sábado, 23 de maio de 2020

TRATAMENTO DE CHOQUE

     Era bem criança, devia ter não mais do que cinco ou seis anos de idade, quando tomei meu primeiro choque elétrico. Meu pai vivia me alertando para não tocar nas tomadas de energia. Ele tirava todos os objetos pontiagudos de perto de mim e me explicava do perigo de choques elétricos, mas apesar de entender o alerta, sempre fui bastante curioso – e teimoso, então quando ele se descuidava estava eu lá, com uma faca ou um garfo nas mãos tentando enfiar nos buraquinhos da tomada. Numa bela tarde me lembro de ter encontrado no quintal um pedaço de fio e comecei a brincar com aquilo. Pouco tempo depois estava tentando enfia-lo em alguma tomada. De repente olhei para trás e reparei que de longe meu pai me observava. Sabia que ele poderia me repreender a qualquer momento, mas desta vez não o fez. E eu já tinha desenvolvido um estranho prazer em desafia-lo. Num instante, me lembro de um clarão muito forte seguido de um estalo que me jogou de costas ao chão. Estava tão assustado que mal reunia forças para chorar. Emudeci, estava em choque. Algo dentro de mim soube naquele instante o perigo do que tinha feito e o enorme risco que corri. Abri os olhos e a primeira coisa que vi foi uma enorme cabeça me olhando, era o meu pai com um sorriso sádico me falando "vai lá, filho! Põe o fiozinho na tomadinha de novo". Olhei para o lado e vi minha mãe correndo em nossa direção totalmente espantada.

     Em outra situação, ainda era bem criança, estava brincando atrás de casa, quando me deparei com uma bola estranha pendurada cheia de mosquitos voando ao seu redor. Achei engraçado aquilo, porque cutucava e os mosquitos saiam voando rápido. Não é necessário dizer do que se tratava, nem o quanto meu pai me falava para parar com isso. Mas era só ele virar as costas estava fuçando novamente. Apesar de toda vez entender os alertas de perigo, eu achava que tinha que fazer todas as coisas do meu jeito. Então, uma hora meu pai se cansou, pegou um dos “mosquitos” e me deu para brincar. Pouco tempo depois senti uma ferroada tão forte que me fez um vermelhão enorme no braço, acho que era alérgico. Naquele dia tive muita febre, sentia até calafrios. E como chorava. Me lembro de minha mãe gritando com ele, “você é louco! Você ainda vai matar essas crianças!”. E meu pai só rebatia, ”agora ele aprende.

     Assim era o meu pai. Assim eram os seus ensinamentos que mais pareciam “tratamentos de choque”. E é melhor eu nem comentar a forma que ele me ensinou a nadar, para não chocar ainda mais... Por mais duvidável que possa parecer isso, ele era um excelente pai. Era coruja, não dormia enquanto não chegássemos à noite. Brincava sempre conosco. Era muito presente. Sempre maternal, gostava muito de nos abraçar. Ele era general, mas também curtia esse papel de cuidador (leia-se aqui controlador). Estava sempre por perto nos ensinando algo. Mas percebo hoje também que meu pai foi um homem muito forte e sábio, porque embora quisesse sempre o nosso bem, chegava um determinado momento em que ele nos soltava. Nesse instante ele só nos assistia pagar pra ver. Mesmo sendo muito controlador, depois de muito tentar nos conscientizar sobre alguma coisa, tentar nos orientar de perigos, riscos ou consequências de um caminho ou escolha que fazíamos, ele nos dava as rédeas e nos deixava, literalmente, quebrar a cara! Quando criança o achava sádico e louco, porque nos ensinava através da dor, do choque, sempre do pior jeito... Mas hoje sei que não era bem assim... Nós éramos demasiadamente teimosos e desafiadores e meu pai simplesmente deixava a cabo da vida nos ensinar, talvez através da dor, o que nos recusávamos a compreender da melhor forma. Isso também doía nele. Mas era preciso. E demorei anos para compreender isso.

     Como o fruto nunca cai muito longe do pé, sou uma cópia do meu pai. Sou muito crítico e controlador. Eu queria ser diferente, mas acredito que cada ser humano vem para desenvolver suas limitações, para transcender o seu ego. Hoje, às vésperas de completar 32 anos, ter esse blog há 12 anos e já ter vivido tantas experiências, sinto a cada dia mais que meu sentido é exatamente o oposto. Hoje sei que meu desafio é compreender, ao invés de apenas criticar. É acolher, ao invés de apenas julgar. É desenvolver humanidade e compaixão, ao invés de criticismo e perfeccionismo.

     Ouvia muito no passado o quanto era crítico, controlador, até moralista, mas eu não tinha consciência disso. Esse comportamento era automático, eu fazia sem me dar conta. De tanto as pessoas me trazerem esse feedback do meu comportamento, passei a me analisar. Foi então que percebi que de fato era assim e me comprometi comigo mesmo a me tornar uma pessoa diferente. Hoje sei também que quanto mais apreço tenho por uma pessoa, mais vou critica-la ou de certa forma tentar controla-la através das críticas. Não que eu ache de todo ruim ser crítico, mas sinto que meu desafio é desenvolver a aceitação. Quando pedimos ao universo por algo, ele nos traz o oposto justamente para termos a oportunidade de desenvolver. Em outras palavras, quando pedimos a Deus um determinado fruto, Ele nos dará as sementes, as ferramentas e um solo fértil com a certeza do crescimento, mas o plantio e cuidado no processo cabe a nós. Não recebemos diretamente o que é pedido, mas ganhamos as condições para se chegar até lá. Quando cheguei nesse nível de entendimento, cheguei à conclusão de que na minha vida me depararia com situações para analisar, apurar, criticar, avaliar, julgar, para através disso poder alcançar outros verbos, como entender, acolher, aceitar, compadecer, solidarizar.

     Posso garantir que já não critico, nem julgo como já fiz um dia. Mas hoje meu desafio ganhou outro estágio. Estou tendo dificuldades, eu sei, mas me sinto feliz por ter a consciência e a oportunidade de lutar por essa melhoria – chegarei lá! O passo agora é não me ressentir. E meu corpo vem me sinalizando isso... De alguns anos para cá venho reparando que vira e mexe sinto dor de garganta. Vou ao médico e o diagnóstico quase sempre: faringite. O engraçado é que meu sistema imune é bom. Tenho uma alimentação balanceada, faço exercícios físicos regularmente, durmo bem, medito e meus exames estão bons, inclusive de vitaminas e minerais. Só que um dia uma pessoa me falou algo que já vinha suspeitando e acendeu uma luz amarela! “A sua garganta é emocional, você está com algo que quer dizer entalado e como isso te incomoda muito e você não externa, você somatiza. É a forma de seu corpo demonstrar isso. Quando você elaborar esse sentimento ou pôr para fora, ela vai parar com isso.

     É isso mesmo. Eu vejo, ouço ou constato coisas que não concordo e gostaria de me expressar, mas não vou fazê-lo. Muitas vezes observo pessoas próximas a mim tomando determinadas decisões ou indo – ou deixando de ir, a determinados caminhos e não acho certo. Por 'n' razões. Às vezes por questões de ética, de princípios, por questão humana! Coisas que não se faz, que prejudicarão a própria pessoa ou pior, quando prejudicará outras pessoas que estão implicadas na decisão. Essa mistura de inconformismo com uma vontade sufocada, silenciada, de falar abertamente o que penso, me gera raiva. Como dizia os mais antigos, “tenho que engolir o boi com chifre e tudo”. É quando estou numa situação que não posso mais intervir por vários motivos; porque não há abertura genuína da outra parte; porque já cansei de bater na mesma tecla; porque não quero terminar novamente parecendo o dono da razão; porque acredito que a pessoa precisa enxergar uma situação por si mesma. É difícil aceitar, mas todos têm o direito ao erro. E chega um determinado momento em que é preciso, assim como o meu pai fazia comigo, deixar a pessoa quebrar a cara! Porque o melhor que pode ser feito neste momento é deixar a pessoa pagar para ver. Não cabe mais opinião, nem crítica, pois em nada vai agregar a alguém já decidido a fazer a sua própria vontade. E não é omissão. É aceitação. Resignação. É dar o direito do outro de rumar ao penhasco e cair, porque só quando bater no chão e doer pra valer é que essa pessoa, talvez, acordará pra si ou para uma determinada situação em sua vida. Não tem mais o que fazer. Parafraseando Freud, quando a dor de ser como é for maior do que mudar, aí a pessoa muda. Então vai ter que doer muito, não vai ter outro jeito.

     O que posso fazer agora é o que está ao meu alcance. Lidar com aquilo que está ficando entalado na minha garganta. Se já aprendi que não vai resolver externar a critica e que meu desafio aqui é alcançar a aceitação do outro, preciso harmonizar esses sentimentos dentro de mim. A meta agora é comigo. O trabalho é interno. Quero sinceramente chegar a um ponto na minha vida em que de fato eu aceite o outro como é. Sem critica-lo e sem me ressentir por isso. Olhar para as pessoas com o máximo de neutralidade possível perante as suas decisões pessoais, entendendo que não cabe raiva, dor, pena, tampouco culpa. Quero elaborar essa raiva que fica quando me sinto inconformado com determinadas pessoas e situações que não posso modificar. Aquilo que está no meu controle e posso modificar preciso tentar, é até um exercício de cidadania isso. Porém, aquilo que não cabe mais a mim, que foge do meu controle e que diz somente respeito ao outro, quero ter a genuína aceitação desse direito da pessoa de fazer o que ela acha melhor para si ou a sua vida.

     Esse post é para dizer o seguinte. Acredito sinceramente que estamos nesta vida para elevarmos nossa consciência, essa é a Pedra Filosofal, a verdadeira missão do alquimista. Lapidar a si mesmo. Sair de um estado inferior de consciência e aos poucos alcançando maiores níveis. Para ser melhor do que os outros? Jamais. Para ser melhor do que a si mesmo, e acima de tudo, para se tornar um Humano, em toda a sacralidade da palavra. E acredito que o Universo nos concederá incontáveis vidas para chegarmos lá. Quero aceitar que cada um de nós tem o seu tempo de aprendizado, o seu nível de consciência, nosso desafio é evoluir e posso ser um colaborador nesse processo ao invés do julgador. Sem qualquer ressentimento, nem raiva, quero ser capaz de ter os olhos de um pai, que ao ver o filho errando sabe que ele é só uma criança. E ele estará ali quando ela acordar.


Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado... Resignação para aceitar o que não pode ser mudado... E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.”
São Francisco de Assis