blog mesmo se originou não só de uma vontade de expressão, mas principalmente de autoconhecimento, porque no início muitos textos aqui curiosamente foram uma tentativa de enxergar e até de lidar com o que se passava comigo. Nesse sentido recomendo escrever às pessoas como uma prática de sublimação. É terapêutico. Me lembro que muitas vezes, tomado por emoções e sentimentos que não sabia nomear, eu sentava para escrever chorando, quando ao ler o texto finalizado concluía: “Então é isso!” É como se o texto literalmente fosse uma fotografia do meu estágio atual. Digo que esses processos de investigação interior são para mim desde sempre como mergulhos que ao longo dos anos se tornaram mais profundos, mesmo consciente de suas limitações de alcance. E mais à frente explicarei melhor sobre isso, sobre os limites de uma prática de autoanálise.
Na adolescência foi quando esses mergulhos passaram a ir a estágios mais profundos pela primeira vez, onde à medida que descia, numa analogia com a própria prática de mergulho, digo que via as águas escurecendo e se tornarem mais frias. O que isso significa? Psiquicamente falando, à medida que aprofundamos no autoconhecimento – e somos honestos nessa prática – vamos alcançando estágios cada vez mais distantes da consciência (analogia à distância da superfície da água e da luminosidade do sol). Ao alcançarmos esses estágios de profundidade no nosso psiquismo percebemos aqueles aspectos da personalidade que foram banidos da consciência, mas nem sempre do comportamento. Sigmund Freud trouxe o conhecimento dessa instância psíquica denominada de Inconsciente. Um espaço do nosso psiquismo que está longe da consciência mas que vem à superfície através dos chistes, dos deslocamentos, dos atos falhos de linguagem, dos nossos sonhos, dos atos “sem querer querendo”. Jung vai dizer que nesse espaço psíquico se encontram nossas sombras; aspectos do indivíduo distantes da luz, opostos à persona. O termo sombra pode dar uma conotação de “negatividade”, mas não é de todo verdade, sombra apenas quer dizer distante da luz (distante do que é apresentado ao público). Essa conotação negativa se dá porque tendemos a apresentar às pessoas apenas o que é considerado bonito, o que seria o nosso “melhor”, recalcando e reprimindo aquilo que sofreria alguma censura da sociedade ou de nós mesmos.
No
primeiro mergulho em que fui mais fundo em mim mesmo, eu soube ao voltar à
superfície que jamais seria o mesmo. Vi nas profundezas da minha personalidade
tudo aquilo que todos nós possuímos, mas que raramente tomamos
contado ou dificilmente assumiríamos, como: ódio, medo, amargura,
mágoa, rancor, ciúme, orgulho, inveja, dor, raiva –
vi muita raiva! Eu era muito jovem ainda, devia ter uns treze ou quatorze
anos, mas quando retornei à superfície após uma crise existencial tinha plena noção que o
Jonas apresentado à sociedade era apenas um personagem, uma persona como
disse o Jung. Não que esse Jonas fosse de todo uma mentira, mas no
mínimo era partes de uma verdade, porque eu sabia que dentre
uma gama de características que eu tinha ("positivas" e
“negativas") apresentava só as melhores. Isso é o que todos
nós fazemos no dia a dia; nós selecionamos aquelas nossas partes
luminosas para nos apresentarmos à sociedade e, conscientemente
ou não, empurramos para d'baixo do tapete as outras. E segundo Freud com o retorno do recalcado esse
conteúdo inevitavelmente termina voltando à superfície em algum
momento, aparecendo no comportamento de alguma forma ou no corpo através de
somatizações, como nas pacientes com histeria tratadas por Freud, o que foi o
pontapé inicial à Psicanálise. Isso não significa também que precisamos expor nosso pior lado às pessoas, isso poderia ser inadequado e desrespeitoso, mas deveríamos encontrar maneiras aceitáveis e minimamente saudáveis de sublimar esses conteúdos, integrando-os à nossa personalidade, ao invés de relegá-los às sombras, já que eles também fazem parte de nós e cedo ou tarde precisaremos lidar com isso.
A princípio então eu não sabia o que fazer com esse conteúdo visto nos mergulhos. Eu só tinha medo de perder o controle de mim mesmo. Medo de enlouquecer – esse sempre foi o meu maior medo. Sempre zombaram de mim ao falarem que sou louco porque estou sempre na borda, uma espécie de menção a um sujeito com um pezinho na neurose e outro na psicose, tanto que eu mesmo sempre brinquei comigo sobre isso: “Cuidado, hein Jonas! Fica brincando... Uma hora você pula para o lado de lá e você não volta mais!” Eu até ria disso. Mas lembro também de falar aos meus amigos que minhas autoanálises, meus mergulhos internos estavam sendo tão fascinantes, mas ao mesmo tempo tão profundos e complexos que tinha um certo medo de me perder num labirinto mental e não conseguir mais retornar à superfície, perdendo a sanidade. Esse é um motivo que sempre me fez ter muito cuidado ao não usar substâncias psicoativas, principalmente a maconha. Não critico o uso medicinal da substância – devidamente receitada por médico e controlada –, me refiro a um uso recreativo, porque a maconha é uma droga com capacidade – principalmente em quem tem predisposição – a provocar surto psicótico. Como existe em mim então um certo prazer em flertar com estágios alterados de consciência, tendo alcoolismo já na genética, convivido com um pai alcoolista e eu ter essa personalidade que sempre brinquei como sendo meio limítrofe, me fez sempre ter muito cuidado com potenciais gatilhos para psicose. Mesmo ayahuasca por exemplo que sempre tive vontade de tomar, nunca tive coragem para fazê-lo. Aprendi a alcançar o mesmo prazer através da meditação com o despertar da Kundalini!
Você deve estar se perguntando: “Para que serve a psicanálise então? Se eu sou capaz de me autoanalisar, porque precisaria de um psicanalista na minha análise? Eu não posso muito bem fazer isso sozinho?”. Pode sim. Mas só até certo ponto também. Qual ponto? O seu ponto cego! Assim como aprendemos lá nas aulas práticas de direção de veículos automotores, o ponto cego é uma falha de visão, já que há uma área que não pode ser observada de modo direto pelo condutor. Num outro exemplo, imagine-se revisando um texto do qual você mesmo escreveu; tenha certeza que alguns erros gramaticais escapariam da sua revisão. Erros crassos que, se esse texto não fosse de sua autoria, você captaria rapidamente, no entanto, como o texto em questão é seu e seu olhar pode estar enviesado, viciado, você não consegue enxerga-los. Psiquicamente falando, isso significa que existem aspectos da nossa personalidade que escapam a uma análise feita por nós mesmos e isso ocorre por “n” razões que vão desde mecanismos de defesa nos protegendo de acessar conteúdos que nos machucaram um dia, até conteúdos recalcados por conta de um superego demasiadamente repressivo ou moralista. Ou seja, para não nos sentirmos rejeitados por uma inadequação ou nos sentirmos novamente machucados pelo trauma que gerou um recalque, vamos esconder de nós mesmos esse conteúdo o máximo que pudermos, a qualquer custo!
Quando então em frente a um psicanalista que serve como um espelho que devolve as questões do analisando, através de transferências e contratransferências, esse campo de visão se amplia. Sem falar que o psicanalista é um profissional que passou obrigatoriamente pelo tripé analítico: 1 – estudar a psicanálise de Freud e seus contemporâneos; 2 – passar ele próprio por análise; e 3 – ser supervisionado por um psicanalista mais experiente. O primeiro inconsciente que um psicanalista deve ter contato é o seu próprio, para na análise ele poder diferenciar o que é seu e o que é do analisando. Existe uma máxima, acredito que seja do Lacan, que diz que o analista só vai com um analisando até onde ele mesmo deu conta de ir na sua própria análise. Assim, recomendo para quem busca realizar mergulhos mais profundos que o faça preferencialmente com um profissional, seja um psicólogo com abordagem analítica ou um psicanalista, pois como disse há momentos nesses mergulhos bem difíceis, até dolorosos e seria interessante ser auxiliado por um profissional especializado.
Então por que deu esse título? A psicanálise não é para todos?
Vou colocar aqui uma opinião pessoal. Óbvio que existem pessoas que podem e que vão pensar diferente sobre isso, mas enxergo assim hoje em dia. Para mim uma análise não é para quem quer, é para quem pode. Não num sentido financeiro, de poder pagar por uma, mas num sentido de capacidade emocional e psicológica, de estar preparado, de ser capaz de dar conta e suportar um processo analítico. Tem pessoas que vivem alheias a si mesmas, às suas reais motivações, aos seus desejos, elas se conhecem pouco e não fazem questão de se aprofundar em autoconhecimento, mas isso para elas também não é uma questão. Elas vivem relativamente bem dentro das limitações de conhecimento que têm de si mesmas. Os seus relacionamentos estão satisfatórios. Não há nenhum tipo de prejuízo às pessoas com quem convivem. Elas enxergam ganhos em continuar nessa conduta, mesmo que secundários, e elas estão satisfeitas com eles. Ok. E está tudo bem. Por qual motivo então essas pessoas deveriam fazer análise? Alguém poderia responder que a análise poderia melhorar a vida dessas pessoas trazendo maior conhecimento de suas potencialidades. Será mesmo? Até onde isso é uma verdade ou só um julgamento de valor, um julgamento moral? Quem somos nós para julgar o que é ou não melhor à vida de outra pessoa? E quem disse que um processo analítico é sempre positivo?
Sinceramente falando agora. Quem busca análise precisa querer ser o mais honesto possível – primeiro consigo mesmo. Essa pessoa precisa ter razoável capacidade de introspecção e estar disposta a refletir sobre muitas coisas na sua vida. Ela precisa ser capaz de experimentar conflitos internos, afetos e sentimentos intensos, e não sem dor. Um processo analítico é algo demorado, trabalhoso, custoso, demanda energia, tempo e investimento. É complexo, conflitante e certamente envolverá algum tipo de luto. Um luto de toda uma idealização na vida do sujeito: uma idealização sobre si mesmo; sobre os seus pais; sobre a sua própria vida. Precisa morrer – simbolicamente – dentro de si toda uma vida idealizada para aí sim abrir espaço para se enxergar a realidade como ela é e surgir – talvez – alguma melhoria. É preciso enxergar os pais como foram e são além dos papéis, como homens e mulheres de carne, osso e desejo. É preciso compreender que nada do que passou mudará, mas a responsabilidade do que aconteceu agora é da pessoa e ela precisará tomar uma decisão do que fazer de agora em diante. Isso implicará em responsabilidade, comprometimento e ressignificação. Apesar de não haver garantia alguma de sucesso, existe uma única certeza nesse momento: do jeito que está não dá para continuar! Quando chega nesse ponto, é o melhor momento de se iniciar uma análise. Para Freud, quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda. Análise então é para quem quer, aguenta e está preparado para lidar com a sua realidade – seja ela qual for.