sábado, 9 de novembro de 2019

EU SOU NARCISISTA



narcisista
[De narciso¹ + -ista.]

Substantivo de dois gêneros

01. Pessoa que tem propensão ao narcisismo, que nutre amor excessivo a si mesmo, a sua imagem.

(Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa)

        Venho de um lugar onde as pessoas ao meu redor não acreditavam muito em mim. Pelo menos era assim como me sentia quase o tempo todo durante toda infância. Havia rejeições e menosprezos por toda parte. Começando dentro de casa. Meu pai foi um homem muito crítico, ainda mais comigo, pois, a seu ver, eu tinha futuro. Tinha aulas na escola e quando chegava repassava o que aprendia com ele. “O que você pode me ensinar hoje?" – me perguntava ao final de toda tarde. Sentávamos então à mesa com meus cadernos de caligrafia – porque minha letra tinha que ser bonita – e explicava a ele o que havia aprendido naquele dia, enquanto ele me interrompia questionando a falta de pingo nos i e j. Meu caderno de desenho também eram avaliado e obviamente que ele me mostraria depois como poderia melhorar aqueles meus rabiscos.

        As refeições eram servidas à mesa e era nela que sempre deveríamos comer, todos juntos, enquanto meu pai contava nossas mastigadas e o ouvíamos sempre repreendendo para não mastigarmos com a boca aberta nem fazer barulho ao comer, porque pessoas civilizadas se comportam adequadamente à mesa. Era muito criança quando tive que abandonar as colheres e aprender a usar garfos e facas. Nem preciso falar como era um martírio diário comer com aquele homem falando na minha cabeça.

        Ande direito. Fale direito. Sente direito. Escreva, desenhe, aja direito. Seja direito! Foi assim toda a minha infância e prosseguiu adolescência a fora. Aos nove anos de idade, no dia seguinte à primeira reunião de pais e mestres, me lembro de minha professora da quarta série me perguntar – na frente de toda sala – se meu pai era severo demais e me batia. Fiquei em silêncio um pouco encabulado, enquanto ela explicava o motivo do questionamento. Disse que meu pai na reunião só fazia insistentemente uma única pergunta: “Ele é o melhor da sala?”. Ela me disse que temeu lhe responder qualquer coisa diferente de sim. Embora fosse um aluno exemplar nas notas e da professora ter lhe respondido sim, não bastou ao meu pai, já que ao chegar da reunião naquele dia veio me questionar por que a aluna Carla Beatriz tinha uma nota azul a mais do que eu em seu boletim. Ele comparava o meu boletim ao dos demais alunos e nesse dia queria saber se essa menina era mais inteligente do que eu e obviamente me fez prometer a ele que no próximo bimestre a superaria nas notas – o que de fato aconteceu, mas não sempre.

        Nós podíamos brincar na rua, mas deveríamos ficar alertas caso nosso pai assobiasse. Havia um código para nós. Um assobio deveríamos ficar alertas e nos despedir de nossos amigos, pois no segundo assobio seria hora de entrar. Quando muito entretidos nas brincadeiras e não ouvíamos os assobios anteriores, no terceiro assobio já voltávamos para casa cientes que apanharíamos. Havíamos desobedecido o “toque de recolher”. Fomos educados assim, com rigor, disciplina e ordem. E isso é só a ponta de um imenso iceberg. Havia sempre repreendas, sermões, críticas, filosofias, ensinamentos e castigos todo o tempo. A meu ver, meu pai era o general, minha casa o quartel e a educação ofertada se assemelhava muito a um treinamento militar.

        Aguentei bravamente. Sempre fui persistente. Queria mostrar ao meu pai que era capaz de suportar seus castigos, mas confesso que a minha maior dificuldade era dar conta de ouvir e ter estrutura psíquica e emocional para lidar com suas críticas. Ele era ácido. Ferrenho. As suas críticas eram certeiras, fortes, incisivas e me faziam sentir sempre muito aquém das altas expectativas que ele tinha para mim. Podia ver claramente o modelo de homem que ele queria formar, mas não me identificava com esse modelo o tempo todo. Discordava em alguns aspectos, achava irrealistas algumas coisas e inatingíveis outras. Mas por incrível que pareça, eu compreendia o que ele estava fazendo – pelo menos num âmbito racional. Racionalmente falando, o Jonas criança tentava compreender as ações do meu pai. Mas emocionalmente eu não conseguia... Não sempre. No nível mental compreendia que ele queria que eu desse o meu melhor, que eu entregasse mais, que eu superasse a mim mesmo a cada dia, porque ele queria sempre me ver bem e melhor. Racionalmente, ok. Emocionalmente, a uma criança, lidar com esses conteúdos fortes de críticas em cima de críticas vai macerando seu ego. Vai esmagando sua autoestima. Foi o que aconteceu comigo. Água mole em pedra dura...

        Mas eu aceitava tudo isso como podia, porque sabia que ele me amava. Muitas vezes tinha ódio dele, mas quando ele me abraçava, podia me ver em seus olhos e sabia que ele abraçava o universo nas mãos. Nós éramos tudo para ele. A vida do meu pai era os filhos, ele matava e morria por nós. Ele era intenso mesmo, em tudo. Nossa relação era de amor e ódio, de amigos e inimigos, de brigas e altas conversas. Mas foi ficando difícil lidar com isso, vamos lembrar que minha personalidade estava em formação também! Eu não tinha a cabeça e a visão de hoje. Então em algum momento desconectei. Foi preciso desconectar o emocional. O ambiente externo exigia muito, então tive que proteger o ambiente interno, porque racionalmente entendia, mas emocionalmente não suportava. Resolvi ceder por completo. Criei barreiras e falei a mim mesmo que iria me encaixar e tentaria corresponder ao máximo que pudesse. Fui tão fundo nisso de tentar alcançar os altos padrões que ele tinha para mim que sem perceber entreguei minha autoestima por completo em suas mãos e passei a esperar por estima externa. Passei a me importar demais com as críticas do meio externo. Se antes eu conseguia ter um senso crítico para as críticas, neste momento já não conseguia mais.

        Foi quando busquei a todo custo agradar a todos. Anulei por completo meu ego e passei a prestar atenção ao que as pessoas ao meu redor esperavam de mim, fosse na família, na escola, nas amizades, na sociedade. Engoli o verdadeiro Jonas para me enquadrar ao meio externo; para conseguir o amor, a aprovação e o aceite das pessoas que gostava e admirava. E quando alguém me achava feio, chato, desinteressante ou fazia qualquer comentário, mesmo em uma simples brincadeira, aquilo me afetava demais! Começou a me afetar muito mesmo. Como perdi o referencial de quem eu era ou queria ser, eu não tinha estrutura para lidar com a falta de apreço dos outros. Qualquer sinal de descortesia, rejeição ou reprovação das pessoas me doía demais. Queria tanto que gostassem de mim que fazia de tudo para ser bonzinho com todos, mas ora as pessoas me subestimavam, ora me menosprezavam, ora me faziam de bobo. De repente passei a ser visto como o bobinho, o sem personalidade, o zero à esquerda. Aquele que todo mundo pode passar a perna. Será que preciso me anular tanto e ter essa postura quase de subserviência para ser aceito? – me perguntava, chateado comigo mesmo por me submeter a esse papel só por uma aprovação externa. Eu me sentia às vezes ridículo por gastar tanta energia para me enquadrar ao que as outras pessoas achavam bonito, correto, aceito ou admirável e a contra partida eu detestava a mim mesmo.

        Nessa época, esse processo de não gostar de mim mesmo só me fez ansioso e descontar toda essa ânsia de aprovação não atingida na comida. Aos dezesseis anos estava pesando mais de cem quilos e um belo dia no trabalho passei tão mal que sai pelas ruas desgovernado e desmaiei numa calçada. Um casal que passava de carro me socorreu e me levou ao hospital. Quando questionado pelo médico o que acontecia, apenas lhe disse que sentia que estava morrendo. Ele fez toda avaliação clínica e o diagnóstico foi que não havia nada (físico). Tive nesse dia sem saber um ataque de pânico. E até hoje, juro por Deus, digo que foi uma das sensações mais terríveis que já tive na vida; tinha absoluta certeza de que estava morrendo.

        Onde entra o narcisismo? Agora.

        Quando cheguei nesse ponto, tive que fazer uma escolha entre o meio externo e eu. Sentei comigo mesmo e durante um longo período ainda na adolescência me fechei para balanço. Precisava renascer algo a partir dali. Sentia meu ego, minha autoestima, minha personalidade em frangalhos, eram cinzas e pó. Cheguei a seguinte reflexão. Amor não é algo dado naturalmente. Amor é escolha! E posso produzir ou importar. Autoestima, aprovação, aceitação, são facetas de amor, já que no fim tudo o que o ser humano busca é amor. Amamos e queremos ser amados. Uns produzem amor dentro de si mesmos. E os que não produzem, precisam importa-lo do outro, então vão buscar no externo. Fiz a escolha de aprender a me amar e ser capaz de produzir meu próprio amor valorizando mais a mim mesmo, para nunca mais ser dependente dos demais me amarem! Novamente fui fundo nisso. Foquei toda minha libido em mim mesmo com toda força que podia! Ninguém saberá mais de mim do que eu mesmo. A minha opinião, sobre mim mesmo, será soberana. Vou me amar, me respeitar, identificar quem sou, quem quero ser e a partir de agora eu vou legitimar o meu ego.

        É como se eu erguesse meu ego e o colocasse na estante da minha vida numa posição de destaque. Não foi do dia para noite. Foi um processo, que ocorreu paralelo a morte do meu pai – figura essencial na estruturação da minha psiquê. E como toda a minha estrutura de personalidade foi centrada a partir do querer do meu pai, quando ele saiu de cena (ele faleceu quando completei dezoito anos) o Jonas desabou! Perdi o referencial, o eixo central, me sentia oco, vazio, em ruínas mesmo. Mas se por um lado me sentia perdido, porque ele era meu Norte desde sempre, por outro lado me senti bastante excitado, pois dessas ruínas pude com os destroços reerguer minha estrutura como Eu quis! O Eu ganhava espaço e força para avançar a todo vapor! 

        A partir daí começou a acontecer algo surpreendente. Comecei a me alimentar melhor. Passei a fazer exercícios físicos regularmente. Meditar. Emagreci. Iniciei esse blog. Terminei o ensino médio na EJA. Fiz faculdade. Pós-graduações. E nunca me senti tão seguro de mim mesmo. Aquele jovem indeciso, ansioso, obcecado por aprovação dos outros, deu espaço a um homem forte, corajoso, seguro, dono do seu destino, que se ama acima de tudo e todos. Hoje tenho plena consciência que ninguém sabe mais sobre mim do que eu. Se alguém disser que sou incapaz de realizar algo, só será verdade se eu chancelar isso, pois quem sabe do que sou ou não capaz sou eu. Não espero migalhas de amor externo, se posso me fartar de um banquete interno. Eu me amo, me admiro, me orgulho de mim mesmo e acredito no meu potencial. Não espero que ninguém me complete, porque não sou a metade de nada. Sou um homem perfeito com imperfeições aceitas. Não importo amor, já aprendi a produzir o meu, quem chega só vem para somar. Para me ensinar. Para compartilhar. E se partir, tudo bem também, não vou morrer nem a pessoa. E quando ouço... Não gosto de você, digo ok. Não concordo com você, tá ok. Acho você feio, chato, metido, ignorante, arrogante, prepotente, ok. Ok. Mas quem sabe de mim sou eu! E quando uma pessoa diz algo sobre mim, em um bom nível, ela não está revelando algo sobre mim, ela está se revelando para mim! Pois como disse Freud, quando Pedro fala sobre Paulo, sabe-se mais de Pedro que de Paulo.

        Quis contar minha história pessoal e coloquei esse título provocativo no texto para satirizar esse momento que vivemos onde tudo é Narcisismo. Fulano é narcisista. Fulano tem traços de narcisismo. Na internet bombam vídeos e mais vídeos descrevendo e ensinando como reconhecer um narcisista, e a coisa toda banalizou. Pessoas leigas pegam fatos e comportamentos isolados e já fecham um transtorno de personalidade! – que por si só é algo bastante complexo até aos psiquiatras e psicólogos para fecharem um diagnóstico. O comportamento humano é muito complicado para se decifrar em análises rasas e superficiais. Acredito sim que exista o Transtorno de Personalidade Narcisista, mas ele tem traços, sinais e sintomas muito precisos, descritos no DSM-5. Só que hoje qualquer manifestação onde uma pessoa demonstre muito amor por si mesma já é considerada narcisista. Quer dizer, quando alguém se submete ao cônjuge, aos pais, à sociedade, numa postura de obediência quase de subserviência, aí tudo bem. Essa é uma atitude bonita né, de resignação e abnegação. Agora se uma pessoa assume aquilo em que de fato ela é boa, expõe seu melhor e não esconde o quanto de amor tem por si mesma, então é narcisista? É arrogante? Não... Sinto dizer, mas isso não é Narcisismo, nem um comportamento egoísta, é só amor próprio mesmo. A pessoa está sendo capaz de ser produtora ao invés de ter que importar.

        Assim como um dia aprendi, se isso faz sentido para você, gostaria de dividir este conselho. Pare de olhar para fora. Ninguém sabe de você mais do que você mesmo. Ninguém tem mais autoridade, nem propriedade de conhecer sobre você mais do que você mesmo. Encontre em si aquilo que carrega de bom e exponha com muito orgulho. Tendo o queixo erguido e o peito estufado. Não é feio se orgulhar de si mesmo! Não é errado se amar demais! Não tem nada de injusto se colocar em primeiro plano. Lembre-se da recomendação no avião: a máscara é em você. Você não ajuda ninguém, sem antes se ajudar. Instituiu-se uma crença na sociedade que é sempre mais bonito, mais virtuoso, colocar os outros em primeiro plano. É divino. A vaidade é considerado um pecado capital. Concordo que todo excesso de fato esconde uma falta, mas não é disso que estamos falando aqui. Eu te digo que não existe nada de errado em se colocar em primeiro plano, na sua própria vida. Não é para você se julgar melhor do que os outros, mas simplesmente para exibir aquilo que você tem de melhor. É como o Sol. O Sol não pede autorização para brilhar, assim como não se preocupa se aqui na Terra existem fontes de energias melhores ou mais quentes do que ele. Ele simplesmente é o que é. Ele simplesmente nos emana sua luz. Ele segue sua natureza que é brilhar e aquecer. Assim tem que ser com você. Assim tem que ser com cada um de nós, todos os dias de nossa vida. Não espere autorização para dar o seu melhor. Para mostrar a sua melhor versão ao mundo. Não se preocupe se está ou não agradando, seja o que você é, o que quer ser. E em seu caminho vai se deparar com muitas pessoas que já se esqueceram de seu próprio brilho, mas ao te olharem verão em você algo de diferente, enxergarão Autenticidade, e talvez sentirão a Motivação necessária para resgatar dentro de si mesmas algo que estava a muito tempo adormecido. O amor próprio.